A mulher do cemitério

25 de janeiro de 2021

A mulher do cemitério

Data de Publicação: 25 de janeiro de 2021 14:38:00 SOBRENATURAL - O sobrenatural também tem vez nas histórias que contamos aqui neste espaço para o leitor.

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Após perder a namorada assassinada, o guarda noturno Américo Francisco dos Santos nunca imaginou encontrar uma mulher em um cemitério e muito menos que ela pudesse ser uma grande paixão.

 

 

Era um fio de luz, não mais que isto.

Vinha do fundo da viela que partia da lateral em direção ao centro do Cemitério da Saudade, o mais antigo de Salto. Não se podia identificar à distância qual a sua origem exata.

Aquilo intrigou o guarda noturno Américo Francisco dos Santos, que passava por ali perto de uma hora da manhã de sexta para sábado.

Havia uma hora que ele tinha deixado, na troca de turno, o trabalho de segurança na casa de um empresário. Agora ia descansar. Ao menos era o que pretendia não fosse aquela luz.

- Devo estar vendo coisas por causa da canseira, disse para si mesmo. Mas não conseguia tirar os olhos da luminosidade.

Depois de alguns segundos observando, supôs que aquela nesga de luz viesse de velas acesas atrás de um túmulo na terceira ou quarta fileira de sepulturas, considerando-se do portão da rua onde estava para o centro do conjunto.

Um frio de medo percorreu-lhe as pernas.

Américo vivia de ver coisas estranhas à noite, mas aquilo era demais. Ele não temia fantasmas, só que aquela luz lá lhe dava uma má impressão. Tinha essa sensação de antever problemas.

A solidão de quatro anos, desde que a namorada morrera assassinada, fizera daquele homem uma pessoa afeita ao sobrenatural.

Costumava conversar com a morta.

Tinha muita saudade dela.

A partir do acidente não conseguira se aproximar de mais ninguém. Tornara-se uma pessoa introspectiva, carente, triste. Às vezes, tinha visões com a namorada.

Deteve-se ali mais um pouco pensando que talvez Antônia estivesse querendo mandar-lhe uma mensagem, quisesse falar algo.

De repente, se deu conta do horário, do lugar, da situação. Achou que estava exagerando. O medo voltara. Decidiu ir embora correndo.

Começou andando apressadamente. Iria esquecer tudo aquilo. Não contaria nada a ninguém no dia seguinte. Não queria risos.

 

Mas antes que saísse do espaço da largura do portão viu a luz se mover. Seu corpo tremeu todo. Havia alguém lá, agora ele tinha certeza.

Américo voltou pé por pé, devagar, como se vigiasse secretamente. De onde estava jamais conseguiria ver. Se não fosse ver o que era, não poderia dormir em paz. Sentia uma curiosidade extrema. Era quase uma doença nele.

O grande obstáculo era o medo.

Alguns instantes depois o guarda respirou fundo para se acalmar. Tinha de enfrentar aquilo. Era homem, afinal, ele dizia para si mesmo, encorajando-se. Aproveitou o portão entreaberto e começou a caminhar para dentro lentamente.

Em pouco tempo estava diante do ponto de onde vinha a luz. Eram mesmo velas atrás de um túmulo. O estranho é que tinham sido colocadas ao lado de um corpo sem caixão. Ele tremeu de medo ao ver. Mas era míope e não viu direito.

Afastou-se de costas com a intenção de se proteger. Não se deu conta dos túmulos. Acabou caindo em cima de uma sepultura. Um vaso de flores, colocado nela, foi parar em suas mãos. Com o medo, Américo se armou dele.

Depois raciocinou.

- O que poderia encontrar em um cemitério, senão corpos de gente morta?

A partir disso, levantou-se firmando os olhos para tentar enxergar melhor. Precisaria entender por que razão o coveiro não enterrara aquele corpo. As velas em torno. Tudo era estranho demais. Será que aquilo não era uma macumba bem feita?, ele se perguntava.

Depois dizia para si mesmo:

- Fosse o que fosse, teria de chegar mais perto para saber. Com o vaso em uma das mãos, Américo se dirigiu ao corpo ao lado das velas bem devagar, olhando-o atentamente.

