Um principezinho de olhos azuis na miséria

21 de março de 2021

Um principezinho de olhos azuis na miséria

Data de Publicação: 21 de março de 2021 00:23:00 POR DENTRO DO OLHAR DE GEORDE - Neste primeiro episódio da série, conheça a história de um menino rico que foi abandonado em um orfanato.

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Os olhos expressivos, grandes e profundamente azuis de George escondem um segredo. O menino poderia ter tudo o que dinheiro pode comprar, mas foi abandonado em um orfanato. O que mudou a sua história foi a sua própria história de abandono.

 

 

Odisparo atingiu em cheio a cabeça de Daniels no exato momento em que ele ia beijar Anny.

O projétil atravessou a parte detrás e saiu na região do olho esquerdo, arrancando-o e deixando no lugar apenas um buraco, um enorme buraco, equivalente a três vezes o tamanho do olho.

O impacto fora tão violento que o empresário escorreu pelo corpo da dançarina como se fosse o próprio sangue, que já jorrava em jatos por todo o seu corpo e atingia também o dela.

Eram 2h48 de 09 de agosto de 2008.

Anny arregalou os olhos desesperada e olhou para todos os lados tentando ver de onde viera o tiro. Por fim, descobriu aquele homem de chapéu e jaqueta preta de couro, que guardava a pistola.

O suspeito estava a poucos metros deles.

Não deu para vê-lo antes, quando se aproximou, porque estava envolvida com os carinhos de Daniels e não era comum aquele tipo de crime ali, já que apenas empresários com dinheiro, vindos de Wall Street, frequentavam a boate Private Sky, onde ela trabalhava como dançarina, no centro de New York.

Anny tinha Daniels ainda como escudo quando viu o atirador, mas o homem não esboçava intenção de matá-la. Se tivesse, o teria feito sem se preocupar, como executara o empresário à queima roupa há pouco.

Assim que fez o disparo, ele guardou a arma na cintura e voltou para o carro.

Estava tranquilo e isto deu a Anny a impressão de que o crime fora encomendado.

O homem era alto, forte, musculoso. Aparentava 30/35 anos. Ela notou que andava mancando a perna esquerda.

Mas o que mais ficou marcado para Anny foram os olhos grandes e o bigode grosso.

O suspeito a olhou com extrema frieza.

Tanto que ela achou que ele fosse matá-la também após ela tê-lo visto.

Não era mesmo o que ele tinha em mente, conforme se comprovou depois.

Assim que entrou no carro, olhou para ela fixamente mais uma vez e acelerou. Havia outras duas pessoas no mesmo veículo. Anny não identificou se eram homens ou mulheres.

Assim que o carro arrancou, as pessoas começaram a chegar para o socorro.

O tiro ocorrera bem na entrada da boate.

Rapidamente chegaram vários homens fardados em pelo menos cinco viaturas. Investigadores da polícia de New York vieram interrogá-la antes que Anny tivesse tempo sequer de se limpar do sangue de Daniels.

- O que você viu?, perguntou o investigador Arthrus, que parecia comandar a operação.

- Não vi nada. Estávamos abraçados aqui. Íamos para o hotel. Daniels esperava o manobrista trazer o carro dele.

Anny resolveu ser cautelosa nas informações.

Não falaria nada sobre o homem suspeito até ter certeza de que não correria riscos.

Ela era nova na atividade, mas já aprendera.

Desde que chegara a New York fora ensinada pelas colegas da boate a evitar a polícia.

Normalmente, os policiais não as respeitavam e gostavam de tirar vantagens. Se descobrissem que estavam ilegais no país, faziam de tudo para deportá-las de volta às suas origens.

Anny se apresentava no pole dance e fazia programas com frequentadores.

Era a forma de ganhar algum dinheiro, pois só o salário da boate não era suficiente. Mas, mesmo com os polpudos pagamentos dos empresários ricos que frequentavam a boate, pelo menos 60% do programa ficava com a casa.

Loira, alta e com seios fartos e traseiro empinado, ela tinha o padrão que agradava aos empresários que costumavam pagar muito bem pelas mulheres com quem se divertiam.

As colegas na Private Sky eram todas de corpos esculturais como Anny, embora a vida que levassem não lhes desse condições para manterem aqueles corpos por muito tempo.

Mas não era interesse do dono da boate, Agnus, que elas mantivessem. Ele vivia trocando as dançarinas. A maioria era imigrante do Brasil, do Caribe e do México. Estava acostumado a explorá-las.

Elas vinham desesperadas à procura de emprego e normalmente estavam ilegais. Ele as ajudava com a documentação e exigia turnos alongados e a prostituição em troca.

Agnus tinha ainda um acordo com policiais para não as levar enquanto servissem a ele.

Como nem todas aguentavam aquela vida por muito tempo e a oferta de mão de obra era grande, as trocas eram comuns e cada vez mais rápidas.

A saída era conseguir cair nas graças de algum empresário para ter uma vida diferente, o que era extremamente difícil. Todos os homens que vinham à boate ou pelo menos 99% deles eram casados e não estavam interessados em nada além de sexo e diversão por uma noite.

Daniels a conhecera naquela noite.

Era moreno, bonito, carinhoso, de fala fácil.

Dissera a ela que era dono de uma corretora que atuava na Bolsa de Valores.

O empresário era o tipo que Anny gostava: era atraente, simpático e tinha muito dinheiro.

Se ela tinha de fazer programas, que fosse com alguém assim, pensava. Para ela, seria menos traumático ou menos sofrido.

- A senhorita terá de depor sobre o crime depois de amanhã, está tudo bem?

Arthrus tentava se tornar próximo dela.

Quando percebeu o decote mais exposto por ter se abaixado para assinar o depoimento inicial, Anny puxou a blusa para cima.

O investigador fechou a cara em seguida e disse que o depoimento seria às 14h.

Agnus quis saber como acontecera, mas ela não avançara em nada além do que falara à polícia, afinal seu patrão não era confiável.

