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Pode me bater se quiser
Data de Publicação: 29 de novembro de 2020 18:23:00 LIÇÕES DO MESTRE- Uma das coisas boas desse trabalho de jornalista é poder estar próximo de grandes ídolos como Maradona.
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
Em virtude da morte de Maradona nesta semana, retrato hoje uma passagem que tive com o grande jogador argentino. Uma das coisas boas dessa profissão é poder estar perto de ídolos como neste caso.
- Eu odeio esse pessoal. Queria que quebrassem uma perna quando tentassem fugir. Assim aprendiam a não enganar.
- Nossa, por que tanto ódio?
Eu não entendia a razão do completo desagrado de Roberta, uma das colegas jornalistas que estavam comigo na porta do prédio do jogador Careca, que recebia ninguém menos que o grande Maradona.
Era julho de 1990 e o craque argentino passaria uma semana na casa do brasileiro para descansar depois da Copa do Mundo de 1990.
A Folha me incumbira de montar plantão lá e conseguir uma entrevista exclusiva.
Mas a frente do condomínio de luxo na rua Maria Monteiro, no Cambuí, em Campinas, estava tomada de jornalistas desde que se anunciara que o argentino estava por lá.
Seria uma tarefa impossível uma exclusiva.
Ninguém o vira ainda. A expectativa era de que saísse para um passeio com o dono da cobertura, o atacante Careca. Era esperar.
Roberta estava nervosa e irritada por causa do plantão que teria de fazer como todos ali.
- Mas me diga: por que tanto ódio?
- Porque somos obrigados a ficar aqui feito idiotas enquanto eles se divertem.
- É o nosso trabalho. Ficamos aqui porque são ídolos. Os fãs querem saber como eles estão.
- Ídolos? Só se forem para você. Para mim não são. Eu odeio esses caras, o-d-e-i-o.
Conheci Roberta nas coberturas diárias da imprensa. Era muito novinha, mas geniosa. Falamos a primeira vez porque se irritou comigo. Olhei para aquela menininha moreninha, de franja retinha e postura arrogante. Ela olhou que eu olhava. Não esperou dois minutos e foi me perguntar.
- O que foi?
- Por que acha que foi alguma coisa?
- Porque você está me olhando.
- E isso é proibido?
- É proibido sim.
- Não, não é. Você está enganada mocinha. Eu posso olhar para o que eu quiser.
- Você pode olhar se eu permitir.
- Ah é? Então permita. Pois eu vou te olhar.
- Não vou permitir e você não vai olhar.
- Só se você furar os meus olhos.
Ela parou para processar a frase.
E só então percebeu o que estava fazendo.
Olhou fixamente para mim e fez:
- Grrrrrrrrrrrrrrrrr.
Depois disso passamos a conversar toda vez que nos encontrávamos casualmente.
Ela sempre foi estranha.
Eu tentava entender a irritação toda que vivia por estar ali. Talvez fosse compreensível por ela ser muito jovem, ter um namorado que estava em São Paulo e ter de ficar o final de semana inteiro presa à frente do prédio de um jogador.
Não era o tipo da coisa que fazia a cabeça dela, que gostava de música, cinema, ler.
O pior para ela era que não teríamos uma entrevista com Maradona nem com Careca, a não ser que eles saíssem e do nada resolvessem falar. Mas nem ela nem eu nem ninguém acreditava nisso. Careca ignorava os jornalistas por padrão. Maradona, por sua vez, também não iria falar se o anfitrião não queria.
A nossa espera seria longa lá.
Mas havia toda uma simbologia de estar lá.
Maradona era simplesmente a maior estrela do futebol depois do Pelé para nós brasileiros.
Tinha sido o comandante da Argentina na conquista da Copa do Mundo de 1986 e havia acabado de ser vice-campeão na Itália.
Encontrar-se pessoalmente com ele, ainda que eu não o tenha visto jogar ao vivo, seria algo muito especial sem dúvida nenhuma.
