O monstro da casa em construção

14 de março de 2021

O monstro da casa em construção

Data de Publicação: 14 de março de 2021 14:59:00 CONTOS DE DOMINGO - Este é o último texto desse projeto iniciado em janeiro de 2021, no qual mostrei as mais diversas formas de contar uma história.

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Nesta história em que se misturam elementos de magia e de terror, o leitor conhecerá um maníaco assassino. A mente perversa desse bandido é atormentada pelo demônio. E ele acaba sendo vítima das próprias perturbações.

 

 

- Poderoso exu tranca rua do imbaré, exu veludo negro, exu caveira, exu da capa preta, exu da meia noite das almas, exu do lodo, eu vos invoco para que me ajudem a dar cabo do lazarento, que não tem perdão, que não pensa no outro, que não merece viver sem dor e sofrimento, o desgraçado Juca Pereira.

As palavras pronunciadas com ódio no interior do Cemitério da Saudade, o mais antigo de Salto, percorrem os vazios entre os túmulos como um eco abandonado no meio da madrugada.

Elas encerram o ritual de magia negra realizado por Isabel Miranda, que em seguida coloca um boneco de vodu negro dentro de um vidro com sangue de bode e pedaços dos cabelos loiros e encaracolados de Juca.

Depois, a mistura é selada lentamente com os pingos de cera de duas velas, uma vermelha e outra preta, que queimavam desde o início.

Isabel toma o pote em suas mãos, protegidas por luvas negras, e o ergue para visualizar o conteúdo à luz da lua minguante.

O pote é então envolto em um pano negro, cujas pontas são amarradas sete vezes.

Em seguida, a mulher magra, pequena, de cabelos loiros tingidos e uma boca carnuda, quase inchada, que guarda uma cicatriz de corte no lado esquerdo do rosto, desce o pote à cova aberta e o enterra cantando uma lamúria de ódio, desprezo e dor entremeada com a pronúncia destacada do nome de Juca Pereira.

Tudo estava feito.

Ela olha em redor como se visse pessoas em uma plateia atenta nos túmulos e grita, voltando-se para todos os lados enquanto fala:

- Vocês todos são testemunhas.

Inesperadamente, um vento gelado varre o cemitério, trovões começam a estourar no céu e raios riscam o escuro das vielas entre as covas mostrando que Isabel veste-se toda de negro.

- Quem está aí? Responda. Quem está aí?

Ao ouvir os gritos do vigia, Isabel apanha os objetos que restaram da magia que executara e corre para o lado oposto de onde vinha a voz.

Sua magreza e agilidade para dar passos curtos, mas rápidos, fazem-na desaparecer nas sombras sem barulho, imperceptível.

- Tinha alguém aqui Leandro, disse o vigia para o colega, ambos ostentando faroletes potentes.

As luzes projetadas por eles transformam em segundos a noite em dia nas vielas do cemitério, mas nada nem ninguém encontram como suspeitavam após ouvirem vozes.

- Será que era alguém mesmo João?

- Claro que era. Tenho certeza. Ouvi vozes.

- Talvez não seja alma deste mundo.

Ao dizer a frase Leandro faz um barulho com a boca, como se soprasse sobre o colega para assustá-lo, mas sem sucesso.

- Deixe de ser idiota. Não existem almas penadas. Pessoas mortas que voltam. Trabalho neste cemitério há anos e nunca vi.

O outro responde ressabiado:

- Eu não sei. Eu tenho medo. Nunca vi. Nem quero. Deus me livre, diz benzendo-se.

Os dois deixam o local onde o pote da magia negra realizada por Isabel fora enterrado.

Não percebem nenhuma alteração.

O escuro volta cobrir as vielas entre os túmulos e um vento forte volta a varrer o chão.

 

Juca Pereira morou no bairro Jardim Maria José, ao lado da rodoviária, desde pequeno.

Quando sua família se mudara para lá, no início de 1972, não havia a rodoviária e a maioria das casas atuais não existia ainda.

Algumas delas estavam em construção.

Perto da casa onde Juca dividia o segundo quarto com mais três irmãos e os pais ficavam com o outro, só havia uma casa pronta.

Partindo da esquina próxima ao Córrego do Ajudante, a rua José de Almeida Teixeira Filho, onde ficavam as duas casas, era um descampado quase completo.

Só perto da esquina próxima ao córrego havia algumas poucas árvores altas.

Antes delas, existia uma grande área de terra batida, toda irregular, com muitos buracos, onde os meninos do bairro jogavam futebol.

O Jardim Maria José era um lugar de muito vento, bom para soltar pipa em julho e agosto.

O campinho improvisado era o lugar preferido da molecada. Não havia muitos garotos. Talvez porque fosse o início do bairro ainda.

Juca Pereira não se entrosava muito com os meninos. Maior que eles e mais forte, sempre que brigava -e isto ocorria com muita facilidade por sua irritação com qualquer coisa-, ele os machucava. Por isso, era deixado de lado quando havia jogos ou pipas.