Muito menos amigo das dançarinas.

 

Anny dividia um quarto em um hotelzinho barato na periferia com Susan, uma assistente social magra, sem os mesmos atributos que ela.

A companheira de quarto era profunda observadora de pessoas. Por conta do seu trabalho, se acostumara a bater o olho sobre alguém e saber o que pretendia de fato e o que não pretendia.

- Esse homem não vai te deixar em paz Anny. Tome cuidado. Ele sabe que você pode identificá-lo para a polícia. Não vai querer correr riscos.

- Se ele temesse que eu o denunciasse, teria me matado junto com o Daniels. Ele só olhou para mim com muita frieza. Mas não esboçou nenhuma atitude de agressão.

- Eu sei. Talvez ele tenha dito a você com esse olhar que você não faça nada de que possa se arrepender. Sabe, um aviso velado?

- Sim. Talvez seja isso. E eu não falei nada mesmo aos policiais. Não sei o que pode acontecer. Também não sei quem é esse homem.

- Continue sem saber, é melhor.

- Você tem razão.

- Mudando de assunto, sabe aquele meu paquera do trabalho? Aquele negro poderoso de que te falei? Aquele que deve ter uma pegada...

As duas riem.

- Sim, eu sei. Fisgou o cara?

- Sim, vamos jantar hoje. Acho que de hoje não passa. A Foz do Iguaçu precisa desaguar.

As duas voltam a rir.

Susan brincava com a queda d’água mais famosa do Paraná desde que conhecera um brasileiro de lá, que, segundo ela, era de inundar qualquer mulher mesmo.

Assim que Susan saiu, Anny ouviu um barulho estranho. Achou que fosse a companheira de quarto que tivesse esquecido alguma coisa e abriu a porta para ver.

Ao se defrontar com aquele homem que atirara em Daniels, ela se desesperou e tentou fechar a porta novamente, mas o braço musculoso dele a impediu e ele passou a forçar para entrar.

Vendo que não o venceria, Anny deu um tapa nos olhos dele e largou a porta, correndo em seguida para o quarto, trancando-se.

O homem ficou sem enxergar de pronto, o que deu tempo a ela de escapar.

Logo depois ele estava na porta do quarto.

Enquanto ele batia na porta, ela foi colocando todos os móveis que conseguiu na frente para barrá-lo de alguma maneira.

- Eu só quero conversar com você.

- Conversar o quê? Eu não tenho nada para conversar com você. Vá embora ou chamo a polícia. Vá embora, estou falando sério.

- Estou aqui exatamente por causa disso. Se procurar a polícia ou disser algo sobre mim, eu vou atrás de você até o inferno e te mato. Você entendeu o que eu disse? Eu te mato.

Os olhos de Anny pareciam querer saltar dos glóbulos de tanto que se mexiam.

Ela não sabia o que fazer.

- Eu não disse nada quando a polícia chegou e não vou dizer em nenhum momento.

- Eu sei que não disse, mas estou de olho em você e não hesitarei em estourar os seus miolos.

Anny começou a chorar.

- Por favor, eu não fiz nada. Não vou fazer nada. Pode ficar tranquilo...

Enquanto ela falava sem parar, percebeu que tudo estava em silêncio do outro lado.

Então parou de falar e passou a ouvir.

Silêncio total.

- Acho que foi embora, disse em voz alta.

Começou a afastar os móveis que empurrara para perto da porta e, ao encostar a cômoda na outra parede, sentiu tocarem nas suas costas.

A dançarina quase desmaiou.

- Estou confiando em você, disse o homem que matara Daniels e que estava dentro do quarto agora e ela não sabia como ele tinha entrado.

Anny só conseguiu dormir quando a companheira de quarto retornou.

No dia seguinte, o investigador Arthrus foi incisivo e duro com ela:

- Se a senhorita não falar a verdade, eu vou deportá-la para o Brasil. É isto o que a senhorita quer?, gritou ele após ela repetir que não sabia de nada além do que já dissera havia dois dias.

- Eu sei que a senhorita sabe mais do que está falando e não vou ser bonzinho se descobrir que estou certo, a senhorita entendeu?

Assim que pronunciou a última palavra, o investigador deu um murro forte na mesa.

Assustada, Anny acabou soltando a língua.

- Está bem, está bem. Eu vou falar. Eu vi o homem que atirou, mas não sei quem é.

- Como ele é?

Anny descreveu o homem e toda aquela cena.

Acabado o depoimento, quando se dirigia ao seu carro, na saída da delegacia, a dançarina percebeu que estava sendo seguida.

Olhou e viu à distância o homem que matara Daniels. Ela apertou o passo e ele também, mas conseguiu entrar no carro antes que fosse alcançada. Não pestanejou e arrancou.

O homem começou a persegui-la.

Ele dirigia um carro das empresas U.S. Bank Cort, uma grande financeira de New York.

Anny fica intrigada:

- Será que ele trabalhava nessa empresa ou será que ele roubou o carro para persegui-la?

O homem se aproxima e ela acelera. Ela vira uma esquina, ele vira atrás. O desespero toma conta da dançarina rapidamente. A condução do veículo já começa a se tornar difícil para ela.

Quando o carro do homem está bem próximo dela, ele saca a mesma pistola do crime e faz pontaria para ela. Anny tenta jogá-lo para fora da pista, batendo o seu carro no dele.

O homem sai da pista, mas consegue voltar.

É ele agora quem bate no carro dela.

Anny acaba perdendo o controle e se choca em uma árvore. Em seguida capota, despencando em uma ribanceira cheia de mais árvores.

O carro derruba algumas e em outras bate e muda a sua trajetória, até parar de rodas para cima no final do penhasco.

Anny consegue sair do lado oposto da estrada e rasteja para o matagal que fica logo depois.

O homem olha lá de cima e não a vê.

Em seguida, o carro explode e se incendeia.

Algum tempo depois, Anny consegue se levantar e caminha por uma trilha.