Pouco depois, observou que ele se mexia, talvez empurrado por alguém. Não só isso: vinham gemidos de sua direção.

Alguém estava querendo assustá-lo, pensou.

O pior é que conseguira.

O guarda estava apavorado.

Pensou em fugir de vez.

Foi aí que notou as pernas travadas. Não conseguia comandá-las. Tremia o corpo todo. Os dentes se chocavam como se estivesse com frio. Ele estava paralisado ali de medo.

Passados alguns segundos mais, se deu conta de que o corpo não era de um morto. Nem havia mais ninguém ali. Fora o medo que criara.

Tratava-se de uma pessoa muito bem amarrada. O guarda ouviu sussurros vindos do corpo. Era um pedido de socorro. Tentava entender o que acontecia, mas mal enxergava.

O sangue lhe subia ao rosto, dando-lhe calor.

Américo estava transpassado.

Finalmente percebeu que se tratava de um corpo de mulher. Notou os seios fartos, os cabelos compridos, as curvas femininas.

Uma corda prendia as pernas dela por cima da calça jeans, também os braços, o pescoço. A boca estava amordaçada com um lenço. 

Ela parecia implorar ajuda, agora ele via.

 

Aos poucos, o medo de Américo foi se dissipando. As pernas voltaram a se movimentar. Ele a libertou então ainda receoso.

A primeira coisa que ela fez foi meter-lhe um beijo na boca. Aquilo causou um susto sem tamanho nele. A boca dela estava fria, quase gelada mesmo. O lugar não era dos melhores.

Tudo o que houvera antes fez o beijo provocar associações estranhas na cabeça do guarda.

Mas ele se controlou.

- Desculpe. Não me contive. Estava aqui há horas. Você é o meu herói, cara. Como me descobriu?, disse ela abraçando-o fortemente contra o corpo para justificar o gesto anterior.

- Eu vi a luz, respondeu ele, como se falasse ao infinito. O olhar perdido, Américo estava atônito ainda com tudo aquilo e com aquela mulher.

- Que bom, amém! Agora vamos sair daqui, disse a mulher sem se importar.

Ela saiu correndo para o portão. Parecia fugir da polícia de tão rápida. Só quando estava quase chegando no portão, Américo deu por si.

Foi atrás mais rapidamente.

Chegaram juntos à saída.

Ele ofegante pela disparada.

Ao abrir um dos lados do portão, o guarda viu um carro vindo naquela direção.  Voltou-se para a mulher, pediu em voz baixa que ficasse onde estava. Não teriam como explicar estarem saindo do cemitério de madrugada, disse.

- É verdade, concordou ela. Apesar de que eu acho que, se vissem a gente aqui, tomariam um susto tão grande que se converteriam a qualquer religião. Ah, eu garanto isso!

Os dois se abaixaram atrás do túmulo mais próximo do portão e riram em silêncio da frase.

 

O carro passou.

Três casas à frente, parou.

Enfim, entrou na garagem.

Levantaram-se, abriram o trinco.

Na sequência, ganharam a rua.

- Quem fez aquilo com você?, quis saber ele ainda perplexo com tudo.

- Fui assaltada. Levaram todo o meu dinheiro. Depois me trouxeram para cá.

Agora eles já estavam na rua que fazia frente para o cemitério de onde Américo viera.

- Onde você estava quando foi atacada? Quem são eles? Como fugiram?

- Ei, calma rapaz! Uma pergunta de cada vez. Você não acha melhor a gente ir a um bar tomar alguma coisa enquanto conversamos?

- Claro que não. Nós vamos à polícia. Você precisa registrar queixa de tudo isso.

- Deixa de ser bobo. Ir à polícia? Só se seu eu acreditasse em Papai Noel. Os caras que fizeram isso comigo são malacos. A polícia não pega eles não. Depois, eu não acredito em polícia, disse enquanto acendia um cigarro que tinha encontrado amassado no bolso de trás da calça. - Nesses casos, o que a gente tem que fazer é dar o troco, continuou ela. É isso, dar o troco, enfatizou olhando firmemente para os olhos dele.

