Um amor à beira do rio

28 de fevereiro de 2021

Um amor à beira do rio

Data de Publicação: 28 de fevereiro de 2021 15:08:00 CONTRA A CANALHICE - Hoje trago um tipo conhecido como de exemplo, que é utilizado para mostrar a luta entre o certo e o errado.

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Anne nem bem saía de um relacionamento fracassado e mergulhou em outro. Desta vez com um homem que era o homem dos sonhos de qualquer mulher. Mas uma vidente mudou a vida deles com uma previsão terrível.

 

 

Apesar da dificuldade pelo vestido longo e negro, os saltos altos e o próprio medo que sentia, embora fosse já uma decisão definida, Anne conseguiu escalar a mureta de segurança sobre a ponte do rio Tietê, erguida em concreto, na entrada de Salto, apenas alguns minutos depois de começar a empreitada.

O gesto solitário só enfrentava o vento forte da noite fria, que bagunçava os cabelos longos como estavam bagunçados seus pensamentos.

Já apoiada, com os calcanhares enfiados nos vãos dos pilares da mureta do lado de fora da ponte, ela abriu os braços como a falar para uma multidão que não existia:

- Agora tudo vai estar acabado de vez.

A frase era a última que pretendia pronunciar antes de se entregar à morte em um salto sobre as pedras e as águas.

- Não faça isso. Não faça, por favor, gritou, quase em desespero, um desconhecido, de porte atlético, bem-vestido com roupas da moda, olhos profundamente azuis, reluzentes à luz do poste instalado ao lado deles.

Anne o teria ignorado facilmente não fosse a presença atraente que ele possuía.

Quase que hipnotizada pelo homem, ela mais se prendeu à ponte que se soltou. O gesto deu tempo suficiente para que o desconhecido se aproximasse, segurasse os seus braços e a impedisse definitivamente de se matar.

Com cuidado, ele a ajudou a passar o corpo outra vez para o lado de dentro da ponte.

Em seguida, apanhou uma de suas mãos e a levou, como se a conhecesse havia anos, para um banco do jardim da praça principal da cidade, a Archimedes Lammoglia.

Anne ainda estava confusa sobre as razões para não ter levado a sua decisão até o fim.

Ela não entendia o que aquele homem tinha que a paralisara e a deixara tão sem ação.

 

Quando a viu sentada em segurança, ele se levantou, caminhou de um lado a outro e voltou o seu olhar a ela para interrogá-la:

- Posso falar um instante com você?

Completamente sem fala, ela concordou com um abano de cabeça. Ele prosseguiu lentamente. Parecia escolher as palavras que ia dizer.

O jeito inesperado como apareceu, o gesto de salvá-la, o ar compenetrado agora, a fala macia, tudo a cativou de imediato.

- Você tem ideia de para que serve nossa vida?

Esperando um sermão, por conta da situação anterior, Anne respondeu meio sem jeito:

- Bem, para várias coisas, eu acho.

Mentalmente, ela já definira o que faria a seguir se o sermão viesse: iria mandá-lo à merda. Estava encantada com ele, mas não queria ser repreendida. Era disso que estava cansada.

Todos se achavam no direito de julgá-la.

Ela não era melhor que ninguém, nem pior.

Enquanto Anne calculava mentalmente os próximos passos, os olhos dele observavam algumas construções quase na linha do horizonte, que podiam ser vistas depois da ponte que os separava da saída da cidade.

As luzes distantes iluminavam as construções, mas não era possível defini-las por causa do escuro e da distância em que estavam.

Seus olhos fitavam literalmente o infinito, ela concluiu, ao observá-lo naquele gesto absorto.

- Não, meu anjo. A nossa vida serve para amarmos alguém. Para termos um amor descomunal por uma pessoa, ele pronunciava a frase como se estivesse em um palco. - Esse sentimento é algo avassalador. Ele move tudo. Todas as outras coisas que fazemos são em função dele. Você nunca amou assim?

- Receio que não.

