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Cabeção
Data de Publicação: 1 de dezembro de 2020 19:03:00 UMA VIAGEM - A possibilidade de irmos além do que vemos e do que vivemos é muito grande sempre: basta que imaginemos tudo a nossa volta.
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
Quem nunca fugiu pelas esquinas da imaginação para escapar de dificuldades? Nossa capacidade para viver outras vidas e coisas inimagináveis é enorme. Às vezes, quando tudo é difícil, é bom deixar a cabeça viajar.
- Você já foi a Portugal?
- Não, nunca.
- Quando for, vai entender o sabor de um pastel de nata bem quentinho que fazem ao lado do Mosteiro dos Jerônimos.
Eu ri de forma terna imaginando.
Mariana descrevia o pastel como uma coisa dos deuses.
Era como se aquilo fosse uma maneira de ser feliz.
E eu acho que era mesmo, pois o seu sorriso branco e envolvente tinha um brilho de alegria inconfundível.
A satisfação com a qual descrevia era cativante.
Ela me contou que a avó queria conhecer Portugal.
Sonhava com o Galo de Barcelos. Fazia questão de ter o galo em tudo. Estava no pano de prato, na porta da geladeira, na fruteira.
O símbolo era como se fosse um destino a ser visitado quando fosse a Portugal, mas nunca conseguiu.
Os filhos cresceram, o marido morreu e o sonho ficou no sonho.
Mais tarde tentaram levá-la, ela não quis mais.
Desistiu por causa do tempo.
Mariana falava exatamente disso: o tempo.
Como ele passa rapidamente e tudo se transforma da noite para o dia, como se fosse uma imagem de filme.
Ela era taxativa com isso:
- Não podemos deixar passar. O que minha avó fez foi um erro. O tempo passou e levou dela o que podia fazê-la feliz.
- Mas nem tudo é fácil, eu retruquei.
- Não, claro que não. Só que será sempre mais difícil se não tentarmos. Temos poucas chances de fazer muitas coisas.
Logo depois descreveu que o seu sonho era conhecer o Egito.
Tinha passado a infância estudando, colecionando informações, imagens. Um dia chegou o momento.
Comprou passagem, reservou hotel e fez as malas. Aí veio a Primavera Árabe. Na época, o governo desaconselhou ir.
Mas Mariana pensou que era melhor morrer realizando um sonho do que deixá-lo morrer como sonho feito sua avó.
E foi. Arriscando-se. Sem olhar atrás.
Ela disse que viveu a experiência mais claustrofóbica da sua vida ao entrar em uma pirâmide para ver a câmara central.
- Hoje eu não faria. Ainda bem que fiz, disse ela.
Minha amiga se foi e eu fiquei pensando em tudo que disse.
Em uma época como essa de pandemia sonhar é algo bom.
Faz com que possamos sair de onde estamos.
Permite mudar o que não pode ser mudado.
Quando era pequeno, gostava de brincar de viagens interplanetárias como se fosse possível desaparecer por um tempo e viver em outro lugar outras coisas totalmente inimagináveis.
Era como um personagem de filme disse:
- A gente arranja documentos novos e vai viver uma vida nova.
É claro que não é assim.
A vida que temos é a vida que temos.
Não dá para apagar tudo e fazer outras coisas como se aquela primeira fosse um rascunho ou um treino sério.
De qualquer forma, a brincadeira das viagens interplanetárias nem era tão séria assim: era desaparecer e viver coisas inimagináveis por um determinado período.
Eu voltava sempre depois da viagem.
Mas voltava diferente, melhor.
Embora ninguém percebesse ao meu redor que havia sido abduzido por instantes intermináveis.
Em geral, subia no telhado da casa e ficava lá olhando o céu até um alienígena aparecer e me tele transportar.
Fazia isto quando tinha algum problema.
Era a minha forma de mudar o que não podia ser mudado.
De sair daqui e viver outra vida.
Um dia começaram a me chamar de cabeção na escola.
Eu odiei aquilo.
Tudo começou quando acertei perguntas que ninguém acertava. O professor me elogiou e aí a brincadeira disparou.
Eu me sentia com uma cabeça enorme quando fui para cima do telhado. A cabeça doía muito. Achava que ela ia explodir.
Queria esquecer tudo aquilo como uma mágica.
Lá em cima comecei a olhar o céu e fechei os olhos como se dormisse. Então apareceu um homenzinho de antenas com uma arma de borracha. Ele bateu na minha cabeça com ela.
- Não, não, não, eu gritei.
Minha cabeça explodiu com o toque.
Eu vi os meus miolos se espalhando. Parecia que cada pedaço levava uma memória consigo. Fui esquecendo das coisas.
O primeiro dia de aula apagou devagarinho.
Depois a primeira comunhão, quando fui campeão no futebol, a goiabada cascão da minha avó, o beijo da minha mãe, as mãos fortes do meu pai quando salvava eu e meus irmãos de encrencas.
Não queria perder a memória dos meus pais nem dos meus irmãos, dos meus avós. Eu não queria esquecer nada. Só dos meus amigos da escola. Só daqueles que gozavam de mim.
Mas tudo se apagou.
Eu não tinha cabeça mais: só as orelhas e o rosto restaram.
- O que você fez comigo?
O homenzinho de antenas sorriu:
- O que você queria: esquecer tudo.
- Eu não quero esquecer tudo.
- Grrrrrrrrrrrrrrrrr, fez ele. – Precisa decidir o que quer. Eu não posso ficar mudando tudo o tempo todo.
- Quero tudo de volta.
- Tem certeza?
- Tenho.
O homenzinho esperou um pouco. Viu que eu não mudaria de ideia rapidamente como imaginava. E agiu.
Bateu com a arma de borracha onde seria a minha cabeça para ela voltasse. Ela não voltou. Não mudou nada.
Fiquei morrendo de medo de ser um menino sem cabeça.
Se eu fosse embora daquele jeito iam gozar de mim de novo.
Fechei os olhos novamente e tentei sonhar com a minha cabeça de volta e com todas as minhas memórias de volta.
Fiz um esforço muito grande para imaginar, tanto que doía demais onde seria a minha cabeça.
- Desce daí menino, desce.
Quando abri os olhos vi minha mãe me chamando.
Desci e ela passou a mão onde seria a minha cabeça como se percebesse alguma coisa e eu fiquei pensando: - Será?
Dei um pulo para traz para que não percebesse.
- Tome isso.
Deu um comprimido com água.
Aí eu percebi que ela não sabia de nada.
Achava apenas que eu estava com enxaqueca.
Tomei o remédio e tudo voltou.
Minha cabeça não era tão grande mais.
FIQUE SABENDO
Todas as terças e quintas tem uma crônica nova neste espaço.
Em breve lançarei um livro com este texto e outros que estou preparando para contar cenas do cotidiano que vivi ou fiquei sabendo desse período de pandemia por causa do novo coronavírus.
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