Um desejo, apenas um desejo

18 de outubro de 2020

Um desejo, apenas um desejo

Data de Publicação: 18 de outubro de 2020 18:20:00 TORRACA - Veja como o desejo de um colega na Folha de São Paulo assustou a todos os jornalistas em mais este episódio do livro.

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SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO

Em uma época na qual o medo dominava redações, fui obrigado a mostrar que tinha coragem. Não hesitei em enfrentar o temor que assustou a todos os jornalistas que trabalhavam comigo na Folha. Mas eu estava certo.

 

 

O sorriso era o seu forte, mas era nos seios volumosos, que herdara da mãe, uma italiana de Palermo, na Sicília, onde os olhos de todos paravam, homens e mulheres, quando se apresentava ou mesmo quando só passava na rua sem dizer nada e isto incomodava sobremaneira Giulia Francesco, afinal ela morava no Brasil, onde o dote feminino em destaque não eram os seios, mas o traseiro.

Não que ela quisesse de forma nenhuma ser notada por este atributo.

- Eu não sou um corpo. Não sou seios grandes, bunda bonita ou coxas fortes. Eu sou uma mulher. Eu penso. Eu tenho ideias. Eu sou uma profissional de arquitetura. Eu quero ser reconhecida pelo ser humano que eu sou. Eu choro. Eu rio. Eu faço qualquer coisa, como qualquer um, em qualquer lugar, puta que pariu.

O desabafo me fez rir muito.

- Eu sei e concordo com você, mas isto é uma coisa do Brasil. Aqui faz muito calor. O clima é quente. As pessoas andam com poucas roupas. É natural que se valorize o corpo. Que te vejam por um atributo dele. E nós, brasileiros, somos mais calientes do que outros povos, ou seja, prestamos mais atenção às mulheres.

- Atenção a seios, a bunda, a coxas? Estou cansada disso. Estou cansada de me sentir um objeto sexual. Queria que me vissem pelo que sou, pelo que faço, pelo que eu sou capaz.

- Você já pensou em uma temporada na Itália?

- Eu não quero sair do Brasil.

- Giulia, deixa eu te dizer uma coisa: o que você está querendo não vai acontecer aqui no Brasil. A nossa cultura é assim. Poderá sim encontrar homens que não sejam membros da manada. Mas dificilmente eles serão considerados ou aceitos como normais. E, se você tiver um homem que não seja “normal”, o entrosamento no grupo será difícil. Todos vivemos em grupos. Precisamos nos ajustar.

- Ai meu Deus.

- Tente focar em outras coisas. Para mim, por exemplo, o seu forte é o sorriso. Você tem os dentes certinhos, brancos. Quando sorri, a sua expressão fica suave e você fica mais bonita. Mas, se eu disser para algum homem que acho isso de você, ele vai me chamar de veado e dizer para eu procurar o meu bofe.

Ao ouvir, Giulia confirmou o que eu dissera.

Abriu um sorriso largo, bonito, simpático.

- Você não é brasileiro, né?, ela disse.

- Giulia, faça o que eu disse: foque em outra coisa. Mude a sua preocupação.

Nossos papos eram sempre dessa forma: divertidos, leves, instrutivos.

 

Eu conheci Giulia por acaso.

Um dia estava no dentista e ela apareceu.

Estava nervosa, atrapalhada, em dúvida.

Tinha hora marcada, sentou-se do meu lado para esperar e começou a falar do que a afligia.

- Eu não sei se ficará bom fazer o branqueamento. Mas eu preciso fazer alguma coisa. O que você acha?

- Eu?

- É, você. Por que não? Não tem opinião?

- É claro que tenho, mas não sei se a minha opinião vai te agradar ou se ela vai servir aos seus propósitos neste momento.

- Mas eu não te pedi que me agradasse ou que me servisse neste momento.

Fiz uma expressão de espanto com o que ela me disse arregalando os olhos.

Rapidamente, Giulia se desculpou.

- Ai meu Deus. Desculpe, eu nem o conheço e já estou aqui te dando bronca. É meu jeito italiano. Não foi por mal.

Eu sorri com o jeito atrapalhado dela.

- Não se preocupe. Não fiquei chateado. Entendo como se expressa.

Ela olhou para o teto e olhou para o chão. Depois, me espiou graciosa. Aí sorriu sem preocupação. Parecia à vontade de novo.

Foi aí que notei que o seu forte era o sorriso.

- O que está pensando? perguntei.