- Então você conhece bem os ladrões?

- Claro! Vamos tomar pelo menos uma água tônica. Eu tô com a cabeça rodando.

- Está bem. Vamos. Tem um bar aqui perto.

Os dois entram no bar próximo ao cemitério.

- Eles bateram em você?

- Não. A gente estava em uma boate em Itu, sabe? Fomos eu mais três amigas. A Celinha era a mais animada. Rolava um som da pesada, eu é que não tava no clima. Sou que nem carro a álcool, sabe? Demoro duas horas pra pegar. A Celinha me deu um negócio pra tomar. Disse que era pra dar uma relaxada. Ver se me animava. Cara, era um treco horrível. Uma mistura, sei lá. Cinco minutos depois eu tava zureta geral.

Os dois se sentaram a uma mesa.

- Onde entram os ladrões nessa história?

- Calma rapaz. Pede um chope aí pro garçom.

O garçom se postava atrás dele.

- Você não queria uma tônica?

- Quer me enferrujar? Só bebo água em situações religiosas. Pede um chope.

O garçom riu comportadamente.

- Tá bem. Traz dois chopes, disse ele.

O garçom se virou, ela retomou a conversa.

- Como eu falava, estava zureta demais. Aí fomos dançar. A Celinha praticamente me arrastou pra pista de dança. Você vai a boates por aqui? Eu não conheço nada aqui.

- Não. Eu sou guarda noturno. Não dá para sair muito à noite. Você entende, né?

- Pois você não perdeu nada. Aqueles caras de que eu falei, os ladrões, sabe? Estavam lá...

- Na boate?

- É, cara. Dançaram comigo. Eu tava zureta, mas reconheço eles. Se encontrar com eles de novo, sou capaz de apontar cada um. Fiquei com tanta raiva. Eu ainda vou me vingar. Se não for deles, será da família deles. Pode escrever.

- Nossa como você está brava. Mas como foi o assalto? Foi lá dentro da boate?

- Claro que não. Um deles me disse que se chamava Márcio. Ficamos conversando. Depois de um tempo rolou um clima entre a gente, sabe? Então ele me convidou pra dar um rolê. Achei que não tinha nada demais. Mas antes não tivesse ido. Pouco depois que a gente saiu, ele virou o carro para uma estrada na saída da cidade. Muito rapidamente a gente foi parar em um matagal terrível. Aí se levantaram de lá de trás mais dois caras horríveis.

- De trás de onde?

- Do banco de trás. Pensei que ia ser estuprada ali mesmo...

 

Agora Américo estava mais relaxado.

Não acreditava na história da mulher, mas fazia tipo. Pensou consigo mesmo que poderia tirar algum proveito sexual dela. Para ele, se tratava de uma prostituta que fora deixada no cemitério de sacanagem e agora contava história.

Os olhos do guarda percorreram os seios dela. O decote abusado era um convite. Há muito que Américo não se encontrava com ninguém assim.

Apesar disso, ainda não tinha coragem de tentar uma investida.

Ela percebeu o olhar.

Em vez de se importar, fixou os olhos nele.

Ele ficou sem graça. 

Desviou.

- O que aconteceu depois? Eles fizeram o quê?, perguntou demonstrando ansiedade com o olhar.

- Espera um pouco. Pede mais um chope? Tô com a garganta seca de tanto falar.

- Garçom!

Ela voltou a falar.

- Aí, era exatamente me estuprar o que eles queriam. Só que eu sou esperta. Quando desci do carro, dei um chute no meio das pernas do cara. Depois corri como uma louca pelo mato.

- Os outros dois não foram atrás de você?

- Foram. Eu corri muito, cara. Quando ganhei uma certa distância, me escondi no mato. Fiquei esperando agachada. Um deles passou, então eu joguei um paralelepípedo na cabeça dele com toda a força que o medo me deu. Lá onde a gente estava tinha muitas pedras dessas.

- Nossa, e ele morreu?

- Não sei, cara.

Enquanto ela falava, gesticulava muito.

Como usava uma blusa fina, seus seios pareciam pular para fora.

O guarda se entusiasmava.

Tentava esticar a conversa.