Ela segue olhando sempre para trás a fim de checar se o homem que matou Daniels não a seguia e então topa de frente com alguém.

O susto da dançarina é tamanho que ela desmaia e cai para trás sem reação.

A pessoa com quem ela topou não era o homem. Trata-se de uma mulher morena, não muito alta, magra, com brincos de ouro grandes e alguns colares também de ouro, muito bem-vestida. É essa a visão que Anny tem ao acordar.

- Quem é você?, a dançarina pergunta assustada e ainda olhando para os lados.

- Sou uma amiga. Meu nome é Jacqueline Johnson. Venha, venha comigo. Vou te levar para ser medicada. Você se machucou muito.

Pouco depois Anny recebe os cuidados médicos em uma clínica e a mulher desaparece.

Ela pergunta sobre a mulher, mas ninguém na clínica sabe nada dela ou, se sabiam, não quiseram dizer para a dançarina.

 

- George, venha aqui, grita a diretora do orfanato Santa Philadelphia, na periferia de New York, que fora construído em uma casa grande de uma antiga fazenda de gado.

É final da tarde de 22 de junho de 2016.

O menino de rosto redondo, olhos expressivos, grandes e profundamente azuis, olha na direção daquela mulher gorda e baixinha, a senhora Glade, e fica irritado: a voz dela o incomoda.

Ele está a uma boa distância dela.

- Venha George. Preciso que conheça uma pessoa. Vamos meu principezinho.

George tem pouco mais de oito anos.

É um dos mais levados meninos do orfanato, mas é também um dos mais bonitos.

Ele é chamado de Principezinho da Miséria devido aos olhos azuis e à sua condição de abandonado. Quem o chama assim são Ághata e Bárbara, duas assistentes sociais que atuam no orfanato como voluntárias. Mas elas são sempre repreendidas por Susan, a assistente-chefe, que entende o apelido como uma forma de preconceito que poderá prejudicar o menino.

- Sim, dona Glade, o que a senhora quer?

- Venha aqui George, venha.

Quando o menino chega à sala da diretoria, ela está na companhia de uma mulher morena, não muito alta, magra, com brincos de ouro grandes e alguns colares, muito bem-vestida.

Ele as olha e abaixa a cabeça envergonhado.

- Não precisa ficar tímido George, diz a diretora. – Quero que conheça dona Jacqueline Johnson e aponta para a mulher.

- Olá George, diz a estranha.

- Olá, responde ele muito envergonhado ainda.

A mulher o abraça e depois se senta ao seu lado.

Eles conversam por alguns instantes.

- E então o que achou?, pergunta a diretora.

- Eu gostei dele. Acho que vai dar certo. Só preciso acertar com meu marido.

- Mas ele sabe da sua intenção?

- Sabe sim, e ele concorda. Há muito tempo queremos isto. Só faltava encontrar o menino.

- Que bom. Fico feliz que tenha gostado do George. Ele é um bom menino.

- O que a senhora quer dizer dona Glade?, pergunta George intrigado com a conversa.

- Estou querendo dizer que a dona Jacqueline Johnson quer adotá-lo. Você vai ter um novo lar. Você quer ter um novo lar George?

O menino arregala os olhos e sai correndo da sala como se fugisse de algo muito perigoso.

A visitante fica assustada com a reação.

Mas a diretora a tranquiliza:

- Não se preocupe. Ele só está assustado. Eu vou trabalhar isso. Na próxima visita, será melhor.

- Será que ele não gostou de mim?

- Não, não é isso. Ele sofreu muito bullying aqui por ser assim tão bonitinho, de olhos azuis. Fica assustado. Acha que todos querem o seu mal. Mas logo verá que a senhora lhe dará o melhor lar que ele poderia ter na vida.

- Sim, meu marido é empresário de Wall Street e temos uma condição financeira confortável. Poderemos dar a ele uma vida que ele nunca sequer sonhou em ter.

- Eu sei, eu tenho certeza disso.

Quando a visitante vai embora, Glade tenta conversar com George, mas ele evita.

Só quem consegue conversar com ele é Susan. Ela o acompanha desde o início. Tem muita influência sobre ele. E é quem o defende.

- George, será bom para você ter um novo lar. Todos aqui querem ter uma família.

- Minha família são vocês. Não preciso de outra. Eu não quero ir embora com essa mulher.

A assistente social o abraça com delicadeza.

Após algum tempo fazendo carinhos nos seus cabelos, Susan nota que o menino dorme.

No dia seguinte, quando Ághata e Bárbara vão ao dormitório levam um susto:

- Susan, Susan, corra aqui, elas gritam.

Susan vem rapidamente.

- O que aconteceu?

- George sumiu.

 

Anny voltara a trabalhar na boate Private Sky. Depois da perseguição que sofrera do homem que havia matado Daniels, o dono de uma corretora que atuava na Bolsa de Valores, ela desaparecera por quase um mês.

A amiga Susan havia arranjado um trabalho para ela na Filadélfia e por lá ela ficou até as coisas se acalmarem, mas o dinheiro era pouco e ela sabia que na boate conseguiria bem mais.

No primeiro dia após o retorno, quando Anny se dirigia à garagem da boate, que ficava no terceiro andar, ela viu um homem de chapéu e jaqueta de couro preta parado perto do seu carro.

Não imaginou que fosse o seu perseguidor, mas não quis saber quem era também e correu para entrar rapidamente no veículo.

Quando tentava abrir a porta, ela foi puxada para trás com força e jogada ao chão.

- Então você sobreviveu àquele acidente?

Ele disse enquanto sacava a mesma pistola do dia do assassinato de Daniels.

- Eu não fiz nada. Por favor, não me mate.

- Não fez nada? E o que você disse àquele policial? Isso é nada para você?

- Eu fui obrigada. Eles me forçaram. Eu juro, ela diz chorando enquanto tenta se levantar.

- Mentira, ele grita. - Eu sei de tudo o que aconteceu lá. Você falou porque quis. Mas eu tinha dito a você que não falasse, não disse?