Algumas amigas de Anne haviam surgido na praça e circulavam próximas dos dois, ela notou com o canto dos olhos, os olhares curiosos delas.

Ele continuava:

- Pois eu acredito que você vai ter um deslumbramento assim.

- Você é médium, adivinho ou o quê?

- Não, não meu anjo. Eu sou simplesmente essa pessoa por quem você vai se apaixonar.

- Enlouqueceu? Eu nem conheço você. Então acha que basta alguém me salvar de um suicídio e se sentar ao meu lado para tudo acontecer?

- Quer argumentos para se convencer?

- Não se trata disso. Você não...

- Você está sem namorado no momento.

- Isso, mas...

- Chio, ainda não terminei. Você acha que nunca foi amada de verdade. Se sente mal com o julgamento das pessoas em seu redor. Mesmo assim, a sua grande esperança é encontrar alguém de olhos azuis. Você gosta de que sejam educados com você, não gosta?

Ela o olhava com cara de decepção agora.

- Quem não gosta? Olhe, isso tudo que está dizendo é uma tolice. Você...

- Educado ao ponto de lhe dar passagem quando se sabe que só existe um lugar. Apesar de não gostar da conversa, Anne não conseguia deixar de pensar no que ele falava. - Como na fila do banco, o desconhecido continua. - Lembra, você aguardava lá na terça-feira e estava cansada de esperar? Eu deixei que passasse na minha frente. Depois, o guarda não me deixou entrar mais no banco e eu fiquei sem atendimento.

Ela se lembrava do episódio.

Mas não tinha qualquer lembrança dele.

Era impossível.

Com aquele porte que tinha, ela se recordaria.

Mesmo assim, por mais que forçasse a memória não lhe vinha à mente a imagem do homem que fizera aquilo por ela na terça.

Lembrava-se apenas de que era um homem.

 

Ela ainda tentava se lembrar, ele voltou à carga com mais um questionamento:

- Quando você foi abandonada pelo seu último namorado, lembra-se do que fez?

- Não sei. Ah, sim. Fiquei desnorteada. Estávamos nesta mesma praça quando ele terminou. Lembro que saí chorando sem direção. Fui até a ponte. Minha vontade era de me atirar no rio como faria agora se você não tivesse aparecido no exato momento... Mas espere. Por que estou dizendo isso a você?

- Você só não se matou porque alguém lhe disse para não fazer como eu fiz agora, não foi?

- Sim, mas... Era você da outra vez também?

- Eu.

Ela não o enxotava porque, apesar de não gostar da conversa, o homem era atraente.

- Olhe, eu estou ficando confusa com tudo isto. Como sabe tanto sobre mim? Eu não me lembro de tê-lo visto antes em nenhuma situação.

- Sabemos tudo de quem amamos, meu anjo. É uma dependência que grita. Essa pessoa está para nós como a rosa está para o espinho. Ela é o que o torna melhor. Você me faz melhor.

- Acho tudo isso muito estranho.

- Lembra-se de quando seu pai morreu?

- Como sabe que ele morreu?

- Meu anjo...

Aquilo mexeu com a curiosidade dela.

Era extremamente crédula em premonições, gente que recebe mensagens do além. Acreditava em reencarnação. Outras vidas.

- Não, isso não é possível. Meu pai morreu há anos. Foi longe daqui. Você não pode...

- Eu sei. Ele era um próspero agricultor. Tinha várias fazendas, muitos empregados. Mas um dia foi ele mesmo dirigir um trator e parou a máquina na frente da porteira da fazenda que vocês tinham em Umuarama, no Paraná. Infelizmente o trator andou sozinho. Seu pai foi esmagado sem piedade. O que é mais trágico nisso tudo é que ninguém pode ajudá-lo.

Anne estava em prantos quando ele terminou de relembrar a tragédia da sua família.

A forma como ele contava tudo, com uma precisão incrível nas palavras, fez com que ela revisse a cena e sentisse novamente a perda.

O desconhecido falava calmo, como se narrasse um episódio da história do mundo.

Anne se sentiu invadida.

Parecia que ele a despia sem tocá-la.

