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Rugas do espírito
Data de Publicação: 8 de dezembro de 2020 19:05:00 COMPORTAMENTO - A irritação constante não é o normal para ninguém, mas sempre tem um motivo que pode estar escondido de nós.
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
Alberto era a irritação pura. Nada o agradava nem o deixava tranquilo. Ele não suportava ser chamado de idoso. Embora tivesse 61 anos, não se achava como tal. Mas tudo pode mudar da noite para o dia.
- A sua fila é aquela lá, senhor.
Alberto fez de conta que não era com ele.
A mulher do caixa insistiu:
- Senhor, o caixa dos idosos é aquele ali.
Como desta vez estava mais próximo dela, não teve como não responder:
- Eu não sou idoso.
- O senhor não tem 60 anos?
- Não tenho.
- Ah, desculpe. Achei que tivesse.
A mulher ficou envergonhada com a resposta dele. Não esperava. Acabou disfarçando.
Não demorou Alberto estava cara a cara com ela para passar as suas compras.
- O senhor vai querer o CPF na nota?
- Não, não precisa.
Na hora de pagar com o cartão de crédito, a maquininha travou e não passou o pagamento.
A mulher passou de novo e o problema se repetiu, irritando Alberto.
As pessoas começaram a olhar para ele.
- Moça, o que está acontecendo?
- Eu não sei. Está dando cartão inválido. O senhor cancelou esse cartão?
= É claro que não. Se cancelasse, não estaria comprando com ele, não é?, disse ríspido.
- Sim, sim. Desculpe. A caixa estava ficando nervosa com ele. Já a deixara envergonhada antes. Agora a tratara mal e mostrara aos outros que ela não sabia o que falava.
- Moça, eu preciso ir embora.
- O senhor tem um documento de identidade?
Ela queria checar se ele era dono do cartão.
A informação de que o cartão estava invalidado podia indicar que fora cancelado. Mas ele já dissera que não cancelara. Podia estar mentindo. O documento provaria que o cartão era dele pelo menos. Ela tentou checar.
Alberto deu a ela a identidade.
Estava contrariado, mas deu.
A mulher conferiu os dados e aí viu que ele tinha 61, ao contrário do que dissera antes.
- O senhor tem 61 anos, disse.
- Você queria minha identidade para isso?
- Não, é que...
- Olhe moça, se não cobrar agora, eu vou embora e vou deixar essas compras aqui.
- Desculpe, vou tentar de novo.
Ela tentou outra vez e agora o cartão passou.
- Obrigado, Alberto mascou a palavra.
- De nada. Na próxima vez, o senhor pode usar o caixa dos idosos. O senhor é idoso.
Alberto olhou furioso para ela.
A mulher queria provocá-lo por ele tê-la exposto duas vezes sem motivo.
- Vá à merda, disse depois de segurar a raiva por alguns segundos entre os dentes.
A caixa arregalou os olhos e o acompanhou com eles até Alberto desaparecer da sua frente.
A irritação era uma constante na vida de Alberto, mais ainda nos últimos tempos.
Ele não sabia exatamente a razão.
Talvez fosse a idade, o passar do tempo, as deficiências que passou a perceber no corpo.
Não fazia uma semana encontrara um amigo dos tempos de serviço militar.
O homem o reconheceu na hora pelo jeito de andar, que ele dizia, mas Alberto não concordava, que era um jeito manco.
De fato, Alberto puxava uma perna.
Mas se irritava quando apontavam o problema, mesmo que por brincadeira como fora o caso do ex-colega dos tempos de quartel.
Ele pediu o número de Alberto e já adicionou no celular enquanto conversavam.
- Alberto, montei um grupo de whatsapp. Todo o pessoal que serviu com a gente está lá. Você também precisa estar. Vou te colocar.
- Não gosto dessa coisa de whatsapp.
- Que nada. É bacana. Você vai gostar.
O amigo deu de ombros para a rejeição dele.
Quando pegou o celular mais tarde, já em casa, Alberto viu que estava no grupo.
