O segredo da morte

1 de novembro de 2020

O segredo da morte

Data de Publicação: 1 de novembro de 2020 18:21:00 RISCO PROFISSIONAL - A curiosidade é parte inerente da profissão, mas ela também é o nosso algoz muitas vezes.

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SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO

Minha curiosidade jornalística me meteu em uma grande enrascada em Campinas. Para escapar do medo e da pressão criados, tive de desvendar os mistérios de um acidente que nunca seria investigado.

 

 

Os olhos verdes vidrados, como se enxergasse o paraíso, mas o corpo envolto em sangue, como se mergulhasse no inferno.

A expressão que vi nos olhos daquele cadáver, ao volante, me deram a impressão de não estar mais entre os vivos por um breve instante de apenas alguns segundos.

Era como se a morte resolvesse me desvendar um segredo inimaginável.

E foi assim que enfiei a cabeça dentro do carro para saber de todos os detalhes.

 

Em fevereiro de 1988 eu fui trabalhar em Sorocaba pela primeira vez. Entrava para o time de jornalistas do Cruzeiro do Sul, a minha primeira experiência em jornal diário.

Após uma negociação demorada com o editor-chefe Cláudio de Oliveira consegui começar com o segundo maior salário pago.

O jornal possuía três faixas.

Cláudio me disse que não poderia me pagar o maior salário, embora minhas qualificações pudessem justificar, pelo simples fato de eu não morar na cidade como todos os demais.

Achei absurdo, afinal não era a presença em Sorocaba que me daria mais condições de ser melhor ou pior profissional, mas para ele e a diretoria essa era uma condição necessária.

- Mude para cá e eu te pago o maior salário.

- Está certo: vou começar a providenciar a mudança e vou te cobrar disso.

Eu tinha me casado no final de 1986 e havia planejado ter um filho em 1988. Precisava de um bom salário para garantir a mesma vida que vinha tendo até então como diretor e editor-chefe de “O Trabalhador”, um bissemanário onde estreei como jornalista e onde fui trabalhar antes mesmo de estudar, em 1979.

Nem mesmo o maior salário pago pelo Cruzeiro à época seria suficiente, eu veria depois de me mudar para Sorocaba em maio, apenas três meses depois de entrar para o jornal, como havia me comprometido.

Aluguei a casa que eu tinha em Salto e com o dinheiro que obtive só consegui um apartamento alugado no Jardim Guadalajara, do outro lado da cidade em relação à redação do Cruzeiro, que ficava no Alto da Boa Vista.

Para sobrar um pouco de dinheiro, escolhi um apartamento pequeno. Mas ele era tão pequeno que eu tomava banho sem poder abrir os braços para as laterais. Pelo meu tamanho e pela estreiteza do banheiro, eu também não conseguia usar o vaso sanitário se não me sentasse de lado nele, pois não cabia no espaço.

Eu tinha um Fusca 86, mas rapidamente tive de encostá-lo na garagem e passar a usar o ônibus. Eram dois para ir e dois para voltar ao trabalho. Eu entrava às 17h e deveria sair às 21h, já que o contrato era de cinco horas, mas acabava fazendo horas extras até meia-noite.

A gravidez da minha primeira filha, que nasceu em outubro daquele ano, já estava em curso e eu não podia continuar com aquele rendimento apenas. Comecei então a procurar emprego para o período da manhã e início da tarde e arranjei no Sindicato dos Rodoviários.

Mas, por fazer reportagens na Prefeitura para o Cruzeiro, houve um conflito em trabalhar no sindicato, que fazia paralisações do transporte municipal e negociava com a Prefeitura. Eu acabava ficando com informações privilegiadas de ambos os lados. Decidi sair do sindicato e procurar outra coisa.

Um amigo me disse que havia uma vaga no Correio Popular, em Campinas.

Eu o indaguei: Como vou trabalhar em duas cidades distantes 80 km? E ele me respondeu: O salário é bom. Você é jovem (tinha 26 anos). Vai conseguir. E eles estão precisando muito.