- Desculpe, não foi por intenção. Eles me pressionaram. Mas não aconteceu nada com você. Você está aqui livre e solto.

- Eu vou te matar agora para você não falar mais nada a ninguém, entendeu?

O homem se aproxima da dançarina e empurra-a novamente para o chão.

Em seguida, aponta a pistola para ela.

A distância que está da mulher é suficiente para que ela reaja, mesmo deitada no chão, com um chute forte no meio das pernas dele.

O homem é surpreendido com a reação e tem de se agachar para conter a dor.

Enquanto isso, Anny se levanta e corre em direção à sua bolsa, que caiu quando ela fora puxada para trás. De dentro da bolsa, ela puxa um revólver e o aponta para o homem.

Ele levanta as mãos e joga a pistola no chão.

Anny caminha em direção a ele apontando o revólver e o homem vai se afastando.

Sem perceber, ele atinge o final do piso da garagem e despenca dois andares abaixo.

O homem foi socorrido e sobreviveu, mas ficaria internado por três meses devido às fraturas que adquiriu com a queda.

Quando se livrou desse perseguidor, ela começou a ser perseguida por outros homens que deviam ter ligação com aquele.

Mas estes eram menos agressivos que o primeiro e ela conseguia ir driblando-os.

Apesar do risco e das dificuldades, era importante para Anny trabalhar na boate por causa dos polpudos pagamentos que recebia.

Os empresários, banqueiros, corretores, todos os frequentadores da boate, eram homens que ganhavam muito dinheiro e dinheiro fácil. Por isso, não hesitavam em gastar demais também.

Anny estava acostumada àquela vida.

Mas no dia 15 de setembro de 2008, uma segunda-feira que ficou conhecida como segunda-feira negra, o banco Lehman Brothers, que havia sido fundado em 1850, quebrou. Ele era um dos bancos mais tradicionais dos Estados Unidos e a sua quebra desencadeou uma crise financeira que se espalhou para o mundo.

As bolsas de valores despencaram.

A causa desse desastre tinha começado dez anos antes quando o governo liberou créditos de forma desenfreada, mesmo para pessoas que não tinham condições de arcar com as parcelas.

Com o volume tão alto de hipotecas, os bancos uniram os contratos de alto risco aos de baixo e passaram a utilizar os imóveis como garantias, mas os devedores não arcaram com os seus compromissos e foram provocando um efeito dominó que abalou a economia, com desemprego e afastamento dos investimentos.

Anthony era um dos investidores desse mercado e perdeu milhões com a quebra da bolsa. Ele estava totalmente descontrolado.

Saiu do escritório em Wall Street e foi para a boate Private Sky para tentar relaxar.

- Garçom, me mande um uísque, por favor.

Anny foi designada por Agnus para acompanhar o empresário. Ela foi simpática, agradável e atenciosa, mas Anthony não estava para bons amigos. Ele estava possesso.

- Garçom, mais um uísque, por favor.

E assim se seguiram várias e várias doses.

Até quando ele já estava bastante alterado e convidou Anny para saírem dali. Seus problemas estavam longe dele agora. A bebida o deixara livre, leve e solto para uma noitada.

O empresário carregou a dançarina para um hotel que atendia a boate e lá, depois de melhorar da bebedeira, eles transaram na varanda se mostrando a quem quisesse ver.

A direção do hotel ligou para o apartamento para pedir que eles se recolhessem, mas Anthony não queria saber de absolutamente nada.

- Fodam-se vocês. Eu estou pagando. Chio.

Ele também não aceitou o pedido de Anny para que ele usasse camisinha, mesmo com toda a insistência que ela demonstrou.

- Não vai usar. Eu não estou doente. Não, ele gritou com ela e Anny ficou assustada.

A dançarina não teve reação.

 

Passada a noite toda à disposição do empresário, Anny praticamente desmaiou no dia seguinte e dormiu até o final da tarde.

Quando se levantou, Susan bateu palmas.

- Finalmente mocinha. Pensei que ia dormir até amanhã. O que aconteceu?

- Su, nem te conto, ela disse.

Mas acabou falando em detalhes o que aconteceu e só aí se deu conta do que fizera.

- Meu Deus, você é louca?

- O que eu podia fazer?

- Poderia negar. Era isso que deveria ter feito. Você não tem ideia do risco que correu.

- Mas ele é um empresário riquíssimo. Não acho que se enfiou em alguma encrenca.

- Sei não.

Duas semanas depois, Susan chega em casa e encontra Anny desesperada.

- O que foi que aconteceu?

- Minha menstruação está atrasada.

- Como assim?

- Eu estou preocupada Su.

- Vamos fazer o teste de farmácia.

- Será?

- Claro, precisamos saber.

Ao sair do banheiro, Anny estava com uma cara pior que a que entrou.

- Deu positivo.

- O quê?

- Sim Su, eu estou grávida.

- Meu Deus.

- E agora o que eu faço?

- Agora você vai procurar o cara e pedir ajuda.

- E você acha que ele vai me ajudar?

- Ele tem de ajudar. Ele é o responsável. Se não ajudar, você ameaça.

- Como assim?

- Sei lá, descubra o que ele tem a perder e use isso contra ele para forçá-lo a ajudar.

 

Quando Anny procura Anthony, ele nem se lembra de quem ela é ou se esteve com ela.

Eles estão no bar da boate.

O empresário pegara um uísque.

- O quê? Quem é você? De onde eu te conheço?

- Olha aqui Anthony, eu preciso da sua ajuda para resolver isso. Não posso ter esse filho. Mas não tenho como resolver sozinha.

- Minha filha, dane-se. Eu não tenho nada a ver com isso. Se você não se cuida, o problema...

- Como não me cuido? Você me obrigou a não usar a proteção. Não se lembra mais?

- Não, não lembro.

A dançarina joga no rosto dele o copo de uísque que ele tomava e que estava no balcão.

O homem fica irritadíssimo.