Ficou irritado por ser contrariado. Por que as pessoas faziam isso? De qualquer forma, resolveu dar uma olhada para ver como era.
Os ex-companheiros do serviço militar estavam todos lá mesmo e todos o cumprimentavam com alegria por estar lá também depois de tantos anos sem se falarem.
Alberto sorriu pela primeira vez nos últimos tempos com os comentários de boas-vindas.
Talvez não fosse uma coisa tão ruim estar naquele grupo de whatsapp, achou.
Domingo, Alberto dormiu no sofá depois do almoço. Era involuntário. Almoçava, se sentava para ver televisão. Cochilava.
Chegava a babar enquanto dormia.
Foi despertado pela sinalização de que havia chegado uma mensagem no whatsapp.
Olhou e era do grupo do quartel.
Um dos ex-colegas publicara uma foto do neto que acabara de nascer: estava feliz e quis compartilhar com os integrantes do grupo.
- Esse é meu netinho gente. Nasceu faz três dias. Não é a cara do avô?
Alberto foi o primeiro a ver.
Não gostou, afinal ele não tinha netos.
A filha estava casada havia oito anos já, mas nunca quisera engravidar.
Todos faziam pressão. Ela dava de ombros. Nem mesmo o pedido de Alberto ouviu.
- Que bobagem publicar a foto do neto, disse para si mesmo ao ver o menininho com cara amassada na foto do ex-companheiro.
Deixou o celular de lado e começou a prestar atenção ao filme que a televisão mostrava.
Os outros integrantes do grupo de whatsapp não tiveram a mesma imagem de Alberto.
Mesmo quem não tinha netos como ele, fez comentários de apoio e de incentivo.
Outros, que tinham netos, aproveitaram a deixa para publicar fotos deles também.
Virou um festival de neto para cá e neto para lá e de elogios para todo lado.
Quando Alberto retomou o celular para ver o grupo, ficou enojado com as imagens e falas.
- Onde já se viu ficar nessa babação de ovo.
Alberto estava tão irritado que resolveu falar alguma coisa sobre aquilo e jogar água fria em toda aquela conversa que se arrastava.
- Vocês não cansam dessa babação de ovo?
- Ei Alberto, um netinho é sempre bom. Você não tem nenhum ainda?, disse um deles.
- Não, não tenho não. Mas não acho que seja bom não. Criança só enche o saco.
- Que isso Alberto? Criança enche a casa de alegria, disse o ex-companheiro que o colocou no grupo de whtasapp a contragosto dele.
- Imagina Alberto, criança é uma benção, disse mais um dos ex-companheiros de quartel.
A gota d’água foi quando outro dos integrantes deu os seus motivos:
- Os netos são a prova de que estamos velhos Alberto. Não tem jeito mais. Você também está. Pode não ter netos, mas está.
Aquela afirmação irritou ainda mais Alberto.
- Eu não sou velho coisa nenhuma.
Todos riram, colocaram figurinhas para gozar a cara de Alberto e áudios também.
Ele jogou o celular no sofá.
Foi para o quintal.
- Gente idiota, resmungou.
De volta ao supermercado no meio da semana, Alberto se dirigiu ao caixa normal.
A mulher que o abordara da outra vez não perdoou o “vá à merda” que ele dissera.
- Senhor, senhor. Vovô. O senhor mesmo, ela disse quando Alberto olhou e não teve como fugir, afinal já tinha gente tocando o seu ombro.
- O que você quer?, ele disse furioso.
- A fila dos idosos é aquela ali.
- Olhe aqui, eu já te mandei à merda outro dia. Por que você está insistindo com isso? Quer ouvir de novo que vá à merda?
As pessoas próximas começaram a interferir.
- Ei vovô, não precisa ficar nervoso. Ela só quer ajudar. O senhor tem preferência.
Outra mulher da fila disse:
- É a lei. O senhor está protegido.
- Vovô, pare de criar caso e vá para a fila certa.
