Por um uísque doze anos

25 de outubro de 2020

Por um uísque doze anos

Data de Publicação: 25 de outubro de 2020 18:20:00 CONFRONTO - Neste capítulo do livro sobre os bastidores das minhas reportagens o confronto que tive de ter com José Serra.

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SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO

Quando Fernando Henrique Cardoso era pré-candidato à Presidência da República, tive de ser duro com o então deputado José Serra. Tudo porque tinha uma pergunta para fazer como jornalista da Folha.

 

 

Parei o carro em uma vaga simples, apertei o alarme e virei as costas para ele.

Era 1993 e eu estava diante do Colégio Sagrado Coração de Jesus, uma escola com área construída de 45 mil metros quadrados e uma das melhores estruturas educacionais de Campinas, uma imponência que impactava.

O meu queixo caiu.

Não era para menos uma escola daquele tamanho e daquela importância, afinal estaria ali em alguns minutos o futuro presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

O colégio abrigaria um encontro do partido e FHC era a estrela da reunião. Seu nome era um dos cogitados para concorrer à Presidência. Mas ainda dependia de costuras políticas.

Eu estava lá como jornalista da Folha de São Paulo e com a missão de especular sobre esses bastidores políticos para a indicação.

- O senhor é o dono do carro ali?

- Oi?, disse sem olhar para trás.

Estava ainda impressionado com o colégio.

- O senhor é o dono do carro ali?

- Que carro meu Deus?, resmunguei.

Havia todo um esquema de segurança em torno do colégio. As figuras que participariam do encontro eram autoridades importantes da República. A reunião fora muito bem organizada em todos os seus mínimos detalhes.

Não me dei conta da voz que falava comigo.

- O senhor é o dono do carro ali?, repetiu e finalmente atinei que era comigo.

Quando me virei para ver quem era, vi atrás do guarda, que me chamara, o motorista de um guincho puxando o meu carro para cima da carroceria do caminhão de reboque.

- Ei, ei, ei, gritei desesperado. - É o meu carro. O que está fazendo? Pare, pare.

Ao correr para lá quase atropelei o guarda, mas ele veio atrás de mim pacientemente.

- Eu estava perguntando exatamente isso, disse tocando em meu braço.

- O que está acontecendo. Eu sou jornalista da Folha de São Paulo. Vim para o encontro do PSDB que vai acontecer neste colégio.

- Entendi senhor...?

- Eloy de Oliveira, jornalista da Folha...

- Eu já entendi isso seu Eloy. O senhor é que não entendeu. O seu carro está sendo guinchado. Foi isto que vim avisar.

- Como assim, eu sou jornalista da Folha...

- Ô jornalista da Folha, se é jornalista da Folha ou Diário de Tiririca da Serra não importa. O seu carro está sendo guinchado porque o senhor parou onde não podia. E ainda será multado.

- Como assim? Eu parei na vaga. Olhe aqui, disse mostrando a inexistência de faixa amarela onde eu havia parado o meu carro.

- Olhe aqui o senhor, ele disse mostrando uma placa de proibido estacionar bem ao lado do meu carro, que era totalmente desconhecida para mim até então.

Era como se aquela placa tivesse corrido para lá depois que eu parei, pensei.

- O senhor deve estar pensando que a placa correu até aqui assim que o senhor parou, né?

Olhei para ele com aquela cara de quem diria: como sabe?, mas não disse nada.

Como se soubesse também deste pensamento, ele riu sarcasticamente e disse:

- Pois ela correu mesmo. Aqui em Campinas as placas correm. E elas se disfarçam também.

Pensei: filho da puta.

Ele olhou para mim e retrucou:

- Eu sei o que o senhor está pensando.

Aí eu me irritei:

- Ah é? O que estou pensando?

- Em como retirar o seu carro, não é isso?

Ao ver o meu queixo caído de novo, ele me deu um cartão com um endereço.

