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Um pesadelo chamado frango
Data de Publicação: 31 de janeiro de 2021 21:28:00 HUMOR - Um história bem-humorada sobre um drama pessoal com a ave, que me atinge negativamente desde que nasci.
Essa ave agourenta me persegue pela vida toda e vivi muitas histórias por causa dela. Mas hoje estou em paz e livre desse problema. Espero que para sempre e em todo lugar onde estiver.
A minha triste história com o frango vem de longa data já: começou quando eu ainda era um bebê, em Indaiatuba.
É que demorei mais do que os outros para começar a falar. Aliás, demorei tanto, pelo que me contaram, que não falei “Mamãe” ou “Papai” como todo mundo. Fui logo dizendo “Até que enfim”.
Pudera também com tanta espera, né?
Mas, até chegar nisso, foi uma longa jornada pela qual eu tive de passar.
Como já estava com cinco anos e não pronunciava nada, minha mãe ficou preocupada. Achou que eu fosse mudo. Naquela época, década de 60, não se levava ao médico, a não ser que estivesse morrendo, pois havia poucos médicos.
A única saída era recorrer à sabedoria popular e às pessoas mais velhas.
Minha mãe fez um monte de simpatias que ensinaram para ela. Eu era uma cobaia perfeita. Afinal, não podia gritar que não queria ou que não gostava, né?
Para falar alguma coisa que fosse, bebi água na concha do feijão, enfiaram chave de casa dentro da minha boca fazendo o movimento para destrancar e tomei até a água da primeira chuva de janeiro.
Não pensem que acabou.
Eram tantas simpatias que nem lembro mais de todas que experimentei, mas as que me deixaram marcado negativamente mesmo foram as realizadas com o frango.
As mais simples foram uma na qual minha mãe colocava um pintinho para piar na boca e outra que era tomar água na casca do ovo sem clara e sem gema.
Outra dessas simpatias, mais forte, era comer canja morna, que disseram ser boa para esquentar as cordas vocais.
Essa era a preferida da minha mãe, porque já alimentava também.
Comi tanto aquela porcaria que acho que o “Até que enfim” foi um desabafo para me livrar do frango de vez.
Depois que consegui articular bem as palavras, afirmei em alto e bom som para todos que eu não gostava de frango.
Pensa que me livrei?
Que nada.
Foi pior ainda.
Tive uma infância bastante precária, de vacas raquíticas. Era tanta falta de dinheiro que meu pai nem tinha carteira.
Pra quê, né?
Costumo dizer que hoje sim consegui o status de pobre. Naquela época era bem menos que isso, com certeza.
O frango sempre foi um alimento barato no Brasil e já o era naquela época.
Acho que é por isso que dizem que porcaria custa pouco e na minha infância frango era muito barato mesmo.
Então o dinheiro que surgia em casa, minha mãe usava para comprar o quê? Frango, lógico, e nós, eu e meus cinco irmãos, tínhamos de comer, pois não havia outra coisa possível.
Além disso, diga-se de passagem, mesmo o frango mata a fome.
Depois dos oito anos, minha família se mudou para Salto. Nessa época, eu ia para a escola muitas vezes sem comer.
Lembro com saudade de uma professora grávida na Escola Paula Santos, onde fiz o terceiro ano, super boazinha, que se comovia com a minha situação.
Para me ajudar, ela me fazia todo dia sabe o quê? Pasmem: um ovo cozido. Ela o preparava na cozinha da escola mesmo.
Ovo é um frango que não deu certo, registre-se, mas fazer o quê?
Só a fome para desembrulhar o estômago pode compreender isso.
Quando estava no final da escola primária, que era como chamavam o fundamental de hoje naquela época, li um texto uma vez de Monteiro Lobato que falava do fígado indiscreto. Era a história de um rapaz que ia conhecer a família da namorada e a futura sogra servia fígado.
Era uma preferência da família.
Só que ele detestava fígado.
Como não queria desagradar a namorada, o personagem resolveu encarar a comida. Aquilo provocou uma verdadeira revolução dentro dele. O texto relatava o drama com uma riqueza de detalhes enorme, como se descrevesse uma guerra interna mesmo.
Fiquei solidário com o rapaz da história.
Resolvi comigo então que jamais passaria por aquilo na minha vida.
Estava enganado. Passei sim.
Não com o fígado: com o frango.
Mais tarde, conheci uma menina de uma classe social muito mais elevada que a minha. Loira, bonita e muito charmosa. Começamos a conversar e o papo foi longe. Passamos a sair e logo aconteceu o namoro. Ela dizia que me achava o máximo. Sorte a minha, né? Afinal, não é todo dia que um cara pobre namora uma menina rica e ainda por cima bonita.
