Tamanho não é documento

2 de janeiro de 2021

Tamanho não é documento

Data de Publicação: 2 de janeiro de 2021 11:15:00 Veja porque às vezes o nosso chefe muda o nosso entendimento sobre o que é o melhor texto em um jornal.

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Que aprendemos muitas lições ao longo da nossa vida profissional. Uma delas é sobre odiar o chefe. Nem sempre as entendemos, mas o tempo nos dá a possibilidade de compreensão.  

 

 

Quem nunca odiou o seu chefe?

É claro que há chefes ótimos e que muitos de nós amamos estes como se fossem irmãos.

Mas ser gestor não é uma tarefa que combine facilmente com ser amigo e companheiro.

Várias decisões que temos de tomar não agradam a quem tem de cumprir as ordens.

Algum tempo depois vários de nós entendemos o que aconteceu em determinada situação. Outros vão odiar os chefes para sempre. O que leva ao entendimento é ocupar a mesma função ou amadurecer.

De minha parte nunca fiz nada por causa da função simplesmente. Todas as atitudes foram calcadas em necessidades de gestão.

Em um desses episódios, que trago hoje para ilustrar uma vivência profissional que pode servir a quem está começando na área, aconteceu quando era editor do caderno regional de Campinas da Folha de São Paulo.

Conhecido como Folha Campinas, o caderno SP – Sudeste ou Folha Sudeste foi lançado em 19 de novembro de 1990 e tinha um bom time de repórteres que garantiam as boas histórias que publicávamos, todos muito jovens ainda.

Um dos motivos de acirradas discussões entre chefia e reportagem eram as capas.

O caderno era muito pequeno, apenas seis páginas no tamanho standard, e tinha de abordar todas as editorias de forma resumida.

Os destaques eram a capa e a seção de esportes, que ocupava toda a contracapa em razão de a região possuir um terço de todos os 20 times do Campeonato Paulista na época, afora os demais esportes tratados pelo jornal.

Para a capa, fazíamos uma pauta muito detalhada e sempre preparávamos uma reserva, caso a história em que investíamos no dia não desse o resultado esperado ou falhasse.

Era trabalhoso, porque a capa era sempre um texto de fôlego. Exigia boas histórias, apuração a contento e ainda agilidade do repórter. Afinal, era preciso sustentar a atenção do leitor sem fugir dos padrões rígidos da Folha.

Um dos repórteres da equipe à época era Luís Fernando Bovo, hoje no Estadão. Menino ainda, era muito aplicado e com faro apurado. Produzia bons textos, atraentes ao leitor.

Com ele protagonizei uma passagem que talvez aconteça a todos que estão começando. Sempre disse: no jornalismo, não somos autores. Arrisco a dizer que nem escrevendo livros conseguimos ser autores de fato. Afinal, o editor pode mudar a capa, o título e até o conteúdo do livro em alguns aspectos.

Enfim, o que quero dizer é que não podemos nunca nos apegar ao texto como se fosse uma obra imutável ou a obra perfeita. Quem a transformará nisso será o leitor com sua experiência de consumir o que fizemos.

Mas a maioria dos jornalistas, senão todos, tratam os seus textos no início da carreira como se eles fossem a obra-prima deles.

Por isso, o editor, que é o chefe, vira o motivo principal do ódio de muitos. A função exige que se faça alterações: ou porque o texto não se enquadra na proposta da pauta ou então por necessidade de ajustes ao padrão, aos interesses e à atuação do veículo.

Nessa diferença de ponto de vista entre editor e repórter, uma das coisas que mais pegam é o corte no texto. Jornalistas em início de carreira odeiam que o seu texto seja reduzido, não importa qual a razão que o editor alegue.

Pois bem, eu havia pautado o Bovo para fazer uma capa de domingo, que editávamos na sexta-feira à noite. Aliás, as edições de domingo e segunda-feira eram quase todas fechadas na sexta. Ficavam apenas alguns espaços para o plantão preencher com fatos do dia.

Bovo se esmerou para conseguir a história e me deu o retorno animado. É bacana quando a gente vê um repórter empolgado com o que apurou. É como um autor que encontrou uma história inédita e o melhor jeito de contá-la.

Ouvi com atenção, gostei também e pedi que se sentasse e escrevesse o quanto antes, pois queria ver o texto o mais cedo possível.

Ele produziu o material com rapidez e eu o li.

Não tivemos problemas para ajustar em relação à pauta e nem sobre os interesses e atuação do jornal. Ou seja, estava tudo ok.