- Ô Matusalém, deixa de tumultuar, senão vou chamar a carrocinha, brincou um jovem com pirceng no nariz fazendo todos rirem.
Alberto ficou transtornado.
- Matusalém, vovô e o que mais disseram é a puta que pariu vocês todos.
Ele pegou as compras, jogou tudo em cima da mulher do caixa e saiu sem levar nada.
Quando chegou em casa sem nada, a mulher ficou muito brava com ele.
Olga não era de reclamar. Já estava acostumada com a irritação permanente dele. Alberto havia se tornado um chato, mas ela estava com ele havia mais de 40 anos.
Só que não trazer as compras e ainda jogá-las na mulher do caixa não era normal.
Ele passara de todos os limites.
- Você enlouqueceu Alberto? Não pode fazer isso. E se essa mulher dá parte de você?
- Ah, disse ele, discordando.
- E as compras agora? Eu preciso do que te pedi para comprar. Como faremos?
- Eu não sei. Não vou voltar lá. Como você disse, essa mulher é capaz de me agredir.
- Se ela fizer isso, você reclama na polícia. O estatuto do idoso não permite isso.
- Olga, vou te falar pela última vez: eu não sou idoso. Não tem nenhum estatuto para mim. Pare com essa bobagem, senão vou engrossar.
Olga fez uma provocação.
Sabia da irritação dele com a idade.
Ela riu e saiu de perto.
- Meu Deus Alberto. Você está cada dia pior. Olha, não vou aguentar isso não.
- Ah, fez ele de novo.
Sábado depois do almoço Alberto estava no sofá babando de novo quando o som de mensagem nova do whatsapp o acordou.
Foi olhar e era do grupo do quartel.
De novo estavam com aquela história de netinho para cá e netinho para lá.
Todo mundo festejando o fato de estar mais velho para poder ser avô.
- Quem imaginava que nós, aqueles soldados destemidos que enfrentavam tudo, íamos estar aqui hoje babando por um netinho?
- Ser avô é ser pai de novo, disse outro.
- Eu adoro o meu netinho. Ele me lembra muito como eu era. Vai dar um bom soldado.
- O meu é muito forte. Vocês não imagem como esse menino é forte. Puxou o avô.
Risos, elogios e tome áudio com o netinho falando e vídeos com o netinho aprontando.
Alberto olhava tudo com raiva.
- Gente, eu vou sair do grupo. Vocês me desculpem. Estou cansado dessa história de netinho para cá netinho para lá.
- Deixa de ser rabugento Alberto.
- Não sou. É que é muita babação de ovo. Vocês não cansam não?
- Alberto, você não sente a mesma coisa, porque você é muito novo ainda e não chegou na idade de ter netos, mas vai mudar.
Alberto deveria ficar contente com a afirmação do ex-companheiro que o colocou no grupo, afinal não queria ser idoso.
Mas a afirmação soou para ele como um insulto. Ele sabia que não era mais novo que eles. Todos serviram juntos. Tinham a mesma idade. A diferença é que ele não tinha netos.
- Ah tá, então eu sou mais novo?
- Não é na idade Alberto. Você é mais novo de espírito. A gente se entregou à idade. Você não.
- Está certo então. Por isso vou sair do grupo. Estou no lugar errado.
- Não faça isso Alberto. Gostamos de você. Fique com a gente. Logo logo você tem um netinho para mostrar e vai ficar como nós.
- Eu não vou fazer isso que fazem nem que eu tenho um neto como dizem. Não concordo com essa babação de ovo. Vocês são muito idiotas.
- Duvido que não faça.
- Eu não sou mole como vocês.
- Quando for avô, vai ser.
- Ah, fez ele e jogou o celular no sofá.
Alberto estava inconformado com o grupo.
Por ele saía e acabava com tudo.
Mas alguma coisa não o deixou levar à frente aquela ideia de sair e pronto.
Sua vida estava ficando difícil.
Não podia ir mais ao supermercado. Não podia falar no grupo de whatsapp. Tinha brigado também com o pessoal do jogo de truco.
Nem ele se aguentava mais.