- Você está bem?

- Sim, estou. Estou sim. É que essa história...

- Não quero fazê-la ficar triste. Só queria lhe dar motivos para provar que eu sou a pessoa certa que chegou para a sua vida.

- Olhe, mesmo que saiba tanto sobre mim, isto não me faz apaixonada por você.

- Meu anjo, eu disse que se apaixonaria por mim. Não que já estivesse apaixonada. Você acabou um relacionamento traumático agora com o Samuel. Não é para este momento.

Ela resolveu encerrar a conversa de vez:

- Pois então não crie ilusões.

- Não se preocupe. Voltarei na hora certa. Por hora, fique com o meu telefone.

O desconhecido lhe deu um papel dobrado, onde havia um número de telefone anotado ao lado do seu nome: David.

 

Ele saiu, as amigas se aproximaram de Anne.

- Nossa que espetáculo de homem!

- De onde você tirou esse fofo?

- Você estava escondendo o jogo, hein?

Ainda confusa, ela se irritou:

- Quantas bobagens mais vocês vão dizer?

- Ei, calma. Só estávamos falando sobre o que vimos. Um homem desses não dá mole assim.

- Sobre o que não vimos você vai falar agora, não vai? Estamos loucas para saber.

- Não sei do que estão falando.

- Então você fica de papo com um gato desses o maior tempo do mundo. Isto porque estava mal por terminar com o Samuca e dizendo que não queria ver ninguém. E depois vem dizer que não sabe do que nós estamos falando? Amiga, você está dando a volta por cima.

- E em grande estilo com esse fofo.

Anne achou prudente não falar o que o desconhecido lhe havia dito. Se dissesse, ainda mais com essa interpretação das amigas, ia ser pior e mais difícil de explicar.

- Ah, é sobre isso? É só um cara.

As amigas ficaram sem graça.

Acharam que Anne não queria mesmo papo.

Sem apoio para as fofocas, elas a deixaram só novamente em pouco tempo.

 

Em casa, Anne ainda estava impressionada com aquele completo estranho que sabia tudo dela e que dizia o que ele dizia.

No início achou uma cantada barata.

Quantos já não lhe fizeram isto?

Anne era bonita, tinha o corpo bonito. Vestia-se bem, sabia conversar, era delicada.

Sabia que era atraente e sabia também que há muito tempo os homens haviam perdido a capacidade de uma boa cantada.

A maioria, como aquele desconhecido, se valia da beleza para garantir as conquistas.

- Nós é que somos bobas de aceitar quem não tem nada a ver só por ser bonito, pensava.

Depois, logo viera à sua mente, o que Samuel fizera com ela, que ela julgava inaceitável.

Ele a traiu e ainda a culpou por isso.

Tudo que ele lhe dissera estava ainda doendo para ela e Anne estava perturbada demais.

A tentativa de suicídio, só agora ela refletia.

Que bobagem faria.

- Homem nenhum merece uma atitude dessas. Ninguém merece uma atitude dessas, pensava.

Felizmente aquele estranho a salvara.

De novo o estranho.

De novo os pensamentos.

A forma como ele falava, como a abordou, como se declarou, tudo aquilo a deixava curiosa e ao mesmo tempo perturbada.

Ela remoía já uma vontade de ligar para aquele David e de repente se dava conta de ela só descobrira o nome depois de ler o que ele escrevera ao lado do número do seu telefone.

Ela queria conversar com ele sobre a sua vida, já que ele sabia tanto dela.

Afinal, a vida dela estava de cabeça pra baixo. Ela se sentia rejeitada com o fim do namoro. Julgada demais pelo ex e por todos.

A família achava que ela deveria ser mais aplicada nos estudos e namorar menos.

A ansiedade com tudo o que vivia, a fazia titubear sobre as decisões ou decidir errado e pronto e fora isso o que fizera antes na ponte.

Anne chegou a tomar o telefone nas mãos por quatro vezes para ligar, desistindo a seguir.

Achava patético procurar um estranho.