A vaga era para atuar na ronda policial e estar à disposição para o que ocorresse pela manhã. A redação lá funcionava só a partir das 14h, como era no Cruzeiro. Eu seria o responsável por preencher o vácuo da manhã: de 9h às 14h.

Topei e passei a levantar às 6h, tomar um ônibus até a rodoviária de Sorocaba, outro até Campinas, mais um até a redação do Correio na Via Norte-Sul, outro de volta à rodoviária de Campinas e o último até a ponte da Avenida Carlos Reinaldo Mendes, em Sorocaba.

Da Rodovia José Ermírio de Moraes, a Castelinho, até a redação do Cruzeiro, eu caminhava um quilômetro sob sol ou chuva. O ônibus de Campinas chegava por volta de 16h30 e eu chegava à redação antes do meu horário. Depois uma van me levava embora para casa à meia-noite, quando saía.

Era uma jornada difícil. Não me sobrava tempo para nada. Não conversava. Não vivia.

 

Cheguei cedo à redação do Correio em uma sexta-feira de junho. Fazia frio. Fui tomar um café quente para me aquecer um pouco.

Quando voltava com a xícara de café na mão, o telefone tocou. Era uma leitora que queria informar sobre um acidente.

- Acabou de acontecer uma batida no cruzamento da Avenida Hermas Braga e Rua Artur Freitas Leitão, aqui na Nova Campinas. Venham logo porque o trânsito está parado.

Peguei minhas coisas e fui para lá.

Ao chegar, vi uma cena com a qual me assustei e que me impactou: um casal havia morrido com o choque de dois carros. Os corpos ainda estavam dentro do veículo. No outro carro envolvido, o homem não estava bem, mas sobrevivera. Mesmo assim, ele ficara preso nas ferragens e só sairia mais tarde com a ajuda dos bombeiros, que cortaram a lataria.

Mas o que mexeu comigo foi o casal morto.

Eu já havia visto vários acidentes no meu trabalho como repórter, mas aquele caso era diferente. Como eu chegara rápido ao local e a polícia e os bombeiros ainda não haviam chegado, pude estar bem perto dos mortos. Olhar cada detalhe. Parece mórbido isso, mas não é. Eu queria obter o máximo de informações para poder fazer um trabalho que me fizesse ganhar mais. Eu precisava disso.

Aí me deparei com os olhos do morto.

Os olhos verdes vidrados, como se enxergasse o paraíso, mas o corpo envolto em sangue, como se mergulhasse no inferno.

A expressão que vi nos olhos daquele cadáver, ao volante, me deram a impressão de não estar mais entre os vivos por um breve instante de apenas alguns segundos.

Era como se a morte resolvesse me desvendar um segredo inimaginável.

E foi assim que enfiei a cabeça dentro do carro para saber de todos os detalhes.

O homem usava um cordão com uma foto dentro de um coração que se fechava para proteger a imagem. Suponho que ele estava com o cordão no pescoço, mas deve ter se arrebentado. Eu o vi no colo do morto. Apanhei o cordão para ver melhor e havia uma foto do casal morto com uma mulher loira sorrindo.

- Ei, você. O que está fazendo?, a frase me assustou e instintivamente fechei a mão com o cordão e o coração dentro.

Olhei para trás antes de responder.

Era um policial, o primeiro que chegara.

- Você mexeu no carro? Não pode tocar em nada. Afaste-se, vamos. Afaste-se.

Tentei explicar e pensei em falar do cordão, mas achei que seria pior se mostrasse que havia tocado no carro ou em alguma coisa dos mortos àquela altura dos acontecimentos.

Mantive a mão fechada e comecei a me afastar. Outros policiais já estavam sinalizando o local para evitar os curiosos. 

O cruzamento foi cercado com uma fita amarela zebrada que mantinha as pessoas longe dos veículos acidentados.

Os bombeiros haviam chegado e começavam a cortar a lataria do outro carro.

Ao caminhar para me afastar, vi que o porta-luvas do carro do casal havia sido aberto para a retirada de pertences e a identidade do homem morto tinha caído perto do carro.

Alguém deveria ter mexido lá antes de mim.

Apanhei o documento no chão e anotei o nome no meu bloquinho: José Victorino Santos de Albuquerque. Natural de Curitiba (PR).

