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Uma pedra é construção
Data de Publicação: 17 de novembro de 2020 19:01:00 LEMBRANÇAS - No passeio das memórias da infância encontramos mundos mágicos e aventuras verdadeiramente cinematográficas.
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
O maior tesouro que qualquer ser humano pode levar para a vida é a imaginação. Com ela resolvemos até problemas econômicos, o que faz toda a diferença quando se é pobre. Sempre tive a graça de criar mundos.
-Só Deus sabe o nosso destino.
Era com essa frase, uma das mais famosas do seriado "Shazan e Xerife", que eu e meu irmão Ednei abríamos a nossa aventura diária com um brinquedo improvisado: um caminhão feito com uma lata de leite em pó.
No seriado, uma bicicleta foi aumentada com tanta coisa que virou uma camicleta ou um caminhão bicicleta.
O sonho dos personagens de Paulo José e Flávio Migliaccio, dois mecânicos atrapalhados, era encontrar uma peça mágica que fizesse a bicicleta voar e eles saíam pelas estradas em busca dessa peça.
Era 1972.
Nossos pais não tinham dinheiro para comprar brinquedos e ainda tinham muitos filhos (a essa época já éramos cinco).
O jeito era improvisar e usar um legado que toda criança tem de sobra: a imaginação.
Minha mãe apanhava leite em pó no posto de saúde. A lata vazia virava uma carreta depois que furávamos o centro da tampa e do fundo e passávamos dois arames por dentro, formando um arco de um lado e um elo de corrente que prendia a outras latas do outro lado.
Esse arco era amarrado a um barbante para que pudéssemos puxar.
Depois de furar e passar os arames, nós enchíamos as latas de areia ou terra e estava pronta a carreta.
O barulho do motor e das freadas a ar que víamos nas carretas reais nas ruas nós fazíamos com a boca.
Quantas viagens fizemos pelos morros e descidas existentes nos terrenos baldios que margeavam a nossa casa, pelos rios e ribanceiras feitos pela enxurrada e pela erosão nos barrancos que a chuva percorria.
Éramos Pedro e Bino nos metendo em inúmeras ciladas muito antes de inventarem o “Carga Pesada”.
E quantas aventuras vivemos dentro da nossa cabeça, imaginando desafios e coisas muito maiores que nós naquele espaço de terreno que a nossa infância nos permitia para brincar com o que conseguíssemos inventar.
A imaginação é um veículo de sonhos.
Ninguém usa melhor a imaginação que os mais pobres. Não é uma questão de privilégio não, mas de necessidade mesmo. A gente aprendia a se virar para viver a infância do jeito que dava.
As brincadeiras eram inesgotáveis.
Lembro-me também de que uma vez eu e meu irmão aprontamos alguma e nossa mãe nos deu uma bronca:
- Sumam daqui.
Não sei o que fizemos, mas ela estava uma fera.
Correu atrás de nós com o chinelo na mão.
Corremos para um matagal e escapamos felizmente.
Depois, pegamos forquilhas de galhos de árvore e fizemos revólveres. Um cabo de vassoura virou cavalo. Éramos então os vilões do velho oeste americano.
Passamos uma tarde inteira escondidos dos xerifes e invadindo tabernas para dançar com as mulheres que eram conquistadas na base dos atos de heroísmo.
Meu irmão se metia em confusões com valentões armados que queriam resolver tudo no duelo.
A sorte sempre andava conosco como nas verdadeiras histórias do velho oeste americano, onde a pontaria não era o forte de nenhum atirador metido a dono do pedaço.
Não é à toa que o William “Bat” Masterson, um dos xerifes mais famosos do velho oeste americano dos filmes que nosso pai nos contava e também que chegamos a ler em gibis, dava como dica: “Se você quer atingir o coração do seu oponente, mire na virilha”.
Lutávamos contra índios e roubávamos as índias mais bonitas, que queriam fugir com a gente no nosso cavalo.
As índias eram representadas por pequenos arbustos que colocávamos presos a galhos de árvores e que nós imaginávamos como sendo o cabelo comprido delas.
Tudo estava na nossa imaginação, mas era real.
Até um corte no dedo ao mexer com os galhos de árvores, virou ferimento à faca na luta com os índios.
A imaginação é o maior legado que alguém pode ter.
Associada à criatividade, ela é uma chave de grifo na mão do faz-tudo que a vida cria nas periferias todo dia.
Já usei muito disso quando criança: fiz tevê pegar com pedaço de bombril, montei gravador de fita cassete com restos de televisão, consertei perna de óculos com arame.
A lista é enorme sem dúvida.
Agora na pandemia por conta do coronavírus, fiz halteres com garrafas de água sanitária e areia. Montei colchonetes de ginástica com tapetes. Fiz abdominais usando escada.
A imaginação faz o meu dia parecer lindo, porque eu vejo o céu e voo, sinto o sol e viajo e percebo a brisa e mergulho em um silêncio renovador, como se nada me prendesse.
O melhor disso é que a minha imaginação me faz sonhar com um mundo novo sempre, o que me renova.
Sem imaginação, uma pedra seria apenas uma pedra.
Para mim, uma pedra é construção.
FIQUE SABENDO
Todas as terças e quintas tem uma crônica nova neste espaço.
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