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Página em branco de uma memória eterna
Data de Publicação: 13 de setembro de 2020 18:25:00 DILEMA - O que fazer quando você tem uma história inusitada para contar e uma questão ética impede de qualquer coisa?
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
Em 1987, estava atrás de uma história humanizada para alavancar o jornal em que trabalhava. Conheci um morador de rua que havia vivido uma situação inusitada. Mas a história dele me impôs um dilema ético.
Começou como um arranhão de unha.
Estava de olhos fechados.
Quando percebeu que se tratava de uma faca que abria a sua pele como os pescadores abrem a barriga de peixes, saltou para trás desesperado e ofegante, tentando se livrar.
Esbarrou em outros, tentou a esquerda e defrontou-se com mais, foi à direita e nada.
Era tarde: estava cercado, percebeu quando se agachou, sem forças, ao olhar em redor e ver um rosto mal-encarado ao lado de outro, fechando um círculo em torno de si.
Estivera absorto de tudo por alguns minutos apenas, ao menos era o que achava.
Com os olhos fechados e os braços cruzados sobre o rosto para chorar, não percebera nada.
- O que vocês querem?
- O seu fígado, gritou um dos mais fortes.
Olhou para ele e ficou aterrorizado ao ver que empunhava a faca que começara a cortar a sua barriga não fazia um minuto.
O corte ainda lhe doía.
O desespero o fez tremer as pernas e estalar os olhos. Suava em bicas. O coração corria mais que ele tinha vontade de correr naquela hora para escapar daquilo tudo.
Sua mente procurava uma saída como um carro em velocidade, que fazia uma curva atrás da outra sem visualizar o destino.
Achou que fosse morrer.
Nessas horas, colocava todas as suas esperanças em São Jorge, o seu protetor.
Começou a rezar em voz baixa.
Sentiu um puxão por trás no braço esquerdo. O ataque o fez cair com todo o corpo no chão. Estatelou-se no meio de duas touceiras de capim às margens de um rio, onde fora encontrado pelo grupo. Foi o sinal para que todos avançassem sobre ele gritando:
- Vamos acabar com ele, vamos.
- É agora ou nunca.
- Cada um que pegue um pedaço.
- Eu fico com o fígado, gritou um deles mais alto que todos os outros.
Ele pôde perceber que era a mesma voz grave do fortão que já dissera antes ter esse mesmo interesse nele.
Fechou os olhos novamente para morrer.
O vozerio atônito foi reduzindo de volume. Em poucos segundos, um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente e dele.
Teve medo de reabrir os olhos.
Será que já havia morrido? Fora tão rápido assim? Não era possível. Não sentira dor alguma, nada. Nem percebia sangue.
Apertou os olhos com força, como se esta fosse uma maneira de dar um clique para passar a uma próxima fase.
Não era um jogo de videogame.
Nada aconteceu.
Tentou sentir seu corpo, saber se estava tudo ali ou se haviam mesmo lhe retirado o fígado.
Como se meditasse, foi mencionando mentalmente cada parte, tentando senti-la.
Conseguiu ter certeza de que estava inteiro.
Resolveu abrir os olhos novamente.
O lugar era o mesmo de antes.
Estava à beira de um rio, deitado no meio de duas touceiras de capim, como se houvesse sido desovado ali feito um cadáver.
Era mais ou menos o que de fato havia acontecido. Aos poucos começou a se lembrar.
Estava dormindo nos fundos da estação ferroviária desativada de Salto, quando um grupo chegou em uma kombi e o carregou para dentro sem lhe dar chances de falar ou impedir.
Não foram violentos.
A não ser pela força imposta para acondicioná-lo com os outros recolhidos.
Mas essa era necessária. Senão, não caberiam todos. Havia uns oito.
O motorista dirigiu em silêncio até aquele lugar. Não se recorda quanto tempo levou. Fora rápido. Não parara antes. Ao chegar, virou o veículo como se fosse dar ré e estacionou.
Logo depois chegaram mais dois carros.
Desceram deles os homens que o capturaram e o colocaram na kombi.
Vieram apenas para retirá-lo e aos outros. Desembarcados todos, eles foram embora.
Agora não se lembra o que aconteceu com os outros. Talvez estivessem por ali. Caminhou de um lado a outro da margem do rio. Em vão.