- Estou pensando que você é muito legal.

- Obrigado. Você também é. Gostei de você.

- Verdade?

- Sim.

- Mas você não me respondeu o que acha.

- O que acho?

- Se devo fazer o branqueamento ou não.

- Ah sim. Não deve.

- Não devo? Por quê?

- Porque seus dentes já são brancos. Seu sorriso já é bonito. Para que fazer um branqueamento que não acrescentará nada?

- Ora essa. Você acha isso?

- Acho sim.

- Muito obrigada.

Ela se levantou, foi à recepcionista e pediu para cancelar a consulta marcada.

Depois, veio até mim e disse:

- Posso te dar um beijo de agradecimento?

Eu ri da espontaneidade de menina dela.

- Não precisa não.

- Mas eu quero.

- Está bem.

E Giulia me deu um beijo terno e delicado no rosto e depois foi embora.

Um dos homens que esperavam por atendimento comentou:

- A peituda gostou de você.

Não fiz nenhum comentário a respeito, mas reprovei o dele baixando a cabeça.

 

Na época em que conheci Giulia, eu trabalhava na Folha de São Paulo.

Entrei no jornal na capital, mas me transferi para Campinas depois de algum tempo.

O episódio do dentista se deu em 1994.

Depois que voltei para a redação, me dei conta de que a menina espontânea do consultório poderia ser uma bela personagem em uma reportagem que tinha pautado.

A história falava de como as pessoas puxam assunto com as outras nos mais diversos lugares e falam sobre os mais variados temas sem se preocuparem com quem estão falando.

Principalmente as mulheres faziam isto em muito mais oportunidades naquela época. Acho que até hoje fazem. Talvez seja da natureza feminina, que precisa sempre falar mais que o que o organismo masculino exige.

Tem uma pesquisa que vi certa vez que diz isso em números. As mulheres teriam necessidade orgânica de falar 2 mil palavras por hora, enquanto os homens só 500.

Não sei se é verdadeira essa tese, mas observando pessoas como Giulia, concluo que há evidências muito fortes nessa pesquisa.

Eu era editor do caderno à época. Então pedi para o repórter encarregado do texto procurá-la. Não tinha o seu contato, mas era só ligar na clínica e pedir para a recepcionista.

Foi o que ele fez e logo Giulia já estava na nossa reportagem e nas nossas fotos.

Carlos Torraca, um dos nossos fotógrafos, registrou o sorriso branco e lindo dela.

Depois comentou comigo que a personagem era muito simpática, que ele gostara dela também, já que eu o havia prevenido antes de que se tratava de uma pessoa legal.

Tínhamos no grupo uma troca muito gostosa sobre impressões que tirávamos dos personagens que encontrávamos nas nossas reportagens e nos contatos para elas.

Além de Carlos Torraca, outro bom fotógrafo com quem trabalhei nessa época foi Marcos Peron: eles tiravam expressões ricas das imagens que focavam para o jornal.

 

Quando a reportagem saiu, Giulia me ligou para agradecer e disse que precisávamos tomar um café para comentar a repercussão.

- Jura que foi boa?, quis saber.

- Você não imagina como. Sabe que até consegui que me vissem de outra maneira. Dessa vez não foram os meus seios que chamaram a atenção, mas o que sou, o que penso e o que posso fazer. Obrigada.

Fiquei feliz por ter proporcionado a Giulia uma situação mais agradável com a reportagem.

Não era todo dia que alguém ligava para agradecer pelo nosso trabalho.

Aliás, pouquíssimas pessoas faziam isto e creio que até hoje são muito seletivas as que se dão ao trabalho de agradecer jornalistas.

Uma vez, quando fiz um curso de gestão de crises com a imprensa, percebi na prática isto.

Na época eu trabalhava como gestor de comunicação de um político. Tínhamos uma dificuldade muito grande com uma determinada jornalista de um veículo. Ela era sempre do contra e não valorizava nada do que ele fazia.

O político me pediu para resolver e eu não sabia como fazer. Por isso, fiz o curso. Essa informação que consegui estudando me ajudou neste e em vários outros episódios.

Neste especificamente, o que fiz foi descobrir quando a jornalista fazia aniversário. No dia em questão liguei para ela para conversar sobre uma pauta e disse que havia me lembrado que ela fazia aniversário naquele dia. Cumprimentei-a e fiz elogios a sua conduta, que sempre fora mesmo muito séria no jornalismo.

Agradeci pelas reportagens que fazia.