Havia uma Anne dentro dela que era dura.

Ela mesma se julgava agora e se condenava.

Mas ele falava tão macio, outra dela defendia na sua mente a tentativa. Ele sabia tanto sobre ela, insistia a Anne que queria. Afinal, ele não era assim propriamente um estranho.

O lado que queria falou mais alto:

- Alô.

- Alô, meu anjo. Preparei um lindo jantar para nós dois. Vou pegar você em meia hora.

- Não, não, eu não vou jantar com você.

- Por que ligou então?

- Eu, eu, eu não sei por que liguei.

Ela bateu o telefone nervosa.

Achava-se uma idiota.

Ligar para um cara com uma conversa mole daquelas. Era coisa de gente burra mesmo. A Anne que era contra falava alto agora.

Alguns minutos depois, ela refletia melhor.

A Anne a favor rebatia.

Era uma bobagem ficar nessa de se achar pior do que era. As amigas já haviam ficado babando pelo cara. Ela estava sozinha, era uma pessoa independente. Bem financeiramente. Ou seja, não devia nada a ninguém. O tal David era um homem educado. Que mal teria jantar com ele?

Ligou novamente.

- Desculpe.

- Eu entendo, meu anjo, disse ele com toda a calma do mundo. A voz macia, pausada.

– A que horas então?

- Dentro de meia hora. Não era isso?

- Isso.

 

Durante o jantar, Anne percebeu mais uma qualidade que aquele homem tinha.

- Você cozinha muito bem, elogiou.

- Obrigado, meu anjo.

Enquanto jantavam, beberam uma garrafa de vinho e era vinho do bom, que ela estava acostumada a tomar com Samuel e em família.

Já passava da meia-noite, Anne estava tonta.

- Acho que bebi demais.

- Você só está um pouco cansada, minha querida. Deite-se no sofá. Relaxe enquanto vou tirar os pratos e trazer a sobremesa.

Mesmo sem querer aceitar o convite, Anne acabou se deitando. Seria deselegante não aceitar a sobremesa, pensou. Mas, na verdade, ela não se aguentava em pé mais um minuto.

 

Acordou só no outro dia.

David fazia o café.

- Que horas são?, perguntou, olhando pela janela. – Meu Deus, já é de manhã? Eu dormi aqui com você? O que você fez? O que me deu?

- Acalme-se, meu anjo. Sente-se para tomar o seu café. Não se preocupe com nada.

-  Não, eu não posso. Eu não poderia. Meu Deus! O que eu fiz? O que vão dizer de mim?

Olhando para ele intrigada:

- O que aconteceu nesta noite?

Ele, com a calma de antes:

Você dormiu no sofá.

- Isso eu sei, mas o que você fez?

- Fiquei acordado um bom tempo olhando para o seu rosto. Fazia planos sobre a nossa vida. Quero ter três filhos. Você acha que está bom?

- Você é doido mesmo. Que planos? Que vida? Acho melhor ir embora e o mais rápido possível.

Ela ia saindo, ele disse:

- Não vai se despedir de mim?

Anne foi lhe dar um beijo no rosto, ele se virou rapidamente e roubou-lhe um beijo na boca.

 

As amigas ficaram sabendo do jantar.

Mais que isto: ficaram sabendo que dormira lá.

Foram todas buscar informações sobre a noite que ela tivera com o tal David.

- Vocês estão loucas. Não houve nada. Eu bebi demais. Dormi no sofá. Foi só isso.

- Como nada? Um gato daqueles Anne. Você está de brincadeira. Não rolou nem um beijo?

Ela se lembrou do beijo roubado e colocou os dedos sobre a boca como se quisesse esconder.

- Beijo? Que beijo? Ora, me deixem em paz.

As amigas já tinham certeza do que acontecera, mas achavam que ela não queria falar, ao menos por enquanto por causa do ex.

Acabaram deixando-a sozinha outra vez.

Assim que saíram, Anne se sentou no sofá e voltou a pensar no tal David.

- Preciso esquecer tudo isso. O cara é um doido. Não tem nada a ver, pensava alto.