Um dia fui à casa dela para jantar.
O prato servido era o quê?
Frango ao molho pardo.
Eu não sabia se me transformava em um fantasma e desaparecia ou se pedia licença para ver se o ônibus das seis já havia chegado e não voltava mais.
Resolvi ficar e enfrentar. Não podia desperdiçar aquele namoro.
Desde que fora obrigado a comer frango para matar a fome na minha infância, mesmo sem gostar, fui desenvolvendo uma ojeriza pela ave.
Essa ojeriza é de tal modo grande que era olhar para uma espécie no prato e ver um morto no caixão. A garganta travava, o estômago se armava todo lá embaixo e os suores corriam pelo corpo de alto a baixo.
Eu ficava amarelo na hora.
As pessoas já passavam a me perguntar se estava bem, pediam para me sentar.
Quando me deparei com aquele acidente na minha frente, porque aquele frango em meio aquele molho parecia uma vítima de trânsito, eu não sabia se me matava na frente de todo mundo, se me cegava para não ver mais ou se perdia a memória para não sentir o mesmo gosto.
Era um terror que me assombrava.
Apesar disso, eu sorria.
Parecia que estava em um velório e alguém tinha contado uma piada.
Ria como se gostasse do que estava acontecendo. Não gostava.
Só não queria desapontar a namorada e muito menos a mãe dela, uma mineira especializada em comidas fortes, tradição da cozinha de Minas, que eu até gostava, mas sem frango, só isso, meu Deus, se houver como por favor, eu pensava.
De repente, aquele molho com sangue do frango, misturado com urucum e tomate, transformaram as coxas do bichinho em pernas de um cadáver.
A minha cabeça não parava.
Deu vontade de desistir.
Eu olhei para a namorada, para a futura sogra e para o frango, acompanhado de arroz branco, couve, quiabo e angu, que vinha também com molho por cima.
Minha namorada era tão bonita.
Olhei para o frango de novo.
Não tinha saída.
Afinal era um jantar cerimonioso.
Resolvi encarar mesmo.
Você é um homem ou uma ameba?, internamente eu me cobrava.
Foi um grande erro.
Devia ter dito que era uma ameba.
Quando aproximei o garfo com aquela ave agourenta espetada, houve a mesma revolução do cara do fígado indiscreto. Parecia que o meu estômago havia armado uma barricada e que todos os meus órgãos estavam com as armas em punho e prontos para atacar o inimigo.
O fígado, os rins, o esôfago, estavam todos prontos para atacar e estreitar o caminho do invasor. Abriam-se buracos onde a ave passaria e lombadas enormes também.
Eu sentia aquele caos interno.
Parecia quando a polícia entra em favela do Rio com tanques de guerra.
Os suores já estavam me deixando mal naqueles breves segundos entre decidir comer e levantar o garfo com o bicho na ponta, sob os olhares curiosos de todos.
Quando se vai jantar na casa da namorada, parece que todo mundo quer ver como você come, né?
Pensei: eu como igual a todo mundo gente. Qualquer paguá come como eu.
Olhem para lá, por favor.
Não olharam.
Criei coragem então e enfiei um pedaço da ave agourenta na boca.
Aquele gesto maluco fez com que os meus dentes parecessem cair da boca na hora.
A boca gelou, o nariz entupiu, um vermelho subiu para o rosto.
Era como se eu pegasse fogo.
Todos os meus defensores internos agiram contra o frango em uníssono.
A reação foi imediata e foi a que eu menos queria: eu vomitei o frango em cima da mesa. Pensa um pouco: em cima da mesa da futura sogra, da namorada e de todo mundo que estava por perto.
Ela tinha uma irmã, o pai e uma tia lá.
A cena foi tão constrangedora e tão inexplicável em palavras que acabei perdendo a namorada ali mesmo.
A loira tentou contemporizar, mas ninguém admitiu: é um porco, disse a tia.
Depois disso, entrei de cabeça em uma espécie de tratamento para evitar o pior.
Consegui superar a aversão após algum tempo, ao menos em parte.
Passei por uma reeducação profunda.
Eu não podia ser vencido por uma ave. Um frango não poderia ser mais forte que eu. Era o que dizia para mim mesmo.
Voltei a comer a ave, mas assada ou bem fritinha, só desse jeito.
Nada de frango ao molho, fosse do que fosse, principalmente o vermelho sangue.
Estava no final da minha adolescência.
Como comer frango naquela época acontecia só às vezes, fui levando de boa.