- O que é isso?, perguntei.

- O endereço do pátio onde o seu carro ficará aguardando que vá retirá-lo. É só pagar o transporte do guincho, a estadia no pátio e a multa, mas essa pode ser no licenciamento.

Disse com o queixo levantado e o peito estufado como se discursasse na formatura da filha e saiu. O caminhão onde o meu carro havia sido colocado em cima enquanto discutia com o guarda já tinha ido embora também.

Olhei em volta e estava só diante do colégio.

- Não acredito nisso, disse para mim mesmo em voz baixa pensando em como resolver aquele problema. Eu tinha de entrar. Estava em cima do horário de início do encontro e eu tinha uma missão junto ao Fernando Henrique Cardoso que não podia esperar a questão do carro ser resolvida de jeito nenhum.

- O que aconteceu?, me perguntou Biléo Soares, preocupado ao me ver falando sozinho.

Ele havia tomado posse como vereador naquele ano e era um dos fundadores do PSDB em Campinas, alguém com quem eu tinha um bom relacionamento desde a eleição dele.

- Meu carro foi guinchado e agora o encontro vai começar. Estou em uma sinuca Biléo.

- Não se preocupe. Vou pedir para alguns amigos verificarem o que podem fazer para te ajudar. Vamos para o encontro. Você não pode perder a presença do Fernando Henrique.

E assim fomos enquanto ele ligava para os amigos que disse ter e passava os detalhes do recolhimento e o telefone e o endereço que o guarda havia me dado de onde ficaria o pátio.

 

Após aquela tensão inicial, relaxei com a prestatividade do Biléo. Ele era uma pessoa realmente atenta e disposta sempre a ajudar.

Depois das ligações e de ter me tranquilizado de que eu teria o meu carro na saída do encontro, ele passou a me acompanhar apresentando as grandes figuras do partido enquanto Fernando Henrique não chegava.

Agradeço de público todo o apoio que ele me deu naquela oportunidade e sempre que precisei da ajuda de um amigo.

Infelizmente, neste momento em que escrevo essas lembranças do episódio da visita de FHC, Biléo já não está mais entre nós.

Ele lutou arduamente por seis anos contra um câncer diagnosticado em 2005.

Não foi uma batalha fácil. O vereador passou por 36 sessões de quimioterapia, 14 cirurgias, 250 exames e cinco meses de quimioterapia oral, mas acabou vencido pela doença. Morreu às 11h20 do dia 6 de dezembro de 2011, no hospital Centro Médico, em Campinas

Quando faleceu, aos 52 anos, o câncer já havia atingido a uretra, o períneo, o pulmão, a cabeça, o fêmur e a escápula.

Ele deixou a esposa Rita Soares, com quem foi casado por 17 anos, e três filhos: Gilberto, de 15 anos, e as gêmeas Mariana e Giovana, de 13, além de uma legião de amigos como eu.

Apaixonado pela Ponte Preta, por Campinas e pela política, Biléo integrou um grupo novo que chegou à Câmara na eleição de 1992.

Junto com ele, um dos mais representativos dessa época é o hoje deputado federal Carlos Sampaio, que já foi líder do governo e do PSDB e também concorreu à Prefeitura.

Biléo e todo esse grupo, apesar da seriedade e da firmeza de propósitos, eram muito inocentes ainda para a política na época.

Lembro-me de um episódio que evidencia bem esse comportamento.

Quando Biléo foi eleito, ele me disse que o grupo que formava com Carlos Sampaio elegeria o presidente da Câmara, mas ele e o deputado foram literalmente driblados por Marco Chedid  (então no PFL), que é filho de Nabi Abi Chedid, ex-presidente da Federação Paulista de Futebol e vice-presidente da Confederação Brasileira e também da Confederação Sul-Americana de Futebol.