 

No dia seguinte, as amigas voltaram à sua casa para trazer uma notícia que ela não esperava.

O tal David estava no hospital.

Havia sofrido um acidente com o carro que dirigia após se sentir mal ao volante.

Anne foi visitá-lo.

- Como foi isso, David?

- Que bom que você veio. Achei que ia morrer sem vê-la outra vez. Eu estava desesperado já.

Os olhos dele brilhavam.

As amigas estavam junto com ela desta vez, mas um pouco mais afastadas no quarto.

Por mais que tentasse negar um envolvimento com David, alguma coisa já havia dentro dela.

Anne tentou desconversar para as amigas.

- É só um amigo.

Ninguém acreditava, principalmente porque antes de sair do quarto, ele beijou as mãos dela dizendo que logo estariam juntos outra vez.

 

Dois dias mais se passaram.

Quando David saiu do hospital, os dois se encontraram em um restaurante para jantar.

Conversaram durante horas.

Ele sempre sabia muito sobre ela.

Parecia que havia passado a vida observando-a ali de pertinho. Aquilo os aproximava. Ao mesmo tempo encantava Anne. Ele era alguém que se preocupava com ela, que a acompanhava.

Beberam muito vinho outra vez.

Outros encontros se seguiram.

Ela já não se importava mais com os olhares e nem com os comentários das amigas. Achou que não haveria nada de mal serem vistos juntos.

- Samuca que se foda, dizia.

Mas não estava segura para ter um relacionamento. David era encantador, mas era um desconhecido ainda para ela.

Apesar disso, quando ele a deixava em casa, ela oferecia a boca para ser beijada.

Sempre que se encontravam, Anne não conseguia dormir depois. O rosto de David vinha a todo momento à sua mente. As coisas que ele dizia. Tudo era motivo para não a deixar em paz.

Após terem visitado a praça principal de Salto novamente e tomado um sorvete, ele a deixou em casa, a beijou e fez juras novamente.

Outra vez Anne não conseguia dormir.

Ela se levantou. Tomou água. Tentou ler.

Sentia-se incomodada.

Resolveu ligar para David.

- Passo aí em meia hora, ele disse.

Os dois saíram de carro outra vez.

Andaram por vários lugares.

Era lua cheia.

Ele colocou músicas românticas para tocar.

Ela se acomodou no ombro dele enquanto dirigia, como se quisesse se aninhar feito gata.

A noite estava tão clara quanto agradável.

Pararam perto da ponte outra vez.

Conversaram por horas ali.

Beijaram-se, tocaram-se.

Acabaram fazendo amor dentro do carro.

Quando o sol nasceu, estavam exaustos. Mesmo assim, ele a convidou para ir ver o rio.

Desceram e foram de mãos dadas.

- Esse rio me impressiona, ele disse.

- Por quê?

- Pelo seu jeito. Você olha pra ele, não nota, mas ele não é só a mansidão que você vê.

- Como assim?

- Ele vem manso por entre as pedras. Parece se desviar delas. O que é o mais sensato, já que elas não podem ser removidas por ele. Mas, quando menos se espera, uma delas se solta de onde estava solidamente presa e vai com ele. Elas se soltam do seu lugar para seguir com o rio. Ou seja, como que sem esforço ele arrasta as pedras do seu caminho para seguirem com ele.

- Acho que esse rio é como você, ela disse.

- O que quer dizer?

- Que eu estou completamente apaixonada por você, que você me arrasta atrás de você.

David a abraçou e a enlaçou.

Depois, os dois se beijaram demoradamente ao som das águas batendo nas pedras.

 

Mais tarde, David foi apresentado às amigas dela como seu namorado.

As amigas voltaram a babar.

Desta vez, Anne demonstrava uma felicidade sem tamanho que não queria mais esconder.

 

Oito meses depois casaram-se.

Após a cerimônia, ainda com as roupas do casamento, voltaram ao rio.

- Este lugar é surpreendente, disse ela.

- Por quê?