Pensa que eu estava livre do problema?
Nada disso.
Aconteceu de novo, infelizmente.
Meu pai passou a criar frangos no quintal de casa.
Era para ajudar nas despesas.
Por conta disso, havia a tal ave horrível no cardápio praticamente todo dia.
Não só isso: minha mãe sempre trabalhou fora. Não dava para ela conseguir fazer uma variedade muito grande de pratos. Então o frango era tão conhecido quanto nota de cinco.
Lá estava eu encalacrado com o frango de novo e sem muita saída.
Pior do que comer frango quase todos os dias, era que os derivados do frango também eram consumidos com muita frequência em casa. Era frango como mistura como se dizia, torta de frango, ovo cozido, omelete, ovo no pão, ovo com batata, salada com frango desfiado, salpicão.
Meu Deus, eu não sabia mais o que fazer para me livrar do trauma.
O meu desentendimento com o frango virou então um caso de separação definitiva a partir dessa convivência nada pacífica.
Sabe quando qualquer coisa pega?
Comi tanto frango que me sentia até atordoado quando passava perto daquelas chamadas televisões para cachorro, os famosos assadores de açougue e padaria, que esquentam longe.
O cheiro já me causava uma espécie de convulsão: ficava com olhos embaçados.
Demorou para me livrar disso.
Mas decidi que não continuaria.
Primeiro fui deixando de comer as partes mais estranhas: nada de moela, carcaça, coranchim, pescoço, cabeça, crista de galo e nem pé de frango.
Depois deixei de lado as asas, coxinha da asa ou tulipinhas, sobrecoxa, coração e por fim o peito, que sempre era o mais disputado por todos.
Um dia decidi pelo fim.
Não comeria mais frango nem assadinho e nem mesmo fritinho.
Era a separação sem volta.
De papel passado mesmo.
Pensa que consegui ficar livre de vez?
Nada disso.
Aconteceu de novo.
Nem eu acreditava.
Desta vez foi no quartel.
Servi em Lins na infantaria e passei em torno de um ano lá.
Eu já tinha decidido não comer frango nunca mais, mas na infantaria o soldado precisa ter pernas fortes.
Quem serviu lá, sabe.
Corríamos ou marchávamos 10 km todos os dias carregando mochilas pesadas. Afora isto eram 160 polichinelos para serem executados em duas horas, mais abdominais, flexões de braço, barras e muitos outros exercícios.
Resultado: dava para comer até pedra.
Agora pensa em uma tragédia.
No quartel, teve frango no meu cardápio simplesmente todos os dias em que estive lá, no almoço e no jantar de domingo a domingo.
Só para se ter uma ideia do que eu enfrentava: o prato lá era chamado de “Frango à Granada”, em uma referência ao fato de o corpo vir em pedaços irreconhecíveis, mergulhados em um líquido marrom, que era chamado de “Chá de Coturno”, o sapatão pesado que usávamos.
Voltei a ter os pensamentos de antes.
Os pedaços eram tão horríveis que pareciam cadáveres naquela bandeja de metal. A visão era tão dantesca que eu chamava o prato de prateleira do IML.
Se pudesse, não comeria esse frango.
Ah não comeria mesmo.
Infelizmente tive de comer por conta da fome que tinha e da falta de opção.
Não pensem que isso foi o máximo.
O ponto mais terrível dessa convivência insólita com a ave agourenta no quartel foi em um exercício de sobrevivência na selva, que fomos obrigados a fazer já no final do período em Avanhandava.
Depois de uma instrução rápida sobre como comer um frango na selva, envolvendo desde a caça e o abate até o cozinhar e o temperar, usando o próprio frango apenas, fomos levados para o meio do mato no final da tarde e soltos com o bicho vivo.
Na instrução, os soldados eram obrigados a beber o sangue do frango colocado na caneca do cantil.
Tive a impressão de beber meio litro de tanto que pensei ter bebido naquele dia.
Primeiro, o sargento cortava a cabeça da ave. Depois pendurava o corpo pelos pés em uma prancha de instrução. Em seguida, marcava o entorno dos pés com a baioneta e puxava toda a pele com as penas, como se fosse uma roupa.
Quando todo o sangue escorria, o sargento abria a ave e nos ensinava a usar órgãos do próprio frango para temperá-lo. Tinha sempre um órgão que era bom e outro que não. O nosso desafio era descobrir qual era o certo olhando direto no bicho.
O cozimento seria feito depois, enterrando o corpo na terra envolto em um papel plástico amarrado.