- Não dá para entender: como você faz esporte e odeia jogadores que são as maiores estrelas do momento no esporte? Eu não consigo entender você Roberta.
- Simples: eu faço esporte e amo atletas do esporte, mas não esses, esses caras não.
- Por que não?
- Porque são arrogantes e não estão nem aí com a gente nem com ninguém.
- É difícil que esse pessoal consiga ser simpático: são muitas pessoas no pé. Imagina se param para falar com todos?
- Não justifica Eloy, não justifica.
- Fale a verdade Roberta: se o Maradona te desse um autógrafo, você pegava, não pegava? Você ia se sentir muito diferenciada, não ia?
- Só se eu estivesse louca.
A Roberta era muito difícil.
Enquanto discutia com ela, a movimentação no prédio não parava e nem a agitação dos jornalistas para cada carro que entrava ou saía.
Como a vigília se estenderia e por se tratar de Maradona, a Folha enviou outro colega para acompanhar a possível saída do prédio pelo craque argentino e garantir a entrevista.
Luiz Roberto Saviani Rey era um jornalista experimentado e já tinha sido meu professor na faculdade. Estar ao lado dele lá me foi muito útil, pois eu pude aprender mais sobre como fazer aquele trabalho, que era diferente pela importância do jogador a ser entrevistado.
A primeira coisa que aprendi foi como me comportar em relação aos colegas.
Em uma cobertura jornalista desse tipo, a disputa pela entrevista exclusiva, por conseguir aquele momento especial, é tão grande que muitas vezes alguns jornalistas se esquecem que são colegas de profissão.
Saviani era generoso com todo mundo e sabia o momento certo de atuar. Tinha também as suas técnicas especiais de reportagem.
Para mim, foi fundamental observar o que ele fazia para aprender e poder usar depois.
Uma das coisas era estar atento a tudo o que acontecia não só na portaria do prédio, mas envolvendo a visita do craque argentino.
Por exemplo, ele me pediu para ficar de olho no entra e sai de carros do condomínio e, enquanto isso, começou a perguntar ao porteiro e às pessoas próximas sobre hábitos de Careca, da sua família e do próprio Maradona, ao menos do que se tinha visto até então, já que ele não saíra do prédio desde a sua chegada.
As perguntas de Saviani trouxeram informações importantes, como o horário em que parentes de Careca o visitavam e o tempo que ficavam. Permitiu saber que carro usavam. Ainda se havia alguma programação diferente.
Careca tinha parentes em Santo Antônio de Posse e os recebia com frequência.
Tínhamos a descrição física do irmão e dos familiares de Careca e dos carros também, apesar de que Saviani conhecia alguns.
Agora era só garantir um plantão atento.
Confesso que não acreditei piamente de pronto. Quando observei todo esse trabalho de levantamento feito, achei que fosse perda de tempo. Imaginava que, se Maradona saísse, nós o veríamos e era só seguí-lo para tentar a entrevista exclusiva. Parecia mais simples.
Mas, quando vi que o prédio não parava de receber carros e outra leva de carros não parava de sair e a cada movimento deles os jornalistas corriam como loucos para tentar flagrar Maradona, percebi que ficaríamos cansados de tentar flagrar e não teríamos sucesso sem uma estratégia de ação.
Saviani estava muito certo.
Percebi que ninguém tinha a mesma preocupação dele e tampouco que alguém tivesse bolado uma forma de surpreender.
Até conversei a respeito com a Roberta, mas ela foi simplesmente desanimadora.
- Não vejo razão para essa preparação toda. O que tiver de acontecer aqui e, se acontecer, vai acontecer. Não perca o seu tempo.
- Roberta, definitivamente você não está interessada nessa cobertura mesmo.
- Ahhh, disse ela e continuo lixando as unhas.
O que dizia era bem convincente. Se observasse, nada acontecia a não ser o movimento dos carros, o que acontecia sempre, com Maradona lá ou não.
Era um condomínio de luxo com um fluxo de veículos muito intenso diariamente.
A corrida insana dos jornalistas para cada carro que chegava ou saía começou a irritar os moradores, que se sentiam incomodados.
