Uma bruxa mora na rua da minha casa

14 de fevereiro de 2021

Uma bruxa mora na rua da minha casa

Data de Publicação: 14 de fevereiro de 2021 21:23:00 UMA MULHER QUE VOA NA VASSOURA - Hoje uma história infanto-juvenil sobre feitiços e o medo que eles geram no imaginário popular sempre.

Compartilhe este conteúdo:

 

Ela detestava os meninos que jogavam futebol usando o seu portão como trave. Não podia dormir e corria atrás deles com uma vassoura. Não demorou para acharem que ela era mais que uma velha chata.

 

 

Dona Elvira não suportava barulho.

Desde quando fizera 60 anos, a surdez de um dos ouvidos a deixara em um estado constante de irritação com qualquer coisa.

A mudança para o final da rua Hélio Steffen, no Jardim Santa Terezinha, um dos bairros próximos ao terminal rodoviário de Salto, só aumentara o problema.

Ela usava uma touca para não ouvir as estrepolias da garotada da rua.

Mas não conseguia dormir à tarde, após o almoço, como gostava. Os meninos jogavam futebol usando o portão dela como trave.

A bola explodia nos ferros, lá ia ela reclamar.

Apesar da idade, dizia todo tipo de palavrões com a inconsequência de qualquer criança.

Ameaçava bater.

Várias vezes correra atrás do Nelson, o mais peralta dos meninos, com uma vassoura nas mãos que usava como arma.

Se pegasse, daria uma surra, com certeza.

 

No começo, até que a bronca surtiu efeito.

O medo que eles tinham era grande.

Se bem que, verdade seja dita, temiam mais a cara de má que ela tinha que as surras que pudessem vir a sofrer caso fossem pegos.

O rosto de dona Elvira se deformara com o passar dos anos mais que o normal.

Das fotos que guardava na cômoda, dos tempos de adolescente, quase nada havia sobrado para contar história hoje.

Agora as sobrancelhas grossas, o nariz comprido, a pele enrugada, a boca parecendo a abertura de um saco de estopa, tudo era muito assustador, sobretudo para a molecada da rua.

Além disso, dona Elvira tinha manias.

A maior delas era a de limpeza.

Vivia com a vassoura na mão.

Não suportava ver nada desarrumado.

Ela se levantava cedo para colocar ordem em tudo na casa, no entorno dela e na rua.

 

Certa vez, a garotada atirou ovos de galinha na calçada dela, só de pirraça.

A mulher fez um tempo quente nem bem passava das 5 horas da manhã.

Acordou aos berros os vizinhos, pais dos meninos, para responsabilizá-los.

Esbravejou por minutos intermináveis.

Disse palavrões.

Ficou a ponto de um ataque cardíaco.

No auge da fúria, afirmou que não tinha medo de morrer, que não tinha medo de matar também e olhou de olhos arregados para os meninos da rua, de quem espumava de raiva.

O caso era só uma questão de lado, dizia aos berros para explicar o que sentia.

Ninguém levou a sério, mas o pai do Alexandre, outro dos meninos da rua, disse para a mulher dele como prevenção:

- Toma cuidado com essa bruxa.

 

Aquilo ficou na cabeça do garoto.

Quando se encontrou com os amigos, ele contou a história que ouvira em casa.

Então todos passaram a pensar no assunto.

A partir dali, os meninos começaram a comentar as possibilidades de que dona Elvira pudesse mesmo ser uma bruxa disfarçada.

Eles disseram todos ao mesmo tempo:

- Basta olhar a cara feia dela, a vassoura sempre na mão, a irritação toda.

Alexandre se lembrou de uma vez que Nelson esticou um fio de náilon, na altura da cabeça de dona Elvira, no terreno baldio que ficava ao lado da casa dela, para sacaneá-la mesmo.

Quando ela passou, sua peruca ficou enroscada, exibindo uma assombrosa falta de cabelos: ela tinha uma cabeça oval.

- Aquela era uma prova de que dona Elvira era bruxa, disse Alexandre. – Ela é careca. As bruxas são carecas. Eu já ouvi meu tio falar.

- Ela tem um nariz grande também, disse Mosca, outro dos meninos que jogavam futebol na rua e que fazia parte da turma.

- O que mais confirma que é bruxa é a coceira: dona Elvira vive se arranhando com aquelas unhas pretas de terra, contou Antônio, que era o goleiro do grupo e o responsável por deixar a bola explodir no portão dela.

A turma chegou à conclusão de que dona Elvira se transformava dentro da sua casa para depois assustar os garotos que jogavam futebol.

- Eu já ouvi: ela foi bater na janela de casa de noite. Parecia um morcego, disse Alexandre. – Só não sabia que era ela. Nunca tinha pensado nisso antes. Agora tenho certeza.

- Em casa ela também já foi, confirmou Antônio. – Eu também não sabia que era ela. Agora que estamos falando, tenho certeza de que era. Nossa, tem uma bruxa na rua.