Susan a aconselha a pesquisar sobre os pontos fracos do empresário para usar contra ele.

As duas vasculham tudo o que podem.

- Pior é que não tem nada, diz Susan. – Ele é dono das empresas U.S. Bank Cort, uma grande financeira de New York. Tem negócios imobiliários aos montes. É dono de um hotel...

- Espera, espera. Você disse que ele é dono das empresas U.S. Bank Cort?

- Sim, mas o que tem isso?

- Aquele homem, o Yohanson, que eu fiz cair da garagem da boate, lembra?

- Sim, lembro. O que tem isso?

- Ele me perseguiu usando um carro das empresas U.S. Bank Cort. Isto quer dizer que o Anthony pode ter mandado matar o Daniels.

- É, não tinha pensado por aí. Mas ele pode ter roubado o carro. Precisa ter certeza disso.

- Sim, vou ter.

No dia seguinte, Anny entra na casa saltitante com a informação que descobriu.

- Tenho duas boas notícias.

- Vai, fala logo. Fala.

- O Yohanson vai continuar internado por pelo menos mais três meses porque a perna que ele mancava quebrou em três lugares e a recuperação não se consolidou ainda.

- Muito bom isso.

- E a outra informação é que ele é diretor de operações da U.S. Bank Cort.

- Pegamos o cretino então.

- Yes.

 

A dançarina volta a se encontrar com Anthony e o ameaça agora com a informação sobre o atentado que matou Daniels.

O empresário ri.

- Você está louca. Eu não tenho nada a ver com isso. É uma invenção sua.

- Não senhor, não é invenção minha. Eu fui perseguida por um carro da sua empresa com o seu diretor de operações e eu vi o seu diretor matar o Daniels. Basta pegar as imagens das câmeras de segurança da perseguição e o retrato falado que dei à polícia quando prestei depoimento.

Anthony fica confuso.

De fato, as informações poderiam incriminá-lo, mas ele se sairia bem com seus advogados.

- Vá à merda, ele diz e encerra a conversa.

Depois procura os seus advogados para se inteirar do que seria possível fazer.

Os advogados o aconselham a fazer um acordo com ela e pagar para ela tirar a criança.

O empresário vai ao hospital para falar com Yohanson e o seu executor de ordens sentencia:

- Não corra esse risco chefe. Engane-a. Diga que vai bancar para tirar o bebê e mate-a.

Anthony olha pela janela e diz:

- É o que eu vou fazer.

 

Anny tem dúvidas sobre a sinceridade do empresário, mas não tem alternativa.

Ela aceita que ele coordene tudo.

Fica combinado que um carro irá buscá-la e que a levará até a clínica onde o aborto ocorrerá.

Susan fica de sobreaviso e combina com ela que passe cada passo do processo por telefone.

A assistente social vai com ela até a clínica.

- A senhora não pode acompanhá-la, diz um dos funcionários de Anthony que vieram buscá-la em casa. Eram dois homens e o motorista encarregados de cuidar de tudo.

- Por que não posso? Ela vai passar por um procedimento muito invasivo. Precisa de alguém próximo para ampará-la quando sair.

- Cuidaremos de tudo. Doutor Anthony já nos disse como fazer. Pode ficar tranquila.

- Não, eu não vou ficar tranquila com minha amiga nessas condições.

A insistência de Susan e o fato de ela ser assistente social fazem com que ela possa acompanhar o processo indo até a clínica, mas ela não poderá entrar na sala de intervenção.

Na antessala, Susan fica em contato com Anny pelo celular enquanto ela aguarda.

- A senhorita será sedada agora para o procedimento, diz uma enfermeira.

Anny avisa Susan.

Enquanto aguarda na antessala, Susan resolve ir ao banheiro, que fica do lado do banheiro masculino, onde estão os dois homens que acompanharam o transporte de Anny.

Eles conversam sobre os próximos passos.

- Ela vai ser sedada. Aí entramos e levamos ela para a desova. Vai morrer dormindo.

- Como um anjo.

Os dois riem.

Susan fica desesperada.

Ela precisa tirar Anny de lá antes.

A assistente social começa a pensar em como fazer e não encontra uma maneira.

Mas, ao olhar para o teto, ela nota o dispositivo para disparar o alarme de incêndio e jorrar água no ambiente e resolve usá-lo.

Susan sobe no balcão da pia e esquenta o dispositivo até o alarme disparar e começar a jorrar água em cima dela.

A sirene toca na clínica toda.

Ao sair do banheiro, Susan percebe a correria de todo mundo para controlar o suposto incêndio.

Enquanto isso, ela invade a sala de intervenção e retira Anny de lá sem que ninguém perceba por causa da movimentação.

As duas pulam uma janela lateral para não passar pela recepção novamente.

Em seguida, se embrenham no mato e fogem.

Susan leva-a para o orfanato Santa Philadelphia, na periferia de New York, onde ela trabalha como assistente social chefe.

Em um dos quartos dos fundos, sem que ninguém veja, Anny fica até o bebê nascer.

George é um garotão de rosto redondo, olhos profundamente azuis e um sorriso fácil.

- Vai se chamar George, Anny diz para a assistente social, que se encarregará do registro.

Isto porque o menino nasceu em meio à plantação de milho que o orfanato mantém nos fundos da propriedade e George quer dizer vindo da terra como um fruto que nasce da terra.

Os primeiros dias são de muito amor entre mãe e filho, mas Anny tem consciência de que não poderá cuidar dele sozinha e escondida.

- Deixe-o aqui para adoção, sugere Susan.

- Eu não sei Su. Eu não sei se tenho coragem. Amo o meu filho. Nem sei como queria tirá-lo.

- Mas não tem como cuidar e aqui ele estará bem porque o lugar é bom. Eu conheço.

Com muita relutância, Anny concorda.

George é deixado no orfanato e Anny desaparece conforme orientação de Susan.

 

Quando sumiu do orfanato, George se escondeu no caminhão que fazia o recolhimento de podas de árvores para sair.