Todos informados, o comando dividiu os soldados em grupos de cinco. Cada grupo recebeu um frango vivo, ao qual tinha de caçar para poder matar, cozinhar e comer.
Eu e meus companheiros de grupo levamos todo o final da tarde para conseguir pegar o desgraçado, que voava e gritava muito e se embreava cada vez mais no mato para escapar, com uma agilidade que eu nunca tinha visto.
Depois levamos mais dois dias para matar, limpar cozinhar e poder comer. Na verdade, tivemos muitas dúvidas sobre qual parte usar para o tempero.
Se errássemos, a carne ficaria amarga e se perderia, o sargento alertara antes.
Outro ponto que demorou bastante foi o cozimento, que tinha de acontecer por meio do calor da terra. Aquela região era bem quente. Embrulhado no plástico, o cozimento acontecia, mas demorava.
Aquele foi o último frango que comi.
Eu espero que tenha sido o último da vida.
Lembro-me de dizer no dia: agora é para valer.
De lá para cá, se comi algum frango, foi disfarçado em outro produto, afinal ele está presente em diversos alimentos, principalmente os embutidos.
Aliás, esse problema não é só meu.
Conheci um político certa vez que não comia frango também e eu atrapalhei muito a vida da mulher dele quando contei que os embutidos levavam frango.
Ele nunca mais comeu embutidos.
Ela odiou a decisão, porque reduziu muito o número de produtos que poderia oferecer ao marido.
Mas, para um político, não comer alguma coisa é um problema dobrado. O eleitor gosta de ver o candidato comendo a mesma coisa que ele e do mesmo jeito.
Mesmo não comendo mais frango, não me faltaram experiências torturantes com a ave ainda depois do quartel.
A pior delas aconteceu quando fui visitar uma granja a trabalho em Porto Feliz. Para redigir uma reportagem para a Gazeta Mercantil, tive de entrar no meio de centenas de frangos, pintinhos ainda, para conhecer o processo de criação.
O cheiro que exalavam era insuportável.
Aqueles pios intermináveis quase me fizeram vomitar só de passar perto.
Na noite daquele dia sonhei que estava sendo torturado por um frango gigante que me obrigava a comer ovos cozidos com a gema mole, que escorria amarelinha sobre o arroz branco.
Acordei com um gosto de losna na boca.
Foi o dia inteiro com aquele gosto.
Em outra oportunidade fui convidado a participar da Festa do Frango em Pereiras. Era uma visita a trabalho. Eu fazia uma página de turismo na Gazeta e tive de ir.
Foi a visão do inferno.
Tudo que existia naquela festa era de frango. Pensa um pouco. Tinha um prato chamado Caldo de Quenga, linguiça de frango, strogonoff, pastel, bolinho, tudo.
Nunca sofri tanto na minha vida por não ter opção para onde olhar.
Comer, nem pensar.
Uma última passagem foi ainda pior: aconteceu na casa de uma amiga francesa, fotógrafa que trabalhava comigo na Folha de São Paulo.
Ela me convidou para comer uma caldeirada na casa dela na companhia de vários outros colegas.
Só que havia um combinado com a mãe, que faria o prato, para que usasse frango em vez de peixe, o que era possível dentro da receita.
A tentativa era de me enganar e me "desmascarar" na frente de todo mundo, como ela dizia.
Essa fotógrafa sempre disse que era frescura minha não comer frango e prometera para os colegas um dia provar, mas eu não imaginava que aquela caldeirada era sua forma de me “desmascarar”.
Quando cheguei, já disse à mãe dela que não comia frango e a senhora me assegurou que não usara a ave.
- Fique tranquilo.
Fora muito séria ao afirmar que a caldeirada era de peixe.
Acreditei.
Era uma senhora já.
Durante o jantar, realizado em meio a muita música eletrônica e em um ambiente meio escuro para que eu não percebesse, peguei um pouco da caldeirada e coloquei no pão e, ao levar o pão à boca, tive o que chamam de, acreditem, edema de glote, uma reação alérgica aguda.
Fui socorrido rapidamente e melhorei após receber uma injeção de adrenalina.
Eu poderia ter morrido.
Mas quem quase morreu de remorso foi a mãe da minha amiga e ela própria, claro.
Até hoje ela se diz arrependida e com o coração partido.
Por isto, hoje não como frango de jeito nenhum, em nenhum lugar do mundo e não importa quem prepare o prato.
Quem me conhece, já sabe e não se arrisca com minha amiga, felizmente.
Ah como não queria ter essa aversão.
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Em todos os domingos você encontrará um conto novo neste espaço com vários tipos de abordagem.
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