Depois o entreguei ao policial.

Contei onde o encontrara.

O policial me olhou com cara de reprovação.

Depois fiquei sabendo que o homem era um engenheiro. A mulher era Soraia Santos de Albuquerque, microempresária.

O acidente fora muito violento.

O engenheiro e a mulher foram esmagados pelo motor, que retraiu com a batida.

Mais tarde fiquei sabendo que o casal deixara uma única filha de 20 anos.

 

- Alô, é o jornalista Eloy?

- Sim, sou eu.

- Aqui é Marcela. Eu sou filha do casal que morreu em um acidente na Nova Campinas esta manhã. Foi você que estava lá pelo Correio, não é?, ela chora enquanto fala.

- Sim, foi eu sim. Meus sentimentos.

- Obrigada. Eu nem sei o que vai ser da minha vida. Estou completamente perdida. Eu posso ir até aí para conversar com você? Preciso de algumas informações do acidente.

- Você já procurou a polícia?

- Sim, é por isso que preciso falar com você.

- Está bem. Se você vier agora, poderemos falar sim. São 12h40. Acho que dá tempo. É que eu saio às 14h e não posso esperar porque trabalho em outro lugar depois daqui.

- Eu vou sim.

Pouco depois uma loira, alta, muito bonita, de cabelos compridos até o meio das costas, entrou pela redação à minha procura.

Ainda não havia muita gente, mas eu preferi levá-la à sala de reuniões para conversarmos.

- Meus sentimentos novamente.

- Obrigada. O que me traz aqui é o seguinte: os policiais me disseram que o viram mexendo no carro dos meus pais quando eles chegaram.

Com receio do que a tivesse trazido até ali, neguei que tivesse mexido em alguma coisa.

Marcela começou a chorar novamente.

Disse que havia uma coisa que seu pai carregava e que era muito importante para ela.

- Ah é? Do que você está falando?

- De um cordão com um coração, onde estava uma foto minha. Ele não se desgrudava dele. Mas o cordão desapareceu no acidente.

Pensei em dizer que estava comigo, mas achei que aquilo pudesse me complicar.

Preferi continuar negando até encontrar o momento certo para entregar a lembrança.

Aparentemente essa atitude pode parecer cruel, afinal a mulher havia acabado de perder os pais e queria uma lembrança deles apenas, mas fiquei pensando: por que ela viria buscar um cordão com uma foto antes mesmo de enterrar os pais e que importância tão grande poderia ter uma foto em um coração?

Foi quando Marcela me disse que também havia desaparecido dinheiro que estava no porta-luvas do carro: o equivalente hoje a R$ 10 mil. O dinheiro havia sido sacado momentos antes pelo pai dela. Haviam levado tudo.

Suei frio com a informação.

Até então estávamos falando de um cordão com uma foto em um coração. Não de tanto dinheiro e eu não tinha nada a ver com aquilo.

O meu silêncio sobre o cordão fora providencial e agora era imprescindível.

Marcela se despediu.

Disse que os corpos só seriam liberados no início da noite após a Polícia Técnica fazer as análises de praxe em acidentes.

Ela ainda teria de se preparar.

Avisar parentes, cuidar do velório, do enterro e ela não sabia por onde começar.

Toquei suas mãos em solidariedade e disse que ela se acalmasse, porque a vida era assim mesmo. Em um dia estamos aqui e somos tudo para alguém, mas amanhã podemos não estar e o desaparecimento será inevitável a todos nós um dia em algum lugar e de algum modo.

- Pense nos momentos felizes que teve com seus pais. É isso que fica agora que eles partiram. Você tem uma vida inteira pela frente ainda. Não se deixe enfraquecer.

- Obrigada, obrigada mesmo. Suas palavras me confortam. Você é tão jovem, mas é tão maduro ao mesmo tempo.

- A vida nos ensina todos os dias.

- É verdade. Mais uma vez obrigada e desculpe vir fazer essas perguntas. A polícia disse que viu você quando chegou. Mas eu confio no que disse. Vou insistir com a polícia para que procure mais por essas coisas.

- Sim, é esse o caminho.

