Pra cego ver

19 de dezembro de 2020

Pra cego ver

Data de Publicação: 19 de dezembro de 2020 18:59:00 Grandes projetos voltados para a acessibilidade na comunicação surgiram de conversas com quem mais precisa e de ouvir.

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SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO

Na condução de equipes e dentro de grandes corporações é fundamental ouvir. Não que isto não seja necessário em outras situações. Mas nessas é decisivo pelo impacto das soluções tomadas.

 

 

Ela olhou fixamente para mim, após ser apresentada e estender a mão, e disse:

- Por que as pessoas não pensam nas outras?

A frase me soou como uma lamentação de quem não está contente com a sua condição, já que usava uma bengala para se locomover.

Não me pareceu uma reivindicação de alguém com liderança que procurasse defender um grupo ou uma bandeira como eu supunha.

Estava enganado.

Elaine Cristina Santos não era dessas pessoas que se lamentam da sua condição.

Ao contrário, era uma mulher de luta, que não se conformava com a sua condição e com a de outras pessoas iguais ou piores e queria mudar.

Natural de Aracaju, Sergipe, com 5% de visão no olho direito e zero no esquerdo, ela usava como lema e como mantra a frase:

- O medo paralisa, mas a vontade e o desejo de mudar são combustíveis para chegar aonde precisamos e aonde queremos chegar.

Sua bandeira de luta e o que a tinha trazido à minha presença era melhorar a comunicação para pessoas como ela com baixa visão ou cegas.

Após a minha expressão de “como assim”, Elaine se explicou pela frase inicial da conversa. Ela me disse que ninguém se preocupava com gente como ela e as pessoas que defendia.

Para um secretário de Comunicação e Eventos de uma prefeitura do porte de Sorocaba, como eu era em 2017, quando nos encontramos, a afirmação era um soco no estômago.

Mas encarei aquilo como um desafio.

Eu não havia assumido o cargo para passar uma chuva. Ao contrário, a função era já um desafio por si só em razão do chefe.

O prefeito que me convidou, José Crespo (DEM), tinha o perfil de um Jair Bolsonaro, só que sem a idolatria que o presidente tem de admiradores cegos por ele.

Crespo não, colecionava inimigos.

Fazer a sua comunicação era sempre uma luta para vencer o inusitado e o surpreendente.

Disse a Elaine para me contar o que achava que eu poderia fazer como secretário para melhorar a comunicação como ela queria.

Sempre aprendemos na vida e não custa perguntar o que você faria se estivesse no meu lugar. Essa pergunta tem o poder de colocar o interlocutor na mesma situação difícil que nós e, se não for assim, isto é, se ele se der bem na resposta, pode nos dar à luz de que precisamos.

Ela me disse que não conseguia acompanhar as nossas redes sociais, embora tivesse muito interesse nisso e necessidade também.

- Não consigo ler por causa da minha baixa visão. Preciso de alguém que leia para mim. Tenho vários companheiros na mesma situação.

Com a informação, pedi à minha equipe que ajudasse a encontrar uma solução e foi um dos responsáveis pela área de produção de vídeos da secretaria quem me deu a dica.

Rafael Baddini sugeriu usarmos o projeto #PraCegoVer, que reproduzia os textos e fotos com voz para as pessoas cegas ou com baixa visão poderem entender a publicação.

O projeto nasceu da iniciativa da professora baiana Patrícia Braille, em 4 de janeiro de 2012, como comemoração do aniversário do criador do Sistema Braille, Louis Braille.

Patrícia criou um evento no Facebook, ao qual intitulou “Pra Cego Ver”, e que propunha às pessoas que o visitassem experimentar descrever publicações para um cego.

A ideia deu tão certo que virou uma página e se propagou entre grandes instituições.

Adotamos a medida e ela rapidamente foi um sucesso conosco também.

Elaine ficou exultante:

- É a primeira vez que alguém ouve a nossa reivindicação e que podemos participar da comunicação da Prefeitura de Sorocaba.

- A nossa missão é essa: melhorar sempre a comunicação com a população, eu disse.

O tempo passou e continuei conversando com Elaine Cristina Santos frequentemente.

Minha equipe também passou a recebê-la para conversas sobre ideias que ela tinha.

Por isso, achamos que era preciso ir além.

Elaine era uma entusiasta desse trabalho de inclusão, não só por sua condição de baixa visão, mas por querer ajudar outras pessoas.

Em uma de nossas conversas, ouvi dela uma preocupação com a forma como eram tratadas as pessoas com deficiência no transporte público da cidade e principalmente no trânsito.

- Ninguém nota a nossa existência. Passamos por vários embaraços todo dia. Tudo porque temos necessidades especiais.

Novamente recorri à minha equipe.

Minha adjunta, Viviane Gonçalves, sugeriu fazer uma passeata que parasse o trânsito.