- Veja você, eu vim aqui para me matar um dia. Depois foi aqui que encontrei uma razão para a minha vida. Hoje estou aqui feliz com isso.

E o casamento trouxe muita felicidade aos dois. Ele se sentia realizado com ela, elogiava-a sempre. Ela o achava o homem perfeito.

Mas, sete anos depois do casamento, quando ele fez 30, David disse para Anne em tom entristecido, quando os convidados da festa do aniversário já haviam se retirado, que descobrira uma coisa muito séria e que tinha de falar a ela.

Aquilo a deixou muito assustada na hora.

Primeiro pensou que fosse uma traição.

Logo agora que vivia feliz e já havia esquecido o que Samuel lhe fizera, não, não poderia ser.

Pensou em seguida que fosse alguma coisa com os negócios. Mas, desde que se casaram, ele se mostrara um expert em finanças. Havia triplicado o dinheiro que ela herdara do pai.

Poderia ser alguma coisa de saúde então.

Ela não conseguia imaginar o que fosse.

Voltou-se para ele desesperada:

- O que está acontecendo, pelo amor de Deus?

- Eu vou morrer em sete anos, ele disse.

- Como vai morrer? Você está doente? O que aconteceu? Eu não sei de alguma coisa?

- Não, não estou doente, mas recebi o diagnóstico de uma vidente e precisava falar a você para que se preparasse.

- Deixe de bobagem.

- É verdade.

- Se não está doente, então como vai morrer? Vira essa boca pra lá. Pare com isso.

- Será por insuficiência respiratória. Em um belo dia vou puxar o ar, mas ele não virá.

Anne não queria acreditar naquilo. Só que sempre fora crédula em premonições, gente que recebe mensagens do além. Acreditava em reencarnação. Outras vidas. Tudo aquilo começou a girar na sua cabeça sem parar. Ela chorou compulsivamente com medo enquanto ele falava. Só parou quando ele parou de falar.

 

O episódio acabou esquecido nos dias que se seguiram. Anne pensava consigo: fora só uma vidente idiota que errara na previsão.

A vida do casal seguia feliz.

Vieram os filhos.

Primeiro um menino de quatro quilos. Depois duas meninas mais miúdas.

O assunto da morte nunca mais foi tratado.

 

Às vésperas de completar 37, David retomou a conversa em tom sério.

- Você precisa se preparar meu anjo.

A ideia era discutir como ela iria tocar os negócios, a vida, tudo, depois dele.

Ela encerrou o papo.

Não queria nem pensar na hipótese.

- Temos três filhos. Precisamos é pensar no futuro deles. Você sempre me deixa confusa com essa mania de saber de tudo. Desde o início é assim. Isto me assusta, viu? Como acertou sobre nós em tudo, eu tenho medo de que agora seja verdade também. Não faça isso comigo.

Em lágrimas novamente, ela completou:

- Eu não quero, ouviu? Não quero!

- Meu anjo, é verdade. Assim como o meu amor por você sempre foi de verdade. É pra isso as nossas vidas: para amarmos muito alguém, como eu te amo. Só que não duramos para sempre. Um dia temos de partir para outro lugar.

Anne ficou irritada e o deixou falando sozinho.

Foi chorar no quarto longe de todo mundo.

David abraçou os filhos e chorou com eles.

 

Um dia depois de fazer 37, ele morreu.

Anne achou o corpo.

Levantara-se mais cedo para fazer o café.

Quando voltou para a cama, ele estava agarrado aos lençóis com ar de desespero.

A sua expressão era de como se tivesse tentado chegar à janela em busca do ar.

Os olhos profundamente azuis estavam esbugalhados, a boca de tanta fala macia que a encantou estava arroxeada, o corpo atlético completamente imóvel para sempre.

A premonição da vidente se confirmara.

Anne chorou de forma descontrolada e inconsolável por meia hora aos pés do cadáver.

Só depois encontrou energia para chamar alguém que pudesse tomar as providências.

Os filhos tinham ido à escola assim que ela se levantara com a van que sempre os levava.