Ela se foi e eu também tomei o caminho da rodoviária. Ainda tinha toda uma jornada pela frente no Cruzeiro antes de poder descansar.

Fui embora pensando muito em tudo o que acontecera naquele dia.

A vida de jornalista é sempre uma surpresa. Não sabemos o que vamos encontrar, mas saímos com uma história invariavelmente. E nossa história se mistura às outras.

Levei comigo o cordão com a foto no coração.

 

No dia seguinte, resolvi investigar se alguém viu ou sabia de alguma coisa sobre o dinheiro desaparecido que Marcela mencionara.

Estive no local do acidente e procurei por estabelecimentos comerciais próximos.

Encontrei um salão de beleza a uma quadra do cruzamento e me apresentei como jornalista do Correio Popular. Perguntei se tinham visto o acidente do dia anterior e se podiam me ajudar com informações que não estavam no boletim de ocorrência registrado pela polícia.

A proprietária Marisa Silva de Oliveira olhou ressabiada para as outras duas mulheres que a ajudavam no salão sem parecer entender.

- O que deseja saber exatamente?

- Vocês viram o acidente ou só notaram depois que as pessoas começaram a se aglomerar curiosas para saber o que ocorrera?

- Vemos acidentes sempre aqui. A falta de sinalização é uma das razões. A Prefeitura precisa melhorar isso. Senão mais gente vai morrer aqui como aquele casal.

- Mas vocês viram a batida?

- Sim.

- E como foi?

- Bem, o casal vinha na sua mão de direção. O outro carro entrou na preferencial. Eles não tiveram tempo de evitar o choque. O problema é que os dois estavam correndo. O casal se saiu pior porque o motor ensacou.

- E depois do acidente, o que aconteceu?

- Como assim?

- Vocês viram se alguém chegou perto dos veículos, se mexeu em alguma coisa, principalmente no carro do casal?

- Além de você?

Levei um susto quando Marisa me citou de pronto. Aquilo era perigoso. Se a polícia fizesse o que eu estava fazendo, ela poderia me incriminar. Com a declaração de Marcela sobre o desaparecimento do dinheiro, estaria frito.

Eu não queria enfrentar esse problema, afinal precisava do emprego e do dinheiro que ganhava. Minha filha nasceria em breve. Eu não poderia ser acusado de nada, sobretudo porque não tinha culpa do desaparecimento do dinheiro. Aquele cordão já estava também me deixando nervoso e preocupado.

- Como assim?, perguntei.

- Desculpe, é que vi você perto do veículo do casal. Não o estou acusando de pegar nada não. Mas só vi você perto. Mais ninguém.

- Nem logo depois do acidente?

- Não, não me lembro não. Sumiu alguma coisa do carro, por isso está perguntando?

- Não, eu creio que não.

- Mas é sempre bom dar uma checada. Eu cheguei assim que soube do acidente. Cheguei perto do carro do casal para olhar os cadáveres mais de perto. Foi um acidente violento.

- É verdade, é verdade.

- De qualquer forma, obrigado pelas informações e pela ajuda que me deram.

Deixei o salão mais preocupado de quando cheguei, mas ainda continuei por ali.

A preferência do cruzamento era de quem trafega pela Avenida Hermas Braga, mas a sinalização da Rua Artur Freitas Leitão era confusa e deficiente também.

A indicação de pare pintada na pista estava apagada quase que por completo e também não dava para ver com exatidão as linhas duplas amarelas de proibição de ultrapassagem.

Encontrei uma senhora sentada no portão de uma das casas bem próximas ao local do acidente. Idosa e com dificuldade para andar, ela parecia atenta a tudo o que acontecia na rua. Eu não tinha notado a presença dela antes, mas ela há muito me vigiava com os olhos.

- A senhora mora aqui?, perguntei.

- Sim, moro nesta casa há 28 anos.

- Que bom. Sou jornalista do Correio Popular e estou fazendo uma reportagem sobre o acidente de ontem. A senhora viu?

- Vi sim. Vive acontecendo acidentes aqui. A gente já reclamou para a Prefeitura, mas eles não fazem nada. Nunca fazem.