O menino notou que o caminhão entrava sempre com dois funcionários: o motorista e um ajudante. Eles recolhiam os galhos e matos cortados e deixados amontoados. Depois iam até a cozinha filar um café com bolo que dona Mitie oferecia. Era sempre assim.

George aproveitou o momento em que foram à cozinha e se enfiou no meio dos arbustos.

Teve de esperar uma meia hora, pois a conversa na cozinha ou o bolo estavam muito bons.

Quando percebeu que já estava fora do orfanato, esperou o caminhão parar em um semáforo e saltou para o chão do lado da calçada.

Era a primeira vez que se defrontava com o mundo fora do orfanato. Acostumara-se a viver entre aqueles muros, a levantar-se no horário determinado, a tomar café, a ficar no pátio. Tinha horário para tudo e regras, muitas regras.

O único lugar onde se sentia um pouco mais livre era no banheiro, por incrível que pareça. George se sentava ali e viajava nos pensamentos. Ao menos até alguém bater na porta.

Enquanto olhava a rua com o interesse de quem nunca tinha visto uma, um homem esbarrou nas suas costas e o impacto quase o jogou no chão. George se irritou e se levantou rapidamente, mas, quando viu o tamanho do homem, perto de dois metros com certeza, resolveu baixar o tom e apenas olhar para ele.

- O que foi moleque?, perguntou o homem.

-  Nada, não foi nada.

- Então o que está olhando? Me achou bonito? Quer me levar para casa?

Bonito não era bem o termo para descrever aquele estranho. Ele era alto, perto dos dois metros ou talvez não fosse tanto, já que George era pequeno e isto pudesse dar uma impressão errada de que o outro fosse mais alto. O estranho tinha o rosto coberto por uma maquiagem pesada e vestia-se totalmente de preto.

George o olhava com curiosidade quando foi assustado novamente por ele.

O homem sacou uma faca enorme de dentro da calça e a colocou na garganta do menino.

Era impossível não sentir medo.

- Você quer morrer?

- Não, eu não quero. Por favor, não me mate. Por favor, eu não fiz nada.

Antes que o menino terminasse a fala, ele puxou a faca para o seu corpo e, colocando a mão na ponta dela, empurrou, sem se cortar, toda a lâmina para dentro do cabo.

Só aí George percebeu que se tratava de uma faca falsa, mas ela brilhava bastante.

- Qual é o seu nome garoto?

- George.

- O meu é Trannus. Prazer, disse ele estendendo a mão para apertar a do menino.

Os dois se sentaram automaticamente no meio-fio e passaram a conversar.

George não contou que fugira do orfanato.

Disse que era da região, embora o outro não o tivesse visto antes, como relatou.

O homem não era na verdade um homem. Ao menos não na concepção de que George tinha. Era um adolescente que parecia um homem feito. Tinha barba rala, mas tinha e a altura.

Trannus contou a ele que era artista de rua.

Fazia poesia, música e mágica.

Apresentava-se nas ruas por alguns trocados com os quais vivia. Não tinha família. Nenhum parente próximo. Fora largado na rua, contou com certa melancolia, olhos marejados.

George se identificou com a história.

Também fora largado no orfanato.

Só aí o menino se sentiu mais à vontade para falar do orfanato, mas ainda não disse que fugira. Contou apenas que tinha estado em um antes porque também fora largado pela mãe.

O pai nem conhecera, mas sabia por ter ouvido assistente social chefe que seu pai era um empresário milionário de Wall Street.

- Uau, você é filho de um magnata de Wall Street? Verdade isso mesmo?

- Não sei se é verdade e nem sei o que quer dizer para ter dito uau, mas preciso descobrir.

- Wall Street é o centro financeiro desse país garoto. Lá ficam as maiores fortunas dos Estados Unidos. Se você é filho de algum daqueles caras não é à toa que esteja aqui na rua.

- Por quê?

- Porque aqueles caras não ligam a mínima para nada. Não iam ligar para você.

George abaixou a cabeça chateado com a informação do estranho, mas sabia que era verdade o que ele dizia.

Trannus percebeu.

- Ei garoto, não fique assim. Você não tem culpa. E sua mãe quem era?

- Pelo que a Susan disse, ela era dançarina em uma boate e conheceu meu pai lá.

- Nossa, então você está a pé mesmo. Vive com quem agora? Hein, garoto?

George ficou sem ação por um instante.

- Vamos, diga. Com quem vive? Fale.

- Eu, eu, eu.

- Você fugiu do orfanato, não é?

- Não, grita George. – Eu só...

- Você fugiu sim. Eu conheço isso. Mas calma. Não vou fazer nada. O que pretende agora?

- Eu quero encontrar os meus pais. Se meu pai é um homem milionário, ele tem de me ajudar.

- Pare de se iludir garoto.

Assim que pronunciou a frase, Trannus caiu de boca no chão rachando o lábio inferior. O sangue escorreu pela sua roupa.

O tombo ocorreu depois de um soco que ele levou de um dos quatro homens que os cercavam agora e que continuavam a agredi-lo.

O menino se afastou com medo.

Mas os quatro estranhos intensificaram a surra que haviam começado a dar em Trannus.

George não sabia o que fazer.

Não tinha condições de enfrentar os quatro e não se sentia motivado a isso. Ele mal conhecia Trannus. Não fazia ideia do porquê ele apanhava. Mas pensou que não podia deixar que continuassem a bater nele. Do contrário, o rapaz morreria de tanto apanhar, ainda que fosse alto.

George pensou por alguns instantes no que fazer e nada lhe ocorria. Até que viu uma barra de ferro jogada a um canto da calçada.

O menino não pensou duas vezes.

Apanhou a barra e partiu para cima do grupo.

Como eles não esperavam que George os agredisse, o maior deles foi atingido com força nas costas e o impacto o derrubou sobre o outro.

A dor nas costas o impediu de qualquer reação.

Os outros dois que não tinham caído tentaram partir para cima de George, mas Trannus derrubou um deles e o outro acabou levando um golpe da barra de ferro que o menino trazia.