- O outro, como você se livrou dele?, perguntou retirando o olhar do decote.

- Bom, esse da pedra caiu no chão. Não se mexeu depois. O outro foi ajudar ele. Eu corri de novo. Então o primeiro, o do chute, me pegou. Ele me deu uma pancada terrível na cabeça. Desmaiei na hora, cara. Olha o galo que ficou.

Boquiaberto, Américo viu um corte na cabeça da mulher bem no local onde ela descrevia.

- Pede mais um chope.

- Outro?

- É, vai.

- Tá bem. Agora conta o resto. Como você veio parar aqui? Como te levaram a um cemitério?

- Isso eu não sei, cara. Depois da pancada, caí dura. Acordei aqui. Fiquei horas no cemitério. Mas não estou em paz, não.

- Você é daqui de Salto?, perguntou ele tentando mudar de assunto.

- Sou. Moro nessa rua do cemitério mesmo. Aliás, minha mãe já deve estar dando à luz, porque eu não voltei. Disse que chegaria umas dez. Sou filha única, sabe como é? Ela sempre acha que vai me perder. Mal sabe que eu já estou completamente perdida, disse rindo.

- Então vamos embora. Quer que eu leve você?, entusiasmado pelo número de chopes, ele pensava agora mais atrevidamente em sair do bar para tentar algo mais com ela.

- Como não, cara? Vamos nessa.

- Sabe que nós conversamos até agora sem que eu soubesse o seu nome.

- Pode me chamar de Raca.

- Raca?

- É. Diminutivo de Raquel. Todo mundo me chama assim em todo lugar.

- O meu é Américo.

Eles apertaram as mãos.

Américo pagou a conta.

Os dois saíram do bar meio cambaleantes. O número de chopes fora demais.

 

Em uma das casas para baixo do cemitério, ela parou subitamente.

- É aqui, gritou. É aqui que eu moro.

- Não grita. Já é tarde. 

Ela estava bêbada. Não se importava se era tarde. Menos ainda se falava alto.

Ele achou que, se tentasse alguma coisa, ela poderia fazer um escândalo. Já tinha gritado há pouco. O guarda noturno resolveu adiar.

- Bom, você está entregue. Já vou indo então, disse ela para espanto dele.

- Eu não, você está entregue, disse ele consertando a frase dela e emendando uma proposta: - Foi legal a gente se conhecer. A gente pode ser ver amanhã? O que acha?

- Não, eu acho que não.

- Por que não?

- Porque eu não acho uma boa. Acho que bebi demais. Você deve estar pensando coisas erradas de mim. Eu não sou dessas, entendeu?

- Não estou pensando nada.

- Está sim. Eu não sou o que você está pensando. Até um dia rapaz.

Ele já se virava decepcionado, quando ela disse:

- Calma cara. Não vai me dar um beijo de despedida? Ficou bravo assim?

Ao aproximar a boca do rosto dela, Américo foi puxado. Ela lhe deu um beijo profundo, de encher a boca. Depois passou a mão por entre as pernas dele. O guarda ficou elétrico. Quis agarrá-la, ela se soltou dando um pulo para trás.

- Agora vai. Obrigada por não me estuprar, disse com um risinho maroto nos lábios. Ele já se virava embevecido, ela gritou: - Espera. Se quiser, encontro você de novo.

As mais loucas fantasias passaram pela cabeça dele  por um instante que parecia interminável.

- Eu quero, disse apressado. - Eu quero sim. Passo aqui na sua casa amanhã?

- Não, ela disse rapidamente.

Depois ficou muda, estabelecendo um silêncio torturante para ele. Ao cabo de alguns segundos de ansiedade, completou:

- Espero você no portão do cemitério, mas não amanhã: na segunda-feira.

- Lá?

- Por que não? Tem medo? Não é mais herói?

- Imagina. Sou homem, não...

- Na mesma hora então, ela cortou.

Américo ainda tentou perguntar a razão de ser só na segunda o novo encontro, em vez de sábado, mas ela entrou rapidamente.

Ele também não entendeu o porquê de ser na frente do cemitério, mas não importava.

Ficara deslumbrado com a possibilidade e já sonhava com o que faria com ela no encontro.