Gostei da ideia. Falei com o prefeito e ele topou sair conosco para essa jornada pelas ruas do centro. Isto valorizou demais a iniciativa.

A passeata ganhou o nome de “Caminhada da Inclusão” e percorremos as principais ruas do centro com faixas e cartazes, fazendo barulho.

A imprensa registrou o evento.

Os motoristas também notaram os deficientes, principalmente os do transporte coletivo, nossa maior preocupação.

Depois da realização recebi várias ligações de cidades da região para que transmitisse as ideias para a inclusão e ajudasse a organizar eventos assim nas cidades do entorno de Sorocaba.

Acertamos a mão, conclui.

Já estávamos sendo chamados de Secretaria da Inclusão dentro do governo e o nosso trabalho repercutia na região.

Foi gratificante obter esses resultados.

Com tanto sucesso e a alegria incomum da Elaine e das pessoas que participavam, não podia parar por aí e o campo era vasto para continuarmos a fazer eventos.

Em outra conversa que tive com Elaine Cristina Santos, ela me disse que muitos deficientes tinham vontade de aprender uma profissão ou pelo menos desenvolver um hobby.

- Mas o que poderiam fazer com as dificuldades que já tinham?, perguntei.

Novamente aprendi com Elaine.

Ela disse que as dificuldades fazem parte da vida e que poderíamos criar algo que mexesse com a sensibilidade dessas pessoas.

E é verdade, mas o quê?, me indaguei mentalmente sem expressar minha dúvida.

Fiquei pensando alguns dias e a ideia me surgiu quando me encontrei com o fotojornalista Fábio Rogério, do jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, um velho amigo.

Acostumado a promover eventos de transmissão de informação, como workshops, ele me contou que descobrira o voluntariado como hobby na sua vida e que vinha fazendo diversos trabalhos nessa área no tempo livre.

Na hora eu lhe perguntei:

- Você toparia fazer um workshop ou curso rápido de fotografia para deficientes, alguns cuja deficiência seja a baixa visão?

- Nossa, nunca pensei nisso. Mas a proposta me estimula. Como seria?

- Você trabalharia a sensibilidade deles. Não vamos formar profissionais de fotografia nem fotógrafos freelancers. O objetivo é que eles percebam a sensibilidade que o fotógrafo tem para escolher o melhor ângulo, para ver o que é mais fotografável. Enfim, o que diferencia um fotógrafo de uma pessoa comum.

Ele gostou demais da ideia, mas pediu uns dias para pensar. Tinha de elaborar uma proposta que ofereceríamos aos deficientes e ainda pedir autorização para a direção do Cruzeiro.

Não demorou e Fábio me apresentou o workshop todo formatado e a proposta era muito boa, porque dava importância às pessoas com deficiência e as integrava a um meio novo.

Tratei de conseguir a sua liberação no jornal e de apresentar a proposta para Elaine. Ela adorou. Imediatamente transmitiu aos outros que participariam e fechamos as inscrições.

Realizamos mais esse sonho.

O encerramento foi emocionante.

Não era um workshop como outro qualquer. Era dar a essas pessoas uma possibilidade que ainda não tinham tido. A satisfação delas mexia com qualquer um naquele dia.

Ainda implantamos na Secretaria de Comunicação e Eventos, durante a minha gestão, complementando o trabalho realizado na parceria com Elaine Cristina Santos, um serviço de tradução simultânea de libras para os nossos vídeos institucionais por meio da professora Aline Marchetti, que já trabalhava com essa área havia muitos anos.

Essas ações foram marcos importantes da ampliação da acessibilidade na Prefeitura de Sorocaba durante a minha gestão como secretário de Comunicação e Eventos.

Exportamos as ideias para a região.

Tudo isto foi possível graças à minha equipe, que era muito boa e dedicada.

Mas o mais importante foi realizar sonhos de pessoas humildes que nunca recebiam um olhar das autoridades e do Poder Público.

Aprendi também muito com Elaine Cristina Santos, uma pessoa lutadora realmente que se mudou para Sorocaba em 2011 por conta de um amor e passou a desenvolver inúmeras ações em defesa das pessoas com deficiência.

Ela é a presidente hoje do Movimento Mulheres em Ação, fundado em 2017, que atua na defesa da mulher com deficiência, da mãe da pessoa com deficiência e da pessoa em situação de vulnerabilidade em Sorocaba.

Realmente, o lema e mantra dela faz todo sentido na sua vida e na vida de todos:

- A vontade e o desejo de mudar são combustíveis para chegar aonde precisamos e aonde nós queremos chegar.

 

 

Fique sabendo

Todos os sábados tem um case novo ou uma dica profissional nova neste espaço.

Imagem da Galeria Encerramento da marcha para chamar a atenção para deficientes
Imagem da Galeria Discursos na largada da Caminhada da Inclusão
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