Todos haviam desaparecido.
Talvez aqueles homens tivessem matado a todos e agora só restava ele.
Talvez aquela imagem que o atormentara há pouco, de estar cercado e de um homem forte estar abrindo a sua barriga como se fora peixe, fosse real e eles estivessem querendo matá-lo.
Mas como escapou?
Fora São Jorge, agora ele tinha certeza. Seu protetor nunca o abandonara.
Precisava apenas encontrar o caminho de volta e retornar para a sua vida.
De repente, começou a refletir:
- Que vida?, disse em voz alta.
Ele não tinha vida mais desde que havia matado o Anderson.
Fernando Gouveia de Albuquerque Figueiredo estava entregue à própria sorte havia pelo menos uns 20 anos.
Tinha olhos verdes fundos em meio a olheiras negras, uma magreza de dar dó e a pele do rosto muito envelhecida. Não era alto. Talvez um metro e sessenta e cinco. Ou sessenta.
O que mais impressionava nele era a forma de falar: ele parecia se lembrar com nitidez de um tempo que sequer tivesse existido.
Era tão distante tudo o que dizia que não parecia que ele tivesse vivido ou que fosse realmente verdade o que falava.
E o que falava também não condizia com a sua situação atual de morador de rua.
Ele falava de uma época e de alguém que estivera bem de vida, tivera uma boa família e vivera como qualquer cidadão de bem até que tudo mudou a partir de um crime.
- Eu sou um assassino.
- Como assim?
- Eu matei o meu melhor amigo.
- E você se entregou à polícia?
- Não. Eu fugi. Eu fujo até hoje. Mas perdi tudo. Perdi minha vida por causa disso. Nem São Jorge, o meu protetor, me salvou disso.
Ele começou a chorar ao dizer a frase.
Quando se acalmou, eu o deixei no mesmo lugar onde o havia encontrado, nos fundos da estação ferroviária de Salto, e voltei para casa.
Vez por outra outros moradores de rua também se abrigavam naquele espaço.
Em meados de 1987, quando o conheci, o tal Fernando era o único que resistia ali.
A Prefeitura de Salto vinha fazendo um trabalho de retirada dos moradores de rua.
Naquela noite, depois da conversa com o morador de rua, eu não consegui dormir.
Estava disposto a fazer uma grande reportagem para o jornal O Trabalhador, onde eu trabalhava a época em Salto, contando a história daquele morador de rua, mas o que ele me dissera era impactante demais.
Se ele realmente matara alguém e estava fugindo, eu tinha de denunciá-lo e não escrever a história no jornal para ver no que dava.
Era um dilema terrível ter uma grande história nas mãos e ao mesmo tempo ter um dever ético do qual não podia fugir.
Mas, se eu o denunciasse e ele fosse preso, não falaria mais nada para mim e a grande reportagem se resumiria em contar que a polícia prendera um assassino que se disfarçava de morador de rua na cidade.
Era isto que não me deixava dormir.
A ideia de fazer uma reportagem mais humanizada como aquela era uma maneira de alavancar o jornal também.
Eu assumi a direção de O Trabalhador dois anos antes e tinha como missão fazer com que o número de exemplares vendidos fosse igual ou maior que o do seu principal concorrente, O Taperá, que tinha quase 3 mil exemplares.
Nós estávamos crescendo, mas faltava ainda muito para chegar ao concorrente.
As pesquisas que eu havia feito davam conta de que histórias humanizadas atraíam leitores.
Olhava para o relógio e as horas se arrastavam como se fossem um peso amarrado aos meus pés, que eu tinha de carregar até chegar ao paraíso do descanso absoluto.
Mas uma porta de ferro intransponível me impedia de chegar a esse lugar.
Quando vivo a insônia, me levanto e vou escrever. Não consigo ficar rolando na cama em busca do sono perdido. Acho que o tempo tem de ser utilizado de forma útil sempre.
Antes mesmo de ter a história completa, fui escrevendo sobre a vida do tal Fernando.
Amanheci escrevendo.
Quando as luzes do dia já entravam pela janela, eu bocejava de sono.
Estava tudo pronto.
Ao menos até onde ele havia me contado.