Resultado: os quatro resolveram bater em retirada antes que as coisas ficassem piores.

O primeiro atingido foi praticamente arrastado pelos outros. O último também mancava. Mas os dois que não se machucaram gritaram que se vingariam.

- Você é bom de briga garoto, diz Trannus tentando ajustar o lábio novamente.

O sangue ainda não parara de escorrer.

- Eu tinha de fazer alguma coisa. Por que eles te batiam? Quem são eles?

- É uma parada sinistra. Mas, irmão, você ganhou um amigo agora. Vou te ajudar. Conte comigo para sempre. Vou te ajudar.

Trannus nem bem terminava de dizer a frase e outra surpresa os assustou:

- Ele não vai precisar de ajuda não, disse Bárbara, uma das assistentes sociais do orfanato. Ao lado de Ághata, ela deteve George. As duas levaram o menino de volta.

Trannus não pode fazer nada.

Mas ele se informou onde era o orfanato.

Mais tarde, o novo amigo de George apareceu por lá e tentou resgatá-lo quando escurecia.

A nova fuga não aconteceu rapidamente.

Levou alguns dias até que arquitetassem um plano infalível e que conseguissem distrair a atenção das assistentes sociais.

Quando conseguiram, era tarde da noite já.

Os dois se esconderam em um beco da cidade.

O lugar escuro, úmido e malcheiroso assustou George de início, mas ele estava disposto a encontrar seus pais e a cobrar uma vida melhor.

- Eu não pedi para vir a esse mundo. Se eles escolheram isto por mim, eles têm de se responsabilizar agora.

- Você está certo garoto.

- Eu não vou ser bom. Ninguém nunca foi bom comigo. Eu não vou ser piedoso. Nunca tiveram piedade de mim. Mas eu vou mostrar a eles o quanto eu posso ser um inferno.

 

As buscas pelo menino foram intensificadas.

Só que dona Glade não contava nem com o apoio da polícia para procurá-lo. Os policiais diziam que um menino a mais ou a menos perdido nas ruas de New York não mudava nada nem importava alguma coisa para alguém.

Os dois amigos passaram a viver nas ruas em troca da ajuda de quem passava.

Trannus cantava, recitava poesias, fazia discursos inteligentes enquanto George recolhia moedas e algumas notas que surgiam.

Parecia que nunca iam chegar aos pais dele.

Os dias iam ficando cada vez mais difíceis.

A disputa por espaço nas ruas era tão cruel quanto perigosa e a dupla vivia se esbarrando na morte. Não dormiam direito, não comiam direito e não estavam mais valentes como eram.

Com fome, Trannus combinou com o amigo de furtarem comida de um restaurante.

Os dois invadiram os fundos do estabelecimento e encheram sacolas de comida.

Saíram sorrateiramente pelo mesmo lugar por onde entraram. Só não contavam com o flagra do dono. Com uma espingarda na mão, Donald apontava para os dois bem na hora que atingiram o quintal e pensavam e saltar o muro para o vizinho a fim de escapar definitivamente.

- Onde pensam que vão seus filhos da puta?, gritou Donald engatilhando a arma.

Os olhos arregalados dos dois era o sinal de fim da linha. Eles soltaram as sacolas, ergueram os braços para cima. Pediram calma.

O comerciante não pensava do mesmo jeito.

O primeiro disparo foi bem perto dos pés de George. Mas foi esse tiro que o fez decidir pela reação. Se ia morrer, então que morresse lutando. O menino fez sinal para Trannus e em seguida apanhou a sacola e a atirou no rosto de Donald.

Arroz, feijão e batatas se espalharam pelo chão dando tempo suficiente para que Trannus viesse com o golpe mais duro: ele bateu com uma barra de ferro nas pernas do homem, desequilibrando-o e fazendo-o cair em seguida.

A arma foi ao chão e Trannus a apanhou.

Os dois pularam o muro com a arma.

Quando já haviam saltado dois quintais e se sentiram seguros, Trannus deixou a espingarda no chão, atrás de um dos muros.

- Vamos, vamos correr, disse ele.

Os dois se preparavam para correr, já que agora tinham linha reta pela frente, mas foram impedidos por um carro muito bonito e grande.

Era uma BMW na cor cinza metálica.

Os dois olharam surpresos.

Não era um carro de polícia.

O que iriam querer com eles então?

De dentro da BMW desceu uma mulher morena, não muito alta, magra, com brincos de ouro grandes e colares, muito bem-vestida.

George a reconheceu.

Era Jacqueline Johnson.

Ela também o reconheceu.

- George?

- Dona Jacqueline?

- Sim, que bom te encontrar. Soube que fugiu do orfanato. Ainda bem que te encontrei.

Os dois estavam se afastando à medida que a mulher conversava com eles.

- Parem, ela ordenou. – Não fujam. Tenho uma oferta para vocês. Quero que ouçam pelo menos.

Trannus se interessou:

- O que é?

- Quero que venham trabalhar em minha casa. Sei que estão vivendo nas ruas. Eu posso oferecer uma moradia digna, comida, dinheiro.

- Não, eu não quero, disse George.

Trannus segurou o braço dele e disse-lhe ao ouvido que aceitasse, pois poderiam fugir de lá se não fosse aquilo. Nada os prendia mais.

George gostou da frase.

Em seguida, os dois entraram no carro e foram sentados ao lado de Jacqueline.

O motorista os conduziu até uma mansão.

- Vocês serão jardineiros. Agora Adamy, o meu mordomo, vai levá-los onde ficarão e lhes dará roupas novas. Tomem um banho.

Depois de se trocarem, a mulher levou George para fazer exames médicos.

Trannus não foi levado.

- Por que ele não vai?, perguntou George.

- Ele vai depois.

Os dois primeiros dias foram tranquilos.

Os amigos estavam gostando do lugar, mas ainda não tinham começado a trabalhar.

Estavam ansiosos com o que viria.