- Como foi o acidente. A senhora pode descrevê-lo para mim?

- O carro do casal que morreu vinha na Avenida Hermas Braga e o outro carro invadiu a pista. Não teve como frear. O motor do carro do casal veio para cima deles.

- E depois do acidente, o que aconteceu?

- Nada. As pessoas ficaram olhando de longe.

- E ninguém mexeu nos carros?

- Só o filho da Marisa e o senhor.

- O filho da mulher do salão? Eu não mexi no carro. Cheguei perto só para olhar os mortos. Foi um acidente muito violento.

- Foi sim, mas eu vi o senhor por a mão dentro do carro. Daqui não deu para ver direito. O senhor colocou a mão do lado do motorista.

Meu Deus, pensei. Minha situação se complicava. Essa mulher era mais enfática.

- Foi impressão da senhora. Não coloquei a mão dentro do carro. Só olhei. A senhora viu se o filho da dona Marisa colocou a mão dentro do carro do casal? A senhora viu isso?

- Sim. Ele abriu o porta-luvas. Esse eu vi bem por que estava do meu lado.

- E o que ele pegou?

- Não sei. Se pegou alguma coisa, escondeu. Não deu para ver quando saiu.

- Está certo. Obrigado por sua ajuda. Como se chama o filho da dona Marisa?

- É Gabriel.

- Engraçado, eu estive lá e fiz as mesmas perguntas a ela, mas não mencionou o filho.

- Esse menino é uma dor de cabeça para ela.

- É mesmo?

- Sim, drogas, sabe?

- Sei, sei sim. Está certo então dona...?

- Amália.

- Obrigado dona Amália.

 

Ao chegar à redação de volta da incursão que fiz ao local do acidente, recebi uma ligação.

- Tudo bem com você?

- Sim, tudo sim. Quem é?

- Marcela. Estive aí ontem. Sou filha do casal que morreu no acidente. Posso falar com você novamente? É muito importante.

- Olha, estou na mesma situação de ontem. Todos os dias eu saio às 14h. Se puder vir já.

- Vou sim, me aguarde.

Não eram 13h e a loira alta, muito bonita, de cabelos compridos até o meio das costas, entrava novamente pela redação.

Conversamos na mesma sala de reuniões.

- Desculpe procurá-lo novamente.

- Não se preocupe. Estou aqui para ajudar. O que aconteceu mais? Em que posso ser útil?

Estive lá no local do acidente antes de ir para o velório ontem. A liberação dos corpos atrasou. Fui perguntar se alguém viu alguma coisa, como fiz com você perto do almoço.

Aquela revelação me esfriou o estômago.

- E conseguiu o que?

- Conheci uma mulher chamada Marisa. Ela tem um salão de beleza a uma quadra do local do acidente e ela me disse que viu só você perto do carro dos meus pais. Desculpe, mas você não tem nada para me dizer mesmo?

- Marcela, eu já expliquei que estive próximo sim do carro dos seus pais, mas para olhar de perto o que tinha acontecido. Não mexi em nada. Gostaria muito de ajudá-la. Só não tenho como fazer isto. Desculpe.

- É claro, é claro. Eu é que peço desculpas. Você é sempre muito gentil. Vou continuar as minhas buscas pelo dinheiro e pelo cordão.

Ela foi embora e novamente eu também fui para a sequência da minha jornada.

Mas antes liguei para o delegado que investigava o caso e disse que ficara sabendo que o engenheiro José Victorino Santos de Albuquerque teria sacado uma grande quantia do banco e carregava esse dinheiro na hora do acidente. Se ele sabia alguma coisa disso.

O delegado me disse que não, mas que investigaria, afinal não soube de nenhum dinheiro encontrado no carro e tampouco houve qualquer registro da família sobre o desaparecimento de qualquer quantia.

 

Quando desci do ônibus na rodoviária de Campinas no dia seguinte e me encaminhava para tomar o ônibus do transporte coletivo da cidade a fim de me dirigir ao Correio, senti uma mão leve tocar o meu ombro direito.

Voltei-me para trás e me deparei com Marcela em uma calça fuseau negra. Esse modelo de roupa ficava colado ao corpo.