 

Além da peruca, os garotos se lembraram de mais um episódio ocorrido com dona Elvira.

Uma vez o grupo foi para o terreno baldio perto de escurecer para aprontar como sempre.

Os quatro se dividiram.

Mosca ficou de vigia.

Antônio fez um buraco de 30/40 centímetros, Nelson colocou cacos de vidro no fundo. Alexandre cobriu a entrada com um disfarce.

A intenção era fazer dona Elvira cortar os pés.

No dia seguinte, quando ela limpava o terreno, os meninos foram insultá-la.

Dona Elvira correu atrás deles como uma louca, até cair na armadilha.

Todos acharam que sairia com os pés ensopados de sangue, já que os cacos de vidro eram bem grandes e cortantes.

Mas que nada: ela nem se cortou.

Nada, nenhum corte.

Só ficou mancando uma semana devido ao tombo que levou por causa do buraco.

- Isso é coisa de bruxa, disse Mosca.

- É. Eu acho que ela fez os cacos de vidro sumirem de repente, afirmou Antônio.

Verdade ou não, o fato é que os cacos não estavam no buraco quando eles foram olhar.

 

Mosca se lembrou ainda do dia em que foram espiar dona Elvira pelo muro.

A casa dela tinha um muro alto do lado do terreno baldio e não dava para ver nada lá do chão onde eles estavam.

Ela não havia saído nem até a porta no dia.

Os quatro se juntaram fazendo escada com os próprios corpos uns para os outros.

Alexandre foi o único que teve chance de ver alguma coisa dentro da casa.

Ele estava no topo da montanha humana.

Mas tão logo fixou os olhos para ver o que achou ser uma caveira da cabeça de uma pessoa, dona Elvira o surpreendeu e atirou uma bacia de água fria nele e nos outros.

Foi uma correria danada.

Quando se refizeram do susto, eles acharam que havia algo de feitiço naquela água, porque eles não paravam de se coçar.

- Deve ser a água do banho dela, disse Alexandre com os olhos vidrados de medo.

 

Apesar de todos os casos lembrados, Nelson não tinha tanta convicção.

Ele sacudia os ombros para as observações dos amigos sobre dona Elvira ser bruxa.

- Onde já se viu acreditar em bruxas? Elas não existem. Vocês estão ficando loucos.

- Se não existissem, pessoas como dona Elvira não seriam tão más. Depois, eu acho que ela é mesmo uma bruxa, porque as bruxas detestam garotos. Ela não detesta a gente?, perguntou Mosca cheio de razão com a frase.

- O melhor negócio é a gente provar que ela é uma bruxa. Assim, terão que levar ela daqui e nós nos livramos dela, disse Antônio.

Nelson torceu o nariz, mas concordou.

Achou que podia dar certo para se livrarem de dona Elvira. Ele também queria se livrar dela. Mas, lá no fundo de verdade, queria provar para si mesmo que as bruxas não existiam.

Combinaram então de se esconder no telhado da casa de dona Elvira para presenciar a transformação dela e denunciá-la.

 Levariam uma máquina fotográfica.

Além disso, se todos estivessem juntos não haveria dúvidas para serem esclarecidas.

- Também ninguém ficaria com medo, pensou alto Antônio, que chegou a se arrepiar.

 

Dona Elvira morava em uma casa semiacabada pelas dificuldades financeiras.

O telhado, na verdade, era apenas uma laje.

Ela era cheia de furos em vários lugares, à espera da passagem dos fios de energia quando as telhas fossem colocadas.

Esses buracos eram cobertos por pedaços de telhas para não deixar chover dentro segundo os meninos se informaram, ao menos não muito.

O flagra da transformação seria feito pelo terreno baldio que ficava ao lado da casa.

Esse era o jeito mais rápido de chegar perto da casa sem serem percebidos por ela.

No intervalo das partidas de futebol, o grupo sempre se reunia naquele terreno.

Ali os meninos confabulavam, trocavam figurinhas, faziam cabanas, brincavam de tiroteio, explodiam bombinhas, soltavam pipa.

Só não dava para jogar bola lá no terreno. porque ele era muito irregular.

Como o terreno era o lugar preferido da turma depois do futebol na rua, não seria suspeito todo mundo ir para lá ao mesmo tempo, apesar de saberem que dona Elvira detestava aquelas reuniões deles.

Ela vivia expulsando os meninos de lá.

O terreno não era dela, mas ela o limpava todos os dias das estrepolias armadas pela garotada devido à sua mania de limpeza.

E as estrepolias não eram poucas.

Os quatro decidiram tomar uma escada do pai de Alexandre por empréstimo para ajudar a surpreender definitivamente dona Elvira naquele dia mesmo e assim garantir que todos pudessem ver, já que subiriam no muro.

Da outra vez, os que ficaram embaixo, fazendo a sustentação, não conseguiram ver.