Enquanto Biléo, Sampaio e o grupo festejavam a primeira eleição para a Câmara no pátio de acesso ao Legislativo, à época no térreo da Prefeitura, Marquinho, como era conhecido, convocou os outros vereadores para a sessão, fez a eleição do presidente e se deu posse como eleito, conforme o regimento.

Assim, quando o grupo de Biléo e de Sampaio entrou na Câmara, já estava tudo resolvido.

A eleição de Marquinho Chedid ficou na história como um grande drible que ele deu em Carlos Sampaio, o candidato à presidência com apoio do grupo liderado por Biléo.

 

Outra figura importantíssima do cenário político do PSDB na época, mas depois também do MDB, que conheci nesse encontro, foi o empresário Renato Amary, de Sorocaba.

Levado por outro grande amigo, o jornalista Carlos Maria, que o assessorava, o empresário se aventurava entre as feras do partido depois de ter tido uma primeira experiência como candidato à Prefeitura da sua cidade, em 1992.

Amary viria a ser um dos principais nomes do PSDB depois e teve uma carreira política vitoriosa na sua cidade, em São Paulo e por último em Brasília, mas naquele dia era um dos muitos curiosos com a presença de Fernando Henrique Cardoso como todos no colégio.

Tive a oportunidade de vir a trabalhar com Renato Amary posteriormente já em 2003.

Na eleição de estreia na política e no PSDB, Amary foi muito mal, ficando atrás de Paulo Mendes (MDB), o eleito, além de José Crespo (então no PFL) e Hamilton Pereira (PT).

Mas a sua trajetória vitoriosa na vida privada como empresário do ramo imobiliário se transferiria para a vida pública logo depois.

Em 1994, Renato Amary se elegeu deputado estadual e se tornou líder do partido dois anos depois na Assembleia, concorrendo outra vez à Prefeitura de Sorocaba e se elegendo pela primeira vez em 1996, contra José Crespo.

Em 2000, se reelegeu novamente na disputa com Crespo, mas já no primeiro turno.

Depois indicou o sucessor em 2004, sendo vitorioso com Vitor Lippi ainda contra Crespo.

Fora da Prefeitura, Amary foi presidente do Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal (Cepam) da Fundação Prefeito Faria Lima, em São Paulo, entre 2005 e 2006, quando se elegeu deputado federal com a quarta maior votação do partido no Estado.

Após 20 anos no PSDB, o empresário deixou o partido em março de 2011 para ingressar no MDB, onde está até hoje e pelo qual concorreu à Prefeitura de Sorocaba mais uma vez em 2012. Nessa eleição, foi derrotado pelo engenheiro Antônio Carlos Pannunzio (PSDB) no segundo turno por uma pequena diferença.

Em 2016, era o candidato mais bem cotado para a eleição de prefeito em Sorocaba, mas abriu mão de disputar por conta de processos na justiça e apoiou e elegeu José Crespo (DEM).

 

Outro político também importantíssimo que encontrei no Colégio Sagrado Coração de Jesus foi José Roberto Magalhães Teixeira, o Grama, que era o prefeito de Campinas naquele ano.

Eu o havia conhecido em 1987 quando trabalhava no jornal Cruzeiro do Sul em Sorocaba e respondia pela cobertura política na Prefeitura de lá, que era administrada por Paulo Mendes (então PMDB e hoje no PSDB).

Encontrei Grama encolhido em uma pequena cadeira na sala de espera do gabinete do prefeito com a sua inseparável jaqueta bege.

Perguntei à secretária do prefeito à época Sumie Hiranobe de quem se tratava e ela me cochichou no ouvido que era o prefeito de Campinas e que aguardava Paulo Mendes.

Grama foi eleito prefeito de Campinas em 1983 e teve o seu mandato prorrogado para não haver coincidência das eleições para prefeituras e governos estaduais no pleito disputado em novembro de 1986.  

Tímido e bem ao estilo mineiro que era de Andradas, ele não falou muito mais que um cumprimento de boa tarde na minha abordagem inicial para saber o que fazia lá.