O resultado disso foi fantástico.

No outro dia, ela deu uma reportagem sobre o que eu havia sugerido e sem críticas.

A partir dali, travamos um bom relacionamento que cresceu e me ajudou muito como assessor do político. O que faltava era só perceber que a jornalista existia, valorizar o seu trabalho e agradecer pelo que fazia.

Essa lição eu aprendi dos dois lados.

 

Mas algum tempo depois daquela reportagem na qual enfocamos a Giulia, ela desapareceu de uma forma inesperada.

Sempre conversávamos e trocávamos ideias sobre jornalismo, arquitetura, vida e, acreditem, sobre futebol. A Giulia era corintiana fanática e eu sempre fui palmeirense.

O desaparecimento não foi resultado de uma discussão ou desentendimento.

Tornamo-nos próximos, conversávamos frequentemente e algumas vezes nos encontrávamos para um café presencial.

Ela havia se tornado amiga também do Carlos Torraca, com quem conversava como comigo.

Achei estranho o desaparecimento porque aconteceu abruptamente.

Um dia mandei uma mensagem e ela não respondeu. Mandei outra e nada. Que estranho, pensei. Ela sempre respondia.

Resolvi ligar para o número dela, mas só dava caixa postal e, nem deixando recados, ela retornou uma só vez que fosse.

Quando acontece uma situação dessas, a primeira coisa em que pensamos é no que fizemos para aquela pessoa.

Sempre achamos que fizemos alguma coisa errada ou que desagradasse, mas eu não me lembrava de nada. Aliás, a nossa última conversa havia sido muito alegre. Ela fazia planos para viajar à Itália da mãe, finalmente.

Ocorreria no final do mês e estávamos no início ainda quando falamos do assunto.

Torraca me disse que também estranhou o desaparecimento da Giulia.

Bom, não havia outro meio de saber senão indo até ela e perguntando o que ocorrera.

Tinha seu endereço. Um dia sai da Folha e fui.

Era uma casa velha na região central.

Bati várias vezes e não saiu ninguém.

Perguntei a uma vizinha que saiu para ver quem era depois de tantas batidas.

Ela então me disse o que de fato tinha acontecido com a Giulia Francesco.

Vítima de Aids, a minha amiga havia morrido.

- Como assim: vítima de Aids?

- Ela contraiu a doença de um namorado há algum tempo, mas não tinha tido manifestação ou pelo menos nós não sabíamos.

- Pois é, ninguém sabia. Conversávamos sempre. Ela nunca me disse nada.

- Não tinha coragem de dizer. Nos últimos dias começou a ficar mal e uma doença oportunista a levou para o hospital. Ela não resistiu.

Foi assim que eu descobri que existia uma doença chamada Aids e que ela matava.

É claro que sabia dela antes, mas nunca havia perdido ninguém conhecido meu.

 

Depois da morte da Giulia, passei a ver vários outros casos acontecendo bem próximos.

Havia um certo pânico de todo mundo sobre como se proteger para não pegar.

Trabalhava em um veículo de comunicação, tinha acesso a muita informação, mas tudo ainda era pouco conhecido na época.

De certa forma, guardadas as devidas proporções, aquela situação me lembra um pouco do que ocorre hoje com o coronavírus.

Embora muito se fale sobre as formas de contaminação e sobre os cuidados, conheço várias pessoas que não se cuidam como eu e que não fazem nada do que eu faço para me proteger e que nunca tiveram um sintoma sequer ou qualquer coisa próxima por causa da doença, desafiando a compreensão.

Na época da Aids, ainda havia uma situação mais explícita, que eram os grupos de risco.

Não eram grupos como os do coronavírus, formado por idosos, pessoas com comorbidades ou quem tem doenças específicas.

Os grupos de risco daquela época eram homossexuais por causa do número excessivo de parceiros, usuários de drogas pelo compartilhamento de seringas e outros instrumentos usados para se drogar e heterossexuais de várias idades, que não usavam preservativos ou que faziam ou recebiam sexo oral em parceiros eventuais.

Ou seja, se não queria pegar, era só não se arriscar. O problema é que surgiam boatos sobre contaminação em banheiros públicos e em contatos da convivência em sociedade, como beijos no rosto, toque de mãos e contato com o sangue de alguém contaminado. Isto era um problema mais grave se houvesse ferimento.

Lembro bem que o pânico se instalou de tal forma na redação, que as pessoas praticamente se afastaram umas das outras.