Coloquei o texto na capa e fechei a edição.

Comentei com ele sobre uma frase que fora marcante de tudo o que ele havia escrito. Rimos a respeito. E eu ainda brinquei:

- Essa frase resume todo o texto.

Bovo concordou.

Tudo parecia caminhar sem novidades até que fui informado pelo comercial que eles haviam vendido um anúncio para a capa.

Era um anúncio pequeno, mas roubava um pedaço do texto, infelizmente. Ocorre que anúncio em jornal ou em qualquer veículo de comunicação tem prioridade. O texto sempre é cortado para garantir o anúncio.

Os publicitários gostam de dizer, para irritar os colegas jornalistas, uma disputa de egos que existe desde sempre, que os textos destes só preenchem os espaços que não foram vendidos pela publicidade. Uma triste verdade.

Como o texto estava bom, fiquei com melindres para cortar. Resolvi continuar a reportagem da capa na página 2 do caderno. Assim garantia a integridade e já teria uma abertura de página para a 2.

Tudo acomodado. Bovo ficou contente com a solução. Agradeceu o cuidado. Seguimos.

Uma hora e meia depois, o comercial avisou que conseguiu mais um anúncio para a capa.

Aí não tive como evitar fazer o corte no texto. Pedi ao Bovo para ajudar a reduzir. Tivemos uma pequena discussão. Evidentemente ele não queria que o texto fosse cortado. Sugeriu até que ampliasse o espaço já usado na página interna como havia feito antes.

Não era possível.

Creio que comecei a ser odiado ali.

Ele me disse:

- Você está destruindo o meu texto.

Resolvido o problema, seguimos.

Mais uma hora e o comercial veio com mais um anúncio na capa e novo corte foi feito.

A essa altura, o Bovo nem falava comigo mais.

Via pelo seu olhar petrificado que estava sendo odiado ainda mais com certeza.

Não me importei. Eu tinha de fazer. O tempo o faria entender. Seguimos.

Finalmente, às 22h, quando se encerrava o horário para a entrada de anúncios, veio a notícia mais fatídica: entrou um anúncio que tomava a capa inteira. Ficaria apenas o título e uma frase, mais nada, nada mesmo.

Poderia continuar o texto na página 2 como havíamos planejado no primeiro anúncio, mas não toda a reportagem como Bovo gostaria.

Resultado: pincei a frase sobre a qual havia dito a ele que resumia o texto e a coloquei na capa sob o título já escolhido e continuei o texto na página 2 com a parte mais importante que restara após o corte drástico que tive de fazer.

Bovo me disse, acredito que sentindo como se parte dele tivesse sido amputada:

- Você acabou com o meu texto.

Respondi que a Folha primava pelo poder de síntese de seus textos e que a informação transmitida em poucas linhas era mais importante ainda por ter de ser mais eficiente.

Eu não podia cancelar a reportagem para aquela edição e substituir por outra, coisa que cheguei a pensar em fazer, porque a reserva não havia rendido os resultados que sustentassem uma capa para uma edição de domingo.

Angustiado com os cortes, o repórter só pensava no trabalho perdido, mas eu tinha de pensar no leitor e na empresa: não podia colocar um texto qualquer para estampar a capa.

Tudo isto repercutia na aceitação do jornal, nos novos anúncios que viriam e na assinatura para receber os exemplares em casa.

Hoje tudo está diferente, o jornal impresso agoniza, mas a tônica é a mesma.

Quando li a frase e disse que ela resumia a reportagem não imaginava que chegaríamos a ela como representante do texto todo.

Foi uma lição que eu e o Bovo aprendemos a duras penas: o poder de síntese e a condescendência com os cortes.

 

 

Anote isto

Em todos os sábados você encontrará um case novo ou uma dica profissional nova neste espaço.

Tamanho standard – É o jornal produzido nas dimensões de 600 x 750 mm (23,5 polegadas x 29,5 polegadas). Este é o maior formato desse tipo de publicação.

Editorias – É cada uma das subdivisões temáticas (política, economia, cultura etc.) de um jornal, revista, portal de notícias ou outro veículo de informação sob a responsabilidade de um editor: editoria de arte, editoria de esportes.

Pauta – É a orientação que os repórteres recebem descrevendo que tipo de reportagem deverá ser produzida, com quem deverão falar, onde e como deverão fazer isto.

Fechar – É um jargão jornalístico que significa a conclusão do trabalho de edição. Na Folha, quem fecha deve estar tão preocupado com a qualidade da edição quanto com o cumprimento do cronograma industrial.

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