Aliás, os moradores não gostaram nada nada da presença de Maradona lá.
Ela acabara com a privacidade deles.
Alguns, como a irmã do ex-governador Orestes Quércia (MDB), Alaíde, foram conversar com Careca para reclamar do incômodo que estavam sentindo.
O jogador disse que não poderia fazer nada.
Disse que não mandava na imprensa.
Apenas estava recebendo um convidado e que tinha direito de fazer isto, em que pese ser uma pessoa famosa e interessante para a imprensa como Maradona era no momento.
Outros moradores também receberam o mesmo tratamento da irmã do ex-governador.
Careca não era dado a ser simpático.
Não se sentia na obrigação de agradar.
O ponto alto da reclamação dos moradores em relação à estadia de Maradona lá foi quando Careca resolveu organizar um pagode.
Ele chamou jogadores amigos e lotou a sua cobertura. A festa regada a música alta e muita bebida levou os moradores a pedirem reunião.
Logo depois do pagode, Careca conversou com um grupo. Os líderes dele disseram que queriam que o jogador saísse do prédio. Eles comprariam o seu imóvel para liberá-lo.
Dono de uma cobertura de 600 m2, Careca surpreendeu a todos dizendo que não aceitava.
Em vez de vender o seu imóvel, ele disse que comprava o de todos eles juntos.
Investidor da área imobiliária, o jogador brasileiro já possuía pelo menos cinco prédios completos em Campinas e também tinha investido na área em Santo Antônio de Posse.
Resultado: ninguém vendeu e todo mundo se calou diante da presença de Maradona.
Mesmo com toda a vigilância que nós fazíamos na porta do prédio havia um dia inteiro e mais metade de outro já, Careca levou Maradona a conhecer os pontos turísticos de Campinas em duas ou três saídas escondidas.
Quando Careca e o próprio Maradona divulgaram essas saídas, nossas chefias vieram para cima para cobrar a tal entrevista.
Saviani ficou possesso com a informação.
Não era possível que não conseguíssemos perceber uma saída escondida.
Então combinamos que faríamos tudo com muito mais rigor e com quatro olhos agora.
Toda vez que um carro chegasse ou saísse teria de passar por esse crivo.
Foi uma canseira enorme.
Eram muitos carros que chegavam e saíam o tempo todo do condomínio.
Ainda assim, deixamos o motorista do jornal de sobreaviso para sair a qualquer momento.
Saviani chegou para mim na tarde do segundo dia e disse que tinha uma informação de que o tio de Careca sairia com Maradona naquela tarde. Precisávamos ficar atentos.
- De onde você sabe disso?, perguntei.
- Das minhas pesquisas, respondeu.
Ficamos atentos e dito e feito: no meio da tarde, um dos carros saiu com o tio do Careca e um irmão dele. Saviani reconheceu o tio e me fez sinal para olhar do outro lado.
Quando olhei, vi Maradona deitado no banco de trás quietinho como se fosse um bandido.
Dei o alerta ao Saviani indicando que ele estava no carro. Sem chamar a atenção dos outros jornalistas, Saviani correu para o carro do jornal e mandou que o motorista seguisse o tio de Careca, o que ele fez imediatamente.
Eu não pude acompanhar.
A partir do momento em que o tio de Careca percebeu que havia um carro na sua perseguição, ele acelerou e tentou despistá-lo.
Mas Saviani era implacável na atenção.
Ele dava as coordenadas para não perder o carro de vista. E foram dobrando esquinas, esticando retas, freando inesperadamente, passando em sinais fechados.
A velocidade passou fácil dos 100 km/h. Os automóveis estavam quase colados um no outro. A confiança de que Maradona estava lá era grande, pois, se não estivesse, teríamos um problemão com o dono do carro perseguido.
A perseguição só acabou quando os dois chegaram perto da ponte do Shopping Iguatemi. Ali o motorista da Folha jogou o carro para cima do carro do tio de Careca, fechando-o e impedindo que ele continuasse.