- Precisamos fazer isso à noite, disse Nelson.

Aproveitariam o fato de ser domingo, dia em que os pais os deixavam brincar na rua um pouco mais que os dias de semana.

- A gente tem de fazer antes de o “Fantástico” acabar, disse Alexandre, temendo que seu Aristides, o seu pai, descobrisse o uso da escada.

Naquela época, o programa da Globo começava pontualmente às 20h.

- Então vamos para lá às 8 horas, propôs Mosca, já que os meninos não mediam o tempo do dia por 24 horas e sim por manhã, tarde e noite: as 8 horas eram as 20h.

 

Não eram 19h30, o grupo já estava no terreno baldio com a escada nas mãos e se articulando.

Rapidamente, os meninos chegaram à laje.

Quando se acomodavam para observar pelos buracos de passagem dos fios, Alexandre, que olhou primeiro, viu dona Elvira deitada no chão da sala com um copo na mão.

- Será que ela toma algum remédio para se transformar?, perguntou o menino.

- Chio, fez Nelson, que olhou em seguida. -Fiquem quietos, senão ela pode ouvir.

Ficaram uns segundos mais em silêncio e todos foram olhar pelo buraco da laje, mas ela não se movia nem se transformava.

- Acho que ela não conseguiu tomar o remédio para virar bruxa. Olhem em cima da cômoda, junto daquelas fotos. Não é um remédio?, perguntou Antônio.

- É verdade, concordou Alexandre depois de olhar para confirmar a informação.

- Vejam, ela está ficando roxa, gritou Nelson na sua vez de olhar pelo buraco.

- Aí, meu Deus, vamos sair daqui, falou Alexandre, já segurando a ponta da escada e pronto para se atirar no terreno.

 

Como todos estavam com medo, tentaram sair todos ao mesmo tempo.

A escada se deslocou.

Três deles caíram dentro da área murada da casa de dona Elvira. Apenas Alexandre escapou.

Não chegaram a se machucar, porque havia dois colchões velhos no chão, perto da casa.

Eles caíram em cima deles.

O muro era alto para escalarem de volta.

- Alexandre, Alexandre, você está aí?, tentaram falar sem gritar para não chamar a atenção de dona Elvira e serem pegos.

Alexandre, mais do que depressa, já havia descido no terreno baldio. Não ouviu os chamados e não se importou em voltar.

- Socorro, socorro, sussurrou dona Elvira dentro da casa com a voz enrolada.

Só aí é que os meninos ouviram o som e perceberam que vinha de dentro da casa.

- Vamos olhar pela janela, disse Nelson.

- Eu não. Isso deve ser um truque para pegar a gente, tentou se esquivar Mosca, que se considerava o mais esperto da turma.

Mesmo com medo, Antônio se deixou levar pela curiosidade. Por fim, os três acabaram esticando a cabeça pela janela para olhar.

Dona Elvira parecia agonizar.

- Ela deve estar passando mal. Não está transformada ainda, disse Nelson.

- Deve ser porque ela não conseguiu tomar o remédio da cômoda, concluiu Antônio.

- É, mas eu tô com medo de esperar ela virar bruxa de verdade, disse Mosca tremendo e passando o terror que sentia aos outros.

 

Enquanto isso, Alexandre correu para casa.

Avisou os pais sobre a queda dos garotos.

Seu Aristides correu com a mulher para o portão de dona Elvira para tentar resgatar os meninos e para se desculpar com ela.

Quando bateram palmas, os três foram até eles com mais medo ainda.

Nelson contou o que estava acontecendo.

Seu Aristides não esperou mais nada: pulou o portão e foi até dona Elvira.

Enquanto isso a mãe de Alexandre foi telefonar pedindo uma ambulância.

Não demorou dona Elvira foi levada para o hospital enquanto recebia atendimento dos enfermeiros que vieram com a ambulância.

Os garotos saíram da casa pálidos de medo.

Ela havia sofrido um infarto, mas se salvou.

 

 

Anote isto

A cada domingo veja neste espaço um conto novo com uma abordagem também nova. A ideia do projeto é mostrar que é possível escrever histórias sob qualquer ótica. Desde o início, já trouxe aqui um drama psicológico, uma história real, uma história com ETs, uma história sobrenatural, uma história de humor e outra sexual. Hoje é a vez da história com foco no imaginário infanto-juvenil. Veja mais sobre "Contos de Domingo" no link: https://eloydeoliveira.com.br/senta-que-eu-vou-te-contar-historias-contos-de-domingo

Imagem da Galeria As bruxas estão no imaginário popular e assustam as crianças e alguns jovens
Compartilhe este conteúdo:

  Seja o primeiro a comentar!

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Envie seu comentário preenchendo os campos abaixo

Nome
E-mail
Localização
Comentário
 (19) 97823-9494
 contato@eloydeoliveira.com.br