Agora ela estava sozinha outra vez.

O impacto da morte se estendeu ainda por vários meses, porque, ao contrário do que ele pedira, ela não se preparara para aquela situação e não tinha a menor ideia do que fazer.

Por diversas vezes, ela voltou à praça perto da ponte na saída de Salto. Sempre ia olhar o rio. Tentar entender todos aqueles segredos de que ele falava que aquelas águas teriam...

 

Algum tempo depois da morte do marido, Anne teve de rever os documentos. Ela tinha de fazer o inventário e verificar como iriam ficar os negócios a partir dali sem David.

Doeu-lhe muito revirar documentos dele, mas ela tinha de fazê-lo para resolver tudo.

Era a primeira vez que olhava aquelas pastas.

Durante todo o tempo em que estiveram casados, nunca ela teve contato com nada.

Por isso achou curioso que, entre os papéis, houvesse um caderno de capa vermelha, tipo fichário. Folheou as primeiras páginas. Não demorou para descobrir do que se tratava. Estavam ali diversas informações a seu respeito.

Eram relatórios completos sobre a sua família, os bens, o comportamento dela, os relacionamentos que tivera, os negócios, tudo o que ele havia dito sobre ela estava ali.

Foi só aí que entendeu.

- Então ele sabia tanto sobre mim por isso. Desgraçado! Ele levantou informações a meu respeito. Mas para que tudo isso? Ele passou a vida casado comigo. Se fosse para me roubar, teria ido embora quando conseguiu pôr as mãos em tudo e ele colocou as mãos em tudo.

A Anne que era contra voltava à ação.

Pouco depois, ela refletia.

A Anne que era a favor, concluía:

- Não. Tudo isto é mais uma prova de que ele realmente estava apaixonado por mim. Ele me amou de verdade. Isso ele sempre deixou claro. É, eu o amo, seu bobo. Ainda hoje eu o amo, disse ela beijando uma foto dele no meio dos papéis, que ele tirara havia pouco tempo.

Em seguida, Anne guardou os papéis e no dia seguinte encaminhou o que precisava para o advogado da família, que cuidaria de tudo.

O incidente que ela descobrira sobre a forma como ele se aproximou nunca foi revelado.

 

Meses depois.

Anne recebeu um comunicado do seu advogado informando que todo o dinheiro a que ela teria direito já não lhe pertencia mais.

O advogado contou que David havia feito um testamento dizendo o que desejava.

O testamento fora feito depois de receber a premonição da vidente que consultara.

Quando se casaram, David assumiu os bens que ela herdara do pai, triplicou o patrimônio, mas agora ela ficava sabendo que ele os repassara a uma outra mulher e de forma legal.

Cecília e dois filhos que tivera com David eram os principais beneficiários da herança. Ficariam com dois terços. A Anne e aos seus três filhos com David, ele deixara um terço do patrimônio.

Anne ficou sem chão outra vez.

O que mais poderia acontecer?, pensava.

Voltou aos documentos para tentar achar algo que a ajudasse a rever tudo aquilo e acabar com aquele pesadelo que estava vivendo.

No meio deles encontrou uma carta de David para Cecília. Ele se resignava por passar a vida casado longe do seu verdadeiro amor:

- Para que serve a vida, senão para amarmos alguém de uma forma descomunal?

 

 

Anote isto

A cada domingo veja neste espaço um conto novo com uma abordagem também nova. A ideia é mostrar que um mesmo autor pode escrever histórias sob qualquer ótica. Desde o início, já trouxe aqui um drama psicológico, um caso policial, uma história com ETs, outra sobrenatural, uma história de humor, outra com foco sexual, uma história infanto-juvenil e outra infantil do tipo "Era uma vez...". Hoje é a vez da história de exemplo, na qual se enfatiza a luta entre o bem e o mal. Veja mais sobre "Contos de Domingo" no link: https://eloydeoliveira.com.br/senta-que-eu-vou-te-contar-historias-contos-de-domingo

Imagem da Galeria Quando o amor é inesperado, surpreendente e inescapável
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