O que fazer? Não sabia. Nem imaginava.
Estava amargurado consigo mesmo.
Foi para o quartinho que mantinha nos fundos da casa com ferramentas e alguns tranqueiras.
Passou o resto da tarde de sábado mexendo em pregos, parafusos e porcas velhas.
- Alberto, chamou Olga quando já escurecia.
- O que foi?
- Venha aqui: a Rê veio nos ver.
Rê era Regina, filha deles.
Ela não ia muito à casa dos pais. Um pouco pela rabugice de Alberto. Outro pouco porque o marido não ia muito com a fachada do sogro.
Embora gostasse de Alberto, a conversa entre o marido de Rê e ele não fluía.
Sempre ficavam quase mudos por horas.
O genro achava que a culpa era de Alberto, que sempre estava bravo ou nervoso.
Alberto foi à sala e lá estavam os dois.
- Pai, vim aqui para te dar uma notícia. Estou grávida. Você vai ser vovô, ela disse sorrindo.
A informação foi como um soco no estômago de Alberto. Era um impacto forte. Ele nunca pensou em ser avô. Ou sempre pensou e nunca conseguiu. Dava no mesmo.
- Como é que é?
- É verdade pai. Estou de três meses. A gente queria que a gravidez se firmasse antes de falar.
- Então é verdade mesmo?
- É sim, pai. Você gostou? Você quer ser avô?
- Eu?
- É, você. Quer?
- Eu vou adorar ser avô. Quer dizer, acho que vou. Nunca fui. Não sei como é.
Todos riram dele.
Depois abriram um champagne e comemoraram a gravidez que estava a caminho.
- Como vai se chamar?, quis saber Alberto.
- Se for menino, se chamará Alberto em homenagem a você. Se for menina, se chamará Olga em homenagem à minha mãe.
- Verdade?
Os olhos de Alberto se encheram d’água.
Ele não esperava ter um neto e agora ter um neto com o nome dele era melhor ainda.
Resolveu ficar no grupo de whtasapp, mas não falou nada para ninguém sobre o neto.
Todo domingo via os comentários dos ex-companheiros sobre os netos e não falava nada.
Os ex-companheiros do quartel estranharam, mas Alberto era estranho por várias coisas.
O tempo passou e o bebê nasceu.
Era um menino o netinho de Alberto.
Albertinho virou o xodó de todo mundo. Muito mais de Alberto. O ranzinza agora era uma pessoa agradável e conversadeira.
Comprava presentinhos para o neto.
Falava para todo mundo que ia ensinar tudo que sabia para ele quando crescesse.
Queria ver o neto todos os dias.
Fez amizade com o genro.
A vida de Alberto se transformou.
Fez as pazes com quem tinha brigado, novos amigos e passou a sorrir à toa.
Um dia tirou uma foto do menino e ficou olhando um tempão no celular.
Demorou até que se decidisse, mas decidiu.
Publicou a foto no grupo de whtsapp dos ex-companheiros do serviço militar.
- Quem esse?
Encheu o peito de orgulho e respondeu:
- Esse é o meu netinho.
- Está brincando. Sério?
- Sim, o meu netinho.
- Como se chama?
- Albertinho.
Seguiram-se elogios, cumprimentos, babação de ovo como ele dizia antes.
Alberto não se continha de tanta alegria.
- Quer dizer que agora você criou juízo e se tornou idoso Alberto?, perguntou o ex-companheiro que o colocou no grupo.
Alberto riu, mas não respondeu.
De volta ao supermercado, Alberto entrou na fila dos idosos e ficou aguardando a vez.
A mulher com quem discutira e em quem ele jogara as compras, não se conteve.
- Ué, o que aconteceu. O senhor foi para essa fila sem ninguém falar nada?
- Está errado?, estranhou Alberto.
- Não, está certo. Mas o senhor nunca quis. Agora o senhor é idoso?
- Não, eu sou vovô.
FIQUE SABENDO
Todas as terças e quintas tem uma crônica nova neste espaço.
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