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Olhares
Data de Publicação: 26 de novembro de 2020 19:02:00 APARÊNCIAS - Quando dois olhares se cruzam tudo pode significar tudo, mas também pode não significar nada do que se pensava.
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
Ele estava recluso desde o início da pandemia para se preservar da doença, mas acabou passando mal e teve de procurar o médico. Lá, conheceu uma mulher que o conquistou. Será que era um conto de fadas?
Chegou ao pronto socorro como se fosse um astronauta explorando uma estação em Marte.
Desde o início da pandemia não havia saído de casa para nada. O isolamento social fora cumprido à risca. Até com certa insistência doentia. Tinha medo de morrer. Um pavor, na verdade.
Quando lhe falavam para não ser tão rigoroso, ficava bravo.
Vira um entregador morrer na casa da frente.
- Não respeita, por isso acontece, disse.
Parentes que não respeitavam o rigor do isolamento nem mesmo as medidas de proteção, como higienização das mãos e uso de máscaras, diziam que ele ia morrer de susto.
Secretamente, ficava torcendo para que tivessem a doença, nem que fosse no modo mais brando, a fim de pararem de gozar a sua cara. Depois se arrependia. Achava que Deus o castigaria se pensasse daquela forma. Pedia perdão, fazia autocrítica.
Tudo dentro da cabeça apenas.
Estava o tempo todo pensando no que ia acontecer e no que não queria que acontecesse. A pandemia o estressara de uma tal maneira que ele não via mais como viver normalmente.
- O mundo acabou Gervásio. Nunca mais seremos os mesmos. Nunca mais vamos viver o que já vivemos.
Dizia para o amigo dos tempos do colégio.
Tudo por whatsapp.
Não fazia questão nenhuma de ter contato com ninguém.
O amigo retrucava:
- Existe a possibilidade de voltar ao normal. É só passar essa fase. Vai passar, tenho certeza de que vai.
- Não sei. Não vejo isso. Não existe como.
O tema das conversas era sempre esse.
Para Gervásio, que fora casado e vivia só hoje por opção, o mundo se transformara, mas ele conhecera a felicidade.
Já o amigo não.
Nunca fora casado, não tivera filhos, não fora além de um funcionário público, que se aposentara fazendo a mesma coisa por anos a fio. Não tinha família, morava só sem opção.
Tanto que acordou passando mal e não tinha a quem recorrer.
Mandou mensagem para o amigo.
- Deve ser covid.
- Pare, não é. Não tive contato com ninguém. Não pode ser.
- Mas e os entregadores?
- Só com eles, mas sempre me protegi.
- Sei lá. Precisa ver. Vá ao médico.
Não foi.
Pesquisou e soube que havia uma médica que tirava dúvidas por telefone. Poderia esclarecer se era covid. Não iria se arriscar.
Ligou.
A médica avaliou que deveria fazer o teste por via das dúvidas.
Teve de fazer o teste.
Saiu preocupado, protegido, com medo, mas fez.
De volta para casa, passou a ter febre.
- Não é possível. Não tinha nada. Agora isso.
A revolta de nada adiantou.
Deitou-se e tentou dormir.
Acordou ardendo em febre. Tomou remédios. Atravessou a madrugada com dores, com frio, com medo.
No dia seguinte, resolveu:
- Vou ao médico. Não posso morrer. Não pode ser assim.
Era com essa meta que se protegeu cobrindo todo o corpo, usando máscara e face shield e portando álcool em gel nas mãos.
Tirou a senha e se sentou para esperar.
Foi quando ela entrou.
Uma loira alta, magra e muito bonita, ao menos no que dava para ver fora da máscara. Estava muito nervosa. Também não queria estar ali pelo jeito. Devia ter medo como ele.
Trocaram olhares.
Ele entendeu tudo. Ela estava sozinha. Era uma chance.
Olhou com mais interesse.
Se demonstrasse que estava encantado, talvez ela desse um retorno positivo. Talvez ele resolvesse o que Gervásio vivia cobrando dele. Talvez ele vivesse um romance.
Ela olhou e sorriu.
Ele olhou e se insinuou novamente.
Estava com dores e com febre, mas a visão daquela mulher bonita o fazia sonhar um pouco e esquecer da realidade.
Com a senha na mão, ela se sentou uma cadeira de distância dele. Era o protocolo. Não se podia se sentar do lado.
Ela também se sentia com dores, com febre, mas estava curiosa com ele e queria saber mais de alguma forma.
Ele não perdeu tempo e começou a conversar:
- Você é daqui mesmo?
- Sim, moro aqui desde criança.
Os dois conversaram por algum tempo trocando experiências. Ela tentava segurar o mal-estar. Em vários momentos, teve ânsia.
Mas ele não percebeu.
Não parava de falar.
Não parava de elogiá-la.
Pediu para que ela tirasse a máscara um pouquinho para ver melhor o seu rosto e saber se a conhecia de fato como achava.
Ela tirou.
Ele olhou e ficou embevecido.
- Você é linda.
Ao ouvir, ela ficou encantada, mas não conseguiu segurar a ânsia desta vez e vomitou sem parar no colo dele.
O riso e o encantamento desapareceram na hora.
Ele olhou para ela e se sentiu contaminado.
Ela olhou para ele e se sentiu perdida.
- Desculpe.
Ele desmaiou.
Quando acordou, estava no quarto do hospital.
Havia pegado covid.
Sentiu-se péssimo. Ficou tanto tempo isolado. Protegeu-se tanto. Agora estava infectado por nada.
A culpa era do Gervásio. Ele falara tanto que ele devia se interessar por alguém. Ele concordava, mas precisava ser alguém com covid? Precisava ser alguém que vomitasse nele?
- Bom, ao menos não morrera com o susto.
Olhou para o nada tentando encontrar uma explicação divina.
Percorreu o ambiente do quarto com os olhos.
Até que viu do outro lado que a loira estava lá com ele.
Ela olhou para ele e sorriu sem graça.
O coração foi a 180 do nada.
Ele não teve tempo de pensar em mais nada.
FIQUE SABENDO
Todas as terças e quintas tem uma crônica nova neste espaço.
Em breve lançarei um livro com este texto e outros que estou preparando para contar cenas do cotidiano que vivi ou fiquei sabendo desse período de pandemia por causa do novo coronavírus.
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