Saviani desceu do carro como se fosse um policial americano que estava prestes a prender um bandido altamente perigoso e procurado.
O que ele não esperava era que o craque argentino, irritado com a perseguição e com o fechamento do carro em que estava, saísse do veículo e fosse tirar satisfações.
Maradona desceu, arregaçando as mangas enfurecido, e partiu para dar um murro no rosto de Saviani, que não sabia o que fazer, a não ser esperar ser atingido com violência.
Era como se dissesse:
- Quer me bater, pode bater, mas fale comigo: tenho uma entrevista exclusiva a fazer com você e não saiu daqui sem ela.
Quando Maradona estava prestes a acertar o rosto de Saviani, o tio e o irmão de Careca, que já haviam descido também, o reconheceram.
Saviani era conhecido no meio esportivo, porque fazia a cobertura de esportes para a Folha havia anos e sempre fora respeitado.
- Não bata Dieguito, não bata, gritou o irmão de Careca no exato momento do soco.
Saviani suou frio, mas depois relaxou.
- Ele é o Saviani. É gente boa. Gente nossa.
- Eu só quero uma entrevista exclusiva, mais nada. Só isto. Meu jornal me incumbiu disso, disse Saviani quase que suplicando.
Então Maradona mudou o tom, ficou mais sereno, sorriu e cordial e atenciosamente concordou em falar com o repórter.
Os dois se sentaram na sarjeta e conversaram muito rapidamente sobre a pauta.
Saviani perguntou se ele tinha comprado o passe do meia Neto, do Corinthians, para levá-lo como jogador para o Napoli.
O jogador, que morava em Campinas, estava no auge no clube. Jogar com Maradona e Careca poderia ser muito positivo para ele. Mas Maradona negou ter comprado o passe.
O encontro terminou com um abraço, mas Saviani não deixou a oportunidade passar e pediu e recebeu um autógrafo do ídolo.
Estava alcançada a entrevista exclusiva.
Comemoramos juntos depois.
A estratégia dele dera resultado e ele provara que não se alcança objetivos sem planejamento, sobretudo em uma situação como essa de vigília que fazíamos.
A conquista da entrevista não encerrou a nossa vigília na porta do prédio do Careca.
Mas acho que abriu uma certa benevolência da parte do Maradona e do próprio Careca.
Depois dela, Maradona chegou a aparecer algumas vezes na sacada da cobertura para acenar aos jornalistas e aos fãs.
Como ninguém arredasse pé dali ainda em busca de uma entrevista, apesar de Saviani já ter conseguido falar com craque, Maradona surpreendeu a todos e desceu para falar com os jornalistas. A notícia rapidamente se espalhou e em pouco tempo vários fãs também estavam lá na entrada do prédio para pedir autógrafos.
Maradona falou com todos com a mesma simpatia que atendeu ao Saviani antes e respondeu a todas as perguntas que fizemos.
Roberta, minha amiga, também estava entre os jornalistas e foi uma das que o entrevistou.
Quando a conversa terminou, todos já se afastavam, eu resolvi me arriscar: pedi ao Maradona um autógrafo e disse que era para uma mulher e não para mim.
Ele escreveu o nome da Roberta no papel.
- Você é idiota? Por que eu ia querer um autógrafo desse cara? Perdeu seu tempo.
Ela desprezou quando contei.
- Roberta, olhe aqui: você tem um autógrafo com o seu nome, olha, eu disse.
Só aí ela olhou e viu que Maradona havia escrito: “Carinho, para Roberta”.
Os olhos da minha colega se encheram d’água e ela me abraçou para agradecer.
Eu não consegui um autógrafo por causa desse pedido que fiz ao craque, mas valeu a pena, pois a Roberta deixou de odiar “esses caras” como dizia e Maradona não quebrou a perna como ela desejou, o que foi muito bom.
Infelizmente Roberta morreu em um acidente na Espanha, em novembro de 1999, bem antes de Maradona, que encerrou a sua jornada no dia 25 de novembro de 2020.
FIQUE SABENDO
Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.
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