- Tudo bem com você?, ela me perguntou.

- Eu estou bem sim e você? O que faz aqui? Não sabia que usava ônibus.

- Não uso.

- Mas então...

- Vim te buscar.

- Como assim?

- Você não vai para o jornal agora?

- Sim, mas como sabia e por que me buscar?

- Pesquisei sobre você. Quero te dar uma carona para conversarmos. Preciso te falar uma coisa. Você vem comigo? É importante.

Achei estranha aquela abordagem. Apesar de ser uma mulher muito bonita, que chamava a atenção de todos ali na rodoviária. Aliás, em qualquer lugar aonde ela fosse. Eu estava com medo do que Marcela pretendia.

- Olha, Marcela. Eu não posso me atrasar. Como disse a você, eu...

- Já sei. Você trabalha aqui e no jornal Cruzeiro do Sul em Sorocaba. Seu horário é contadinho. Não pode se atrasar para não perder nenhum desses empregos. Afinal, precisa desse salário, já que tem uma filha que vai nascer em breve, a sua primeira filha.

Fiquei gelado com tudo que ela me disse.

- Como sabe de tudo isso?

- Acredite, eu sei de tudo.

- Você está me assustando.

Marcela gargalhou sem parar por vários segundos com a minha frase.

- Essa frase é a que eu diria ou que qualquer mulher diria, não um homem grande e forte como você, ela disse ainda gargalhando para se explicar sobre o porquê de rir tanto.

Ri também, mas apreensivo.

- Pode ser, mas estou falando a verdade.

- Eu sei, eu sei. Vamos?

Não tive como recusar.

No caminho, ela me disse várias coisas sobre a sua vida e entre outras coisas que deixaria o país tão logo encontrasse aquele cordão e o dinheiro e que tinha ficado muito impressionada comigo, pelo meu jeito.

- Você é um homem muito interessante.

- Obrigado, mas você disse que tinha uma coisa para me falar?, tentei mudar de assunto.

Tudo aquilo era muito esquisito.

Ela devia estar se aproximando de mim por achar que eu tivesse pegado o dinheiro do carro dos pais e o cordão da foto no coração.

De fato, o cordão estava comigo, mas o dinheiro não e tudo me levava a crer que o tal Gabriel havia apanhado a quantia, mas não tinha como provar nem como dizer a ela.

E não podia barrá-la para não a irritar, o que poderia levá-la a procurar a polícia e piorar toda a minha situação no final das contas.

O que tinha de fazer era me livrar daquele cordão o quanto antes. Não poderia jogá-lo fora, afinal era uma lembrança importante para ela, e também não poderia entregá-lo a ela. Que situação difícil e angustiante eu vivi.

 

Quando ia deixar a redação, o delegado me ligou para dar um retorno do meu pedido.

A revelação que ele fez me deixou mais preocupado ainda com Marcela.

O delegado me disse que o pai dela não havia feito retirada alguma de dinheiro. Ao contrário, estava devendo no banco.

Se ele não retirara o dinheiro como ela dissera, então não havia dinheiro. O que fizera ela me dizer que havia? O que estaria por trás daquela mentira e da procura dela por mim?

Decisivamente, ela não procurava o dinheiro e nem suspeitava de mim. Mas não seria por causa de um cordão aquele interesse todo. Ou seria? Não, não poderia ser por um cordão.

Fui a viagem inteira de volta à rodoviária de Campinas e depois de lá para Sorocaba pensando nas razões que moviam Marcela.

O trabalho no Cruzeiro não rendeu.

Naquela noite não dormi nada.

No dia seguinte, eu estava um caco só.

Tinha de haver uma explicação.

Quando cheguei à redação do Correio, Marcela me ligou e pediu para conversar.

Eu disse que não podia sair.

Ela propôs me buscar e levar até a rodoviária de Campinas para conversarmos no caminho. Disse novamente que era importante.

 Aceitei. Não tinha como não aceitar. Mas o medo daquela situação me deixava com dor no estômago. Eu suava frio e tinha os pensamentos confusos o tempo todo.

- Vou te perguntar mais uma vez e quero que seja sincero comigo. Você não sabe nada mesmo do dinheiro e do cordão?, ela disse.