Fernando Gouveia de Albuquerque Figueiredo havia sido um advogado em São José do Rio Preto, mas não fizera carreira lá.
Formou-se em São Paulo e passou a trabalhar na capital logo depois. Conheceu Rebeca na inauguração do Morumbi Shopping em 1982. Ela era uma loira de corpo escultural que trabalhava como modelo na festa.
Apaixonaram-se perdidamente.
Casaram-se oito meses depois.
Ela ficara grávida de uma menina.
Tudo estava acontecendo da forma mais maravilhosa que podia ser.
Viajavam muito ao exterior.
Fernando me contou que estiveram na Grécia, na Holanda, na Itália, na Espanha.
Era apaixonado por Milão.
Ele disse que ficou encantado com o Panzerotto do Luini, um mini calzone, em formato de meia lua, feito com massa igual à da pizza, com diversas opções de recheio.
Podia ser servido frito ou assado.
- Eu prefiro o frito, disse.
O Panzerotto é uma comida rápida que gera longas filas tradicionalmente no lugar.
Veio da Apúlia, uma região do sul da Itália, conhecida pelas cidades serranas com casas caiadas. O lugar também é conhecido pelos campos agrícolas centenários e pelas centenas de quilômetros de costa mediterrânea.
A capital é Bari, cidade portuária e universitária que ficou famosa pela animação.
A proprietária Giuseppina Luini foi buscar a iguaria e a atração marcou época.
O lugar é histórico, foi aberto como padaria em 1949 e hoje é um restaurante, parada obrigatória de muitos milaneses e turistas.
Em uma dessas viagens, ele conheceu Anderson, um marinheiro que trabalhava na zona portuária da Itália. Tornaram-se amigos. Havia uma empatia entre eles que não se entendia de onde vinha ou porque existia.
Alguns meses depois, Anderson mudou-se para o Brasil com a ajuda de Fernando.
Foi morar na mesma rua que ele e Rebeca.
Fernando o levou para trabalhar no seu escritório de advocacia. Jogavam tênis juntos. Viviam sempre juntos. A amizade entre eles crescia de uma forma rápida e assustadora.
Até que um dia Anderson chegou para Fernando e disse que precisavam conversar.
- Sobre o quê?, quis saber antes que Anderson pudesse começar a falar.
Os dois foram a um café e se sentaram.
- Você se lembra de quando nos conhecemos na Itália, no porto?, disse Anderson.
- Sim, é claro que sim. O que tem esse dia?
- Quando o vi pela primeira vez, eu tive certeza de que o conhecia havia muito tempo.
- Mas não nos conhecíamos, não é? Eu também tive essa impressão. Depois descobri que não nos conhecíamos. Nunca nos vimos.
- É verdade e isto me intrigou muito.
- Como assim?
- Como poderia ter essa sensação de que o conhecia, sensação não, essa quase certeza, e nunca termos nos encontrado antes?
- Sei lá. Talvez seja o destino. Talvez seja São Jorge, o meu protetor, que quis. A gente tinha de se encontrar para sermos amigos.
- Você tem razão.
- Claro que tenho. Você é um grande amigo que eu fiz. Já me ajudou muito aqui no escritório. Estava escrito Anderson.
- Só que eu não estou bem com isso.
- Como assim? Não quer ser meu amigo? Está desconfortável com nossa amizade?
- Fernando, eu preciso que você entenda.
- Entender o quê? Está estranho. Aconteceu alguma coisa com você?
Fernando levantou-se para ir ao socorro do amigo, que também se levantou.
Eles seguraram as mãos um do outro.
- Eu preciso que você entenda, disse Anderson novamente.
- Entenda o que, meu Deus?
- Eu te amo.
- O quê?
- É isso: eu te amo.
- Pare de brincadeira Anderson.
- Não estou brincando. Desde que o conheci na Itália, eu me senti atraído por você. Achava que não era isso. Tentei afastar esses pensamentos, mas eles me perseguem.
- Por favor, pare de brincadeira. Isso não se faz com um amigo. Eu sou seu amigo.
- Eu não estou brincando.
- Está brincando sim, caralho. Pare com isso agora. Não quero que fale mais isso, entendeu?
- Fernando, entenda.
- Não tem nada para entender.
Anderson tentou detê-lo antes que ele se retirasse do café, mas Fernando se desvencilhou com energia e saiu.