Para conseguir a reportagem sobre a visita misteriosa, tive de forçar a barra com ele. Mas no encontro ele estava todo sorrisos. Palmeirense como eu, falamos do time e depois de política e, sobretudo, de Fernando Henrique Cardoso e a esperada disputa pela Presidência.

 

Quando Fernando Henrique Cardoso chegou ao Colégio Sagrado Coração de Jesus, as lideranças do partido fizeram uma reverência que nunca tinha visto nas minhas reportagens.

Ele chegou acompanhado de um grupo de deputados liderados por José Serra.

Eu só conhecia a maioria por nome, mas a experiência que tive com Serra não foi boa.

Estava encarregado de questionar FHC sobre os bastidores para a escolha do seu nome e tinha de me aproximar dele para fazer a pergunta, mas Serra afastava todos os jornalistas como se fosse um segurança.

Na vida de jornalista, muitas vezes éramos obrigados a enfrentar seguranças ou até mesmo autoridades que se portavam como seguranças, a exemplo de Serra, e isto significava até ser rude quando impediam ou tentavam impedir o nosso trabalho.

Eu havia recebido a informação da Folha de que os caciques do partido estavam dispostos a indicar o baiano Waldir Pires para a disputa da presidência da República. Até um acordo teria sido celebrado na noite anterior ao encontro tucano em Campinas em torno do nome dele.

Queria fazer a pergunta, mas Serra puxava Fernando Henrique e não permitia a aproximação. Tive de dar um empurrão nele quando estava quase nas costas de FHC para poder chegar ao meu objetivo.

O então deputado Serra se desequilibrou e consegui finalmente fazer a pergunta para o então presidenciável, o que o deixou bastante nervoso e inseguro. Ele sabia das articulações na Bahia e sabia da força de Pires, mas me deu uma resposta confiante:

- Não acredito no que você está me dizendo. Se eu não for o candidato à Presidência, você pode me procurar, que eu te darei um uísque doze anos de presente e ainda ajudo a tomar.

Assim que ele fez a afirmação, Serra se recuperou e o arrancou da nossa frente, minha e dos demais jornalistas, para levá-lo à mesa principal dos trabalhos que ele presidiria.

Durante todo o encontro, várias vezes Fernando Henrique Cardoso me olhava como quem dizia com convicção mentalmente:  

- Pode cobrar.

Como a história mostrou depois nunca tive direito ao tal uísque doze anos.

O ex-governador da Bahia e ex-ministro por duas vezes Waldir Pires não foi além de uma candidatura ao Senado, na qual foi derrotado por seu maior rival no Estado e na política: Antônio Carlos Magalhães (PFL).

Depois, discordando radicalmente da orientação política e da aliança nacional com o PFL, deixou o PSDB em março de 1997.

No mês seguinte filiou-se ao PT.

 

Quando o encontro terminou e Fernando Henrique Cardoso foi embora escoltado por José Serra, assessores do deputado vieram tomar satisfações comigo pelo empurrão.

Satirizando a investida e com a caneta pronta para denunciá-los caso insistissem, eu disse que o choque com Serra não havia sido falta:

- Foi ombro a ombro, disse como são considerados os choques entre jogadores sem falta na disputa da bola no futebol.

Após os assessores se afastarem, Biléo Soares apareceu batendo no meu ombro.

- Você é foda, mas eu vou te devolver o seu carro, apesar disso, disse ele rindo.

Saímos do colégio e o meu carro estava lá, agora em um lugar onde era permitido estacionar, mas fui multado mesmo assim.

Biléo pagou o guincho e o pátio.

Quis devolver o dinheiro a ele, mas não aceitou e ainda brincou comigo:

- Político bom faz os outros deverem para ele.

 

 

FIQUE SABENDO

Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.

Imagem da Galeria José Serra abraça Fernando Henrique Cardoso: inseparáveis
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