Essa situação me fez lembrar da Giulia. Ela era uma pessoa muito extrovertida, aberta aos bate-papos informais. A sua forma de se comportar era fatal para os então novos tempos. Triste isso, porque aquela forma de agir dela era muito prazerosa, sempre fora.

Um dia fui informado que o Carlos Torraca também caíra doente por conta da Aids. A contaminação havia sido devido a uma seringa compartilhada. Ele se afastou e começou um tratamento com o que se tinha na época para combater a doença, o que não era muito.

Devido à insegurança sobre as formas de contaminação exatas e ao pânico de pegar a doença sem ter sido exposto como nos grupos de risco, quase ninguém foi visitá-lo da redação.

Apenas o companheiro de função, o Marcos Peron, esteve com ele algumas vezes. Eu até quis fazer uma visita, mas, escudado no volume de trabalho que tinha, não fui.

O tempo passou e o Torraca foi ficando cada dia pior. Naquela época não havia um tratamento eficaz. Se tratava muito as doenças oportunistas, mas pouco se podia fazer contra a síndrome propriamente dita.

Depois surgiram coquetéis com a mistura de vários medicamentos que acabaram dando uma sobrevida a quem se contaminou. Hoje o tratamento é feito à base de antirretrovirais, que poupam o sistema imunológico. Esses medicamentos impedem que o vírus se replique dentro das células e evitam, assim, que a imunidade caia e que a aids apareça.

Não foi o caso do Torraca. Ele foi definhando rapidamente. Emagreceu muito e passou a pegar uma doença oportunista atrás da outra.

Um dia, Marcos Peron me disse que o Torraca estava em estágio terminal, mas que tinha um desejo que queria realizar antes de partir.

Pensei no que poderia ser e queria ajudá-lo no que fosse possível. Disse isso ao Peron para me colocar à disposição, já que não tinha ido visitá-lo até então e não me sentia bem por isso.

E então o Peron me disse que realmente o desejo dele dependia de mim fundamentalmente para ser realizado.

- O que é meu Deus? perguntei aflito.

- Ele quer fazer uma visita a todos aqui. Sabe que não tem muito tempo. É como se quisesse se despedir dos colegas de redação.

Confesso que o medo voltou a ser grande para mim. Eu não tinha ido vê-lo achando que poderia pegar a doença. E agora ele queria vir até mim e até todos. O que fazer?

Pensei durante toda a noite do dia em que fiquei sabendo e conclui que eu não podia tirar essa possibilidade daquele amigo. Era só uma questão de medo que tinha, não era fundamentada em uma contaminação de fato.

No dia seguinte, eu disse ao Peron:

- Diga a ele que pode vir e será muito bem recebido, porque é um amigo nosso.

Ao comunicar a minha decisão aos outros jornalistas que trabalhavam comigo, acompanhada, é claro, de toda uma argumentação sobre a importância de recebermos um velho amigo que estava passando por essa situação ruim e de confiarmos nas informações que tínhamos e divulgávamos todos os dias sobre as formas reais de contaminação da doença.

Para minha surpresa, todos concordaram.

No dia em que fora marcada a visita, eu estava revisando uma reportagem e a redação estava cheia de jornalistas quando fui avisado:

- O Torraca chegou, disse o Peron.

Suspirei profundamente e respondi:

- Diga para ele entrar.

Em seguida, abaixei a cabeça e pensei na Giulia, no próprio Torraca e em tantos outros conhecidos e amigos que se foram pela doença.

Quando levantei a cabeça, não havia mais ninguém na redação. Eu estava sozinho, completamente sozinho. Todos haviam saído com medo de se contaminarem.

Mantive a minha palavra mesmo assim.

Carlos Torraca entrou caminhando lentamente ajudado pelo Marcos Peron.

Estava muito fraco e muito debilitado.

- Seja muito bem-vindo Torraca.

- É você Eloy?, ele me disse.

- Sim, sou eu.

- E cadê os outros?, ele perguntou.

Foi muito duro responder.

 - Eles estão por aí. Você sabe como é a Folha, né? Aqui a gente não para. Por isso, não fomos visitar você. Mas torcemos muito por você.

Ele se emocionou e não percebeu que não havia ninguém porque já estava quase cego.

Nos abraçamos e ele foi embora.

Alguns dias depois o Torraca faleceu.

 

 

FIQUE SABENDO

Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.

Imagem da Galeria Um fotográfo com um desejo inadiável na Folha de São Paulo
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