Na segunda, lá estava o guarda no portão do cemitério conforme o combinado.

Passava de uma hora da manhã.

Em pouco tempo, ela apareceu.

Agora usava um vestido negro com um decote em “v” tão profundo quanto a blusa do outro dia.

Dava para ver os seios conforme se movimentava. Propositalmente, não usava sutiã. Os seios fartos pareciam saltar aos olhos dele.

Sem dar tempo para conversas, a mulher arrastou Américo para trás de um dos túmulos. Começaram beijos mais quentes antes mesmo de chegar ao local. O guarda se entregava àquela mulher, sedento que estava de sexo.

Ela era misteriosa demais.

Aquilo o atraía.

Américo já não a considerava uma prostituta. Achava que ela estava gostando dele pela forma inusitada como se conheceram.

Embora não acreditasse na história da boate de Itu contada por ela, ele achava que ela fora assaltada mesmo no outro dia.

Minutos depois estavam fazendo sexo em cima de uma das sepulturas.

Nem chegaram a tirar as roupas.

Foi um encontro louco, desesperado, totalmente inusitado para ele.

O guarda se perdeu de vez.

Naquela noite, ele só foi para casa após o amanhecer. Ficou gozando aqueles momentos por um longo tempo sobre o túmulo.

Ela disse que ele não deveria levá-la para casa.

Não queria chamar a atenção dos pais.

Parecia uma adolescente seduzida pela primeira vez. Ele concordou sem questionar.

Quando chegou a sua casa para dormir, o guarda estava tão feliz que nem se importou com o irmão prostrado no sofá da sala vestido com suas roupas. O guarda não sabia o porquê daquela felicidade toda. Nem queria saber.

Achava que estava sonhando.

Só que não queria de forma nenhuma acordar.

 

Após aquele, outros encontros se sucederam.

Sempre no cemitério.

Quando ele queria saber as razões, ela dizia que o lugar era afrodisíaco para ela.

Américo já se sentia apaixonado.

Falava o tempo todo daquela mulher para o companheiro de trabalho.

Descrevia uma mulher fantástica, mas pouco ou nada sabia dela na verdade.

Um mês depois passou a levar lembranças da mulher para casa. Um dia foram os brincos que ele arrancou com a boca ao beijá-la em fúria. Em outro fora uma calcinha cavada, de renda preta.

Reuniu diversos objetos.

Ao final de dois meses, pediu uma foto.

Ela deu sem pestanejar.

Américo guardava as lembranças como troféus.

Ter uma foto para ele era como se tivesse se estabelecido um compromisso.

Da primeira namorada, ele só ganhara um retrato depois de oito meses.

Seu quarto agora estava repleto das lembranças da mulher do cemitério.

Não havia mais nada da ex-namorada.

No começo ele se entregara a ela para desafogar suas necessidades físicas há muito sublimadas. Depois passou a se sentir atraído. Agora pensava até em morar com ela.

Se fosse o caso, até se casar.

 

Passaram-se três meses do primeiro encontro.

Em um sábado pela manhã, bateram na porta do guarda. Ele estava dormindo. Demorou a abrir. As batidas eram insistentes.

Américo abriu irritado já.

Era a polícia.

Dois policiais militares.

Eles sacaram os revólveres, tiraram algemas. Enquanto um apontava a arma para ele, o outro o algemava. Américo não teve tempo de nada.

- O que houve? Eu não fiz nada, foi logo dizendo totalmente perplexo com tudo.

Prenderam-no por assassinato.

Os policiais disseram que ele matara Raquel de Souza, mulher com quem vinha se encontrando.

De nada adiantou negar.

Os homens nem vasculharam a casa.

Encontraram facilmente os pertences de Raquel de Souza por todo o quarto.

- Isso não é prova. Estou saindo com ela. Ainda ontem estivemos juntos. É normal ter coisas dela aqui, disse Américo aos berros.

- Como ainda ontem?, perguntou o policial com ar de surpresa, fixando o quanto podia os olhos vesgos nele. Depois o homem quase deixou cair um palito, que usava no canto direito da boca, para completar a frase: - Ela morreu faz mais de três meses. Você é um demente mesmo.