Parecia que os dias de sofrimentos acabaram.

George e Trannus estão conhecendo com Jacqueline os equipamentos com os quais vão trabalhar, quando Adamy entra no rancho dos fundos da casa e anuncia:

- Está tudo pronto, senhora.

- Os documentos todos?, ela pergunta.

- Sim, todos.

Jacqueline Johnson pede que os dois a acompanhem até uma das salas da casa.

Os dois ficam preocupados, mas vão.

Trannus retarda os passos com receio.

George não.

Ao entrarem na sala Jacqueline e George, eles veem uma mulher loira, alta, de seios fartos. Ela sorri ao ver o menino e chora em seguida, mas não para de contemplá-lo embevecida.

Trannus espera na porta antes de entrar.

 - George, esta é sua mãe Anny, diz Jacqueline apontando para a mulher loira.

Assim que dá a informação, Anny corre para o menino e o abraça apertado e o beija muitas vezes em várias partes do corpo, como se cada beijo reduzisse a saudade que sentia.

George não entende nada.

Jacqueline explica que a mãe dele fora obrigada a deixá-lo no orfanato por não ter condições de criá-lo sozinha, já que o pai a abandonou.

Nesse momento, entra na sala Anthony.

- Que merda é essa?, ele pergunta.

- Este é meu marido Anthony, o seu pai George. Foi ele quem abandonou a sua mãe e a fez colocá-lo no orfanato.

Anthony fica indignado com o que vê.

- Que merda é essa Jacqueline?, ele insiste.

- A merda é você quem fez Anthony. Você mandou o Yohanson matar Daniels. Achou que ele estivesse atrapalhando os negócios e estava mesmo. Mas os negócios sujos que você tem, como a venda de drogas para o México. Depois, você engravidou Anny e mandou matá-la também. Felizmente ela escapou e salvou o seu filho, que é este menino aqui.

- Você está louca Jacqueline.

- Não, não estou e vou entregar você à polícia.

- Isso aconteceu há muito tempo. A polícia já esqueceu disso tudo. Depois, você não tem prova de nada do que está dizendo.

- Tenho sim. Estão aqui os documentos que provam a sua paternidade. A Anny pode testemunhar contra você. Eu guardei também as imagens das câmeras de vídeo das perseguições. Você vai ter de reconhecer o George.

Inesperadamente, Anthony saca uma pistola e todos se assustam, recuando um para trás do outro. Mas o empresário pega Anny puxando-a para si e aponta a arma para a cabeça dela.

Depois se dirige à Jacqueline:

- Você acha mesmo que tem provas? Então vamos acabar com as provas. Vou matar todos vocês, todos. Anny será a primeira.

Quando Anthony empurra o cano da arma na têmpora de Anny e começa a apertar o gatilho, surpreendentemente ele recebe uma pancada forte na cabeça: Trannus entrara por trás sem ser percebido ao notar a situação e apanhara um vaso de ferro que havia na entrada da sala.

O homem cai no chão com o impacto.

Trannus apanha a arma e a aponta para Anthony dizendo que ele perdeu.

Anthony não se intimida. Saca um revólver do bolso detrás, surpreendendo a todos. Mas, em vez de atirar em Trannus, ele dispara contra a própria cabeça, explodindo os seus miolos.

Alguns dias depois do crime, Jacqueline Johnson traz o oficial de Justiça e o testamenteiro para informar sobre o destino da fortuna de Anthony e dos negócios da família.

Estão presentes George, Trannus e Anny.

A reunião acontece no mezanino da casa.

Como esposa, Jacqueline fica com 50% de tudo, mas o restante é destinado a George.

Em seguida, ela informa a Anny que teria de adotar George para que ele recebesse a fortuna. Na verdade, ela já fizera toda a documentação e Anny assinara sem saber do que se tratava. Jacqueline diz que ela, Anny, poderia continuar na casa, mas não tinha os poderes de mãe sobre o menino e que ela receberia um bom dinheiro por isso, caso quisesse, é claro.

- Não, eu não aceito. Não quero abrir mão do meu filho agora que o reencontrei depois de tantos anos. Desculpe, mas não posso, diz Anny.

- Então você terá de sair desta casa agora sem George e não receberá nenhum tostão.

Anny fica sem entender.

Então se levanta e diz que vai levar George com ela e que não aceitará nada de Jacqueline.

A mulher se levanta e vai em sua direção para tentar impedir que ela saia e as duas acabam se engalfinhando. Anny cai na parte debaixo, se estatelando no chão da sala morta.

Ao ver que a mãe morreu e o pai também, George fica enfurecido e parte para cima de Jacqueline para agredi-la tal é a sua raiva.

Ele já não gostara dela no orfanato.

Trannus sai detrás do oficial e do testamenteiro e atira contra a mulher.

Jacqueline morre antes de cair no chão.

- O que você fez Trannus?, pergunta George sem entender mais nada.

O rapaz começa a chorar e se ajoelha no chão.

- Eu não sei, diz ele. – Eu não sei. O que eu fiz?, ele aponta o revólver para a própria cabeça.

George o agarra e toma a arma dele.

O menino joga a arma para longe deles.

Depois, ele o abraça e diz:

- Agora somos só nós meu amigo. Fica comigo. Eu não sei mais o que estou vendo.

 

 

Anote isto

Este é o primeiro episódio da série "Por dentro do olhar de George". O texto conta o segredo de um menino de olhos azuis, que poderia ter tudo o que dinheiro pode comprar, mas que acabou abandonado em um orfanato. A cada domingo vou trazer aqui esta mesma história, mas alterada sob um viés diferente. Neste primeiro episódio trata-se de um drama. Vou transformar essa história em uma história de amor, em uma comédia, em uma aventura e no que mais puder ser adaptada. A ideia é mostrar que o tom da história pode ser alterado a qualquer momento e por simples artifícios. É o autor quem define como será. 

Imagem da Galeria Príncipes podem estar em todos os lugares, até perto de nós
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