Estava angustiado com aquilo e resolvi contar tudo a ela para me livrar daquela situação, nem que a revelação de que eu estivera com aquele cordão o tempo todo me prejudicasse de alguma forma. Não importava, eu ia falar.

Mas antes resolvi perguntar a ela por que mentira sobre o dinheiro.

- Marcela, preciso que seja sincera comigo também. Não existe dinheiro algum, não é?

Ela ficou em silêncio por alguns instantes.

Depois, confessou:

- Não, não existe dinheiro algum. Eu inventei essa história. Eu queria justificar a procura pelo cordão. Ninguém acharia normal procurar por um cordão com uma foto, mas tanto dinheiro assim, não seria nada estranho.

- Concordo, mas isso quer dizer que o que procura realmente é aquele cordão? Só?

- Sim, mas não é só. É uma lembrança muito importante para mim. Eu preciso achar.

- Eu entendo a importância sentimental para você, mas, como disse, não posso te ajudar.

Tinha resolvido não dizer sobre o cordão mais. Havia alguma coisa de muito estranho naquela procura desesperada por um cordão. Eu precisava saber o que era antes de entregá-lo. Por isso, mantive que não sabia de nada.

Mas quando voltei a negar, Marcela perdeu a paciência e me disse olhando nos meus olhos:

- Você está mentindo.

- O quê?

- Eu sei que está mentindo para mim desde o início e eu estou tentando arrancar verdade sem pressão, mas, se você não me disser onde está o cordão, eu vou entregar esta foto à polícia, ela disse mostrando uma foto.

A imagem era minha com a cabeça praticamente dentro do carro.

Não aparecia o cordão nem mais nada além da cabeça enfiada dentro do veículo.

Aquilo não provava nada, mas me deixou gelado por conta da denúncia.

- Eu já disse que fui olhar de perto. A polícia nunca deixa que olhemos todos os detalhes e eu queria fazer isto. Quem fez essa foto?

- Dona Marisa. Desculpe, eu estou nervosa. Preciso encontrar esse cordão. Eu quero deixar o país e não quero ir antes de encontrá-lo.

- Eu entendo e vou te ajudar.

Nos despedimos e eu fui muito preocupado.

 

Em casa, apanhei o cordão em uma caixa de sapatos no armário onde havia guardado desde o dia em que voltara do acidente com ele.

Abri o coração novamente e olhei a foto detidamente. Tinha de haver alguma coisa ali. Mas era só a imagem de uma família feliz. Mais nada. Por que interessaria tanto a Marcela?

Passei o dedo sobre a foto para sentir a textura e ela saiu do lugar. Tentei colocá-la novamente e não encaixava. Ao forçar para colocá-la, a foto caiu do coração.

Apanhei a imagem no chão e só aí notei que havia alguma coisa escrita atrás da foto.

Virei-a para ver melhor. Eram números. Vários números. Estava ali a razão da procura de Marcela. Aqueles números. Mas o que eles eram? O que significavam? Não tinha resposta.

No dia seguinte, Marcela voltou a me procurar e eu disse que alguém tinha deixado o cordão no jornal em um envelope.

Ela ficou felicíssima.

Quando estava com o cordão nas mãos, eu perguntei a ela sobre os números.

- Que números?, ela se fez de desentendida.

- Esses números que estão atrás da foto.

Por alguns segundos, ela pensou no que dizer. Finalmente, tomou coragem e revelou a verdade sobre os números:

- Ah, esses números são da conta que meu pai mantém no exterior. Eu vou deixar o país e vou resgatá-la. Quer vir comigo?, ela disse.

Eu ri.

- Então era isso?

- Era, ela disse rindo também.

- Quer vir comigo?, insistiu.

- Não, obrigado. Vou ser pai daqui a pouco. Tenho uma outra missão a cumprir.

- Está certo. Adeus.

- Adeus.

 

Essa história mexeu comigo por anos.

Hoje eu me livro dela expondo-a aqui.

 

 

FIQUE SABENDO

Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.

Imagem da Galeria Um acidente com dois mortos e uma pressão enorme sobre a morte
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