- Morreu como? Não é possível, eu...

- O corpo dela foi achado em um matagal. Ela foi estuprada, você sabe. Estava toda amarrada. Tinha uma mordaça na boca. Levou um golpe de paralelepípedo na cabeça. Morreu de hemorragia. Você é um monstro cara.

- Você tá louco. Isso não aconteceu. Ter foto, roupa, brinco, não é prova de nada. São lembranças só. Nós estamos juntos. É isso.

- Ah é? Carteira com R$ 200,00 não é lembrança não. Além disso, você usou o cartão de crédito dela. Fez compras até estourar o limite. Deixa de graça, seu malandro. Você não engana ninguém. Mas nós o pegamos.

- Eu não fiz isso. Eu juro. Eu não fiz.

Américo pensou que estivesse tendo um pesadelo. Tudo aquilo não parecia real. O guarda procurou se lembrar dos encontros. Era tudo tão recente. Ele não poderia ter imaginado tudo aquilo. Mesmo que o tivesse, não tinha matado ninguém. Seria incapaz disso. Depois, os gastos do cartão, a carteira. Eles deviam estar enganados. Mesmo assim, os policiais o levaram para a cadeia, onde aguardaria o julgamento.

 

Sem dinheiro para pagar um advogado, o guarda perdia as esperanças à medida que o tempo passava. O patrão o mandara embora assim que soube. Não quis nem falar com ele. Enviou o dinheiro pelo outro guarda. Após a entrega nem esse companheiro foi visitá-lo mais.

Ninguém aparecia.

Ele sonhava ainda com a Raca. Se ela aparecesse, tudo se esclareceria.

Apesar disso, só o tempo passava. Nada acontecia. Américo definhava na cadeia.

Seis meses depois, pouco antes do seu julgamento, um dos policiais da cadeia chamou o guarda noturno na cela. 

- Pode sair Américo.

- O que aconteceu?, perguntou ele.

- Chegamos a você por informações anônimas. Os telefonemas falavam de um cara que atacava mulheres naquela região, você sabe. Deram descrição que bateu com você. Aí as provas encontradas na sua casa foram definitivas para nós. Mas, depois que você foi preso, os crimes continuaram. Isso deixou a gente intrigado. Então mantivemos você aqui enquanto investigávamos para ter certeza de que não era coincidência.

O guarda estava perplexo.

Então ficara preso por nada.

- Bom, finalmente vocês descobriram que eu não tinha nada a ver com isso? Que a Raquel não morreu? E que tudo não passou de um belo de um engano, não é? Não é isso?

- Quase isso. A Raquel morreu mesmo, infelizmente. Só que chegamos a um tal de Josué, preso por tráfico de drogas, que confessou o crime. Confirmamos isso. Matou em uma das viagens paranoicas que fez. Esses caras são doidos, disse o policial olhando para o chão agora, como estivesse envergonhado de ter detido o homem errado. - Você não tem culpa de nada, continuou. - Se quiser, pode entrar com uma ação judicial contra o Estado.

Américo deu de ombros.

Quis ver o assassino.

Ao chegar à cela, ficou estarrecido outra vez.

Deparou-se com o próprio irmão, com quem morou até ser preso meses antes.

É bem verdade que o irmão pouco aparecia em casa. De dia então, Américo sempre dormia. Josué era um caso perdido para ele havia anos.

Entregara-se às drogas aos 14. Agora, aos 21, era um morto-vivo. O guarda não atinara com o nome antes. O irmão não o reconhecera também. Estava sem direção.

 

Desde aquele dia, Américo nunca mais foi o mesmo. Como antes, continuou passando em frente ao Cemitério da Saudade de madrugada mesmo sem o trabalho como guarda noturno.

Agora ficava horas olhando para o nada lá.

Perguntando-se, talvez, onde estaria aquela luz, aquele fio de luz, não mais que isto.

 

 

 

Anote isto

Em todos os domingos você encontrará um conto novo neste espaço com vários tipos de abordagem.

Imagem da Galeria Uma mulher misteriosa e altamente sexy dentro do cemitério
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