Anderson se sentou novamente e começou a chorar com as mãos segurando a cabeça.
No novo encontro que tive com o morador de rua nos fundos da estação, ele me disse que aquela revelação foi a desgraça de tudo.
- Minha vida acabou.
- Mas não entendo por que se tornou um problema dessa ordem. Bastava que dissesse que não tinha os mesmos sentimentos. Explicando, o outro entende, não?
E ele disse:
- Não, ele não entendeu.
Depois dessa revelação, a amizade entre eles não foi mais a mesma, segundo Fernando.
Rapidamente se afastaram.
Embora Anderson continuasse trabalhando no escritório de Fernando, eles pouco se falavam ou se encontravam.
Fernando passou a evitar contato.
A situação se tornou mais incômoda ainda para Anderson, que já tinha tido muita dificuldade para fazer a revelação.
Como também se aproximara de Rebeca e da filha deles, Aninha, ele procurou pela mulher de Fernando para que ela interviesse de modo que pudessem resgatar a amizade anterior.
Rebeca não sabia da revelação e passou a fazer pressão para que Fernando relevasse o desentendimento que tiveram.
Mas Fernando não concordava.
Anderson tentou forçar um encontro algumas vezes sem sucesso.
Em uma das vezes se atirou na frente do carro do ex-amigo para forçá-lo a parar.
Para sua surpresa, Fernando não parou.
Ele só não foi atropelado, porque saltou para o lado no último minuto.
Sem chances de recuperar a amizade e sem poder viver o que havia declarado, Anderson resolveu tomar uma atitude mais drástica na sexta-feira da mesma semana em que quase foi atropelado na saída do escritório.
Quando Fernando chegou em casa na noite daquele dia não encontrou Rebeca e Aninha.
Ele ficou desesperado.
- São Jorge, meu guerreiro, me ajude a encontrar minha mulher e minha filha.
Ligou para a mulher tentando localizá-la e nada. Pouco mais de meia hora depois, Anderson ligou e disse que estava com as duas.
- Se você não quer mais sequer a minha amizade, não terá mais nada.
- Anderson, não faça nada contra elas.
- Não se preocupe.
- Anderson, vamos conversar.
- Agora você quer conversar? Agora será do meu jeito. Ouça o que vou dizer.
- Se você fizer algo contra minha mulher e minha filha, eu te mato.
- Então venha me matar: estou te esperando no meu apartamento. A porta vai estar aberta, mas se trouxer a polícia ou avisar alguém, elas morrem. Você entendeu? Elas morrem.
- Eu vou. Não faça nada contra elas. Vamos conversar. Tenho certeza de que resolveremos.
Quando chegou ao apartamento encontrou Anderson sentado no sofá com uma arma na mão apontada para ele.
- Vamos conversar?
- Não, eu quero que você me prometa que não vai me rejeitar mais. Vamos ter uma noite de amor agora. Só uma e eu vou embora.
- Eu não posso fazer isso.
- Então, eu vou me matar e você será culpado e não terá sua mulher e filha mais.
Fernando continuou conversando, tentando acalmá-lo, até chegar bem próximo dele e se atirou sobre o ex-amigo para tentar desarmá-lo. Os dois rolaram no chão.
A arma disparou e Anderson morreu na hora.
Fernando me disse que fugiu.
- Estava desesperado com aquela situação. Pensei em sair dali e depois voltar quando o flagrante tivesse passado. Mas a polícia começou a me procurar. Eu estava confuso.
- Você era advogado, por que fugir? Poderia explicar e se defender. E o que aconteceu?
- Eu não sei.
- Como não sabe?
- Eu não sei, ele disse novamente e saiu correndo. Fiquei sem saber o que tinha acontecido para levá-lo para aquela situação. Esperava ter todas as informações para decidir o que faria. Estava inclinado a denunciá-lo.
Quando voltei aos fundos da estação no dia seguinte para tentar obter o resto da história, não havia mais ninguém lá.
Perguntei se a Prefeitura havia retirado o morador de rua de lá e fiquei sabendo que sim. Fernando, se é que esse era o nome dele, fora internado em uma clínica para doentes mentais. Ele estava com demência.
FIQUE SABENDO
Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.
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