Para passar o tempo, o menino de 14 anos ia nadar no Ribeirão Piraí com outros meninos de bairros próximos do Cemitério da Saudade.

Quase nunca estava no seu bairro.

 

Isto mudou quando uma família de Elias Fausto passou a morar na casa ao lado da sua.

O dono do imóvel tinha perdido o pai, que falecera por conta de um câncer agressivo no intestino, e resolvera voltar ao Paraná.

Não vendeu a casa.

Em vez disso, decidiu alugá-la.  

Seu Aureliano, o dono da casa, morava sozinho e tinha hábitos reclusos havia anos.

Não só pela idade avançada, 76, mas por ser de poucos amigos mesmo.

Ele não se dava bem com a família de Juca Pereira por causa dos irmãos mais velhos dele.

Os dois tocavam música em alto e bom som todos os dias tarde da noite, ainda que o pai Antenor e a mãe Josefa ralhassem com eles.

Era sempre igual: no momento da bronca, eles baixavam e depois iam subindo devagar.

Quando se notava, a música já estava alta novamente. Os pais cansavam de reclamar. O vizinho mais ainda. Seu Aureliano colocava um protetor nos ouvidos, vestia o pijama de frio mesmo no calor, fechava janelas e se escondia no quarto tentando não ouvir, o que era difícil.

Mudar-se dali fora um presente para ele.

No Paraná, iria morar em um sítio, ouvir apenas os passarinhos e tirar leite de vaca.

A família que se mudara na sua casa interessara a Juca Pereira -e não só a ele, mas aos irmãos mais velhos também- porque tinha três meninas. As idades delas eram próximas às dos três: 18, 16 e 14. Os dois irmãos de Juca tinham 17 e 18 respectivamente.

Não eram bonitas.

Mesmo assim, eram poucas as meninas no bairro. A maioria nem saía para brincar por causa dos meninos. Naquela época, meninas eram criadas para se casarem e se tornarem mães. Meninos eram criados soltos na rua.

Havia até um ditado popular, segundo o qual o pai de meninas deveria se precaver: “Prenda suas cabras, porque meus bodes estão soltos”.

Por isso, meninas eram sempre protegidas da rua e vigiadas de perto pelas mães.

Magali, Margarete e Mariana não eram assim. Vindas da zona rural de Elias Fausto eram tão inocentes quanto os pais delas.

No início não saíam muito à rua.

A mais velha ia comprar coisas para a mãe na mercearia do bairro, quase sempre acompanhada da filha do meio.

A menor saía no máximo para lavar o carro da família na frente da casa.

Juca ficara de olho nesta: Mariana.

Ela andava como as irmãs, com vestidinhos pobres e sandálias de plástico.

Aos poucos, Juca se aproximou.

Ofereceu-se para ajudar a lavar o carro.

O pai das meninas viajava muito pela região para vender café em pó para uma fábrica de Itu.

O carro ficava muito sujo sempre.

A menina topou e o pai gostou da iniciativa.

Sua inocência de caipira não vira mal algum no menino grande e forte que se fazia gentil.

As irmãs acabaram assentindo com a presença de Juca. Ele conversava muito. Sabia ser interessante. Falava de coisas que elas não conheciam, mas tinham curiosidade.

Um desses assuntos era o sexo.

- Nunca, mas deve ser bom. Vi minha tia com o namorado uma vez na varanda de casa lá em Elias Fausto. Ele pegava nos seios dela.

A revelação da mais nova surpreendeu as outras, que a repreenderam.

- Não devia falar disso Mari.

- Por que não Magali? Sexo é uma coisa que todos fazem. Em algum momento fazem, diz Juca tentando esticar a conversa.

Magali estava curiosa também, mas olhava para o corredor a fim de ver se o pai não vinha.

- Não tem nada demais só falar, intervém Margarete, outra interessada.

- Você deve saber muito, né Juca?

- Sei um pouco, mas não tudo Mari.

- Eu queria saber se dói.

Todos riem.

- Claro que não Mari, diz Juca cheio de razão, como se fosse muito experiente.

- Eu queria saber como evitar a gravidez. Imagina ficar grávida. Seria o fim.

A preocupação de Margarete deu a Juca uma ideia, aproveitando-se da inocência delas.

- É só fazer de outro jeito.

- Como assim de outro jeito?, pergunta Mari.

Quando Juca vai explicar, o pai das meninas as chama para entrarem e a conversa acaba.

 

De noite, Juca Pereira aprontava.

Como a maioria dos meninos, não entrava cedo para dormir. Ficava na rua.

Os outros ficavam sentados em torno das poucas luzes que algumas casas tinham para a rua, já que não havia iluminação pública e tudo era muito escuro.

Juca ia em uma casa em construção perto do campinho. O local estava quase pronto no que se referia à estrutura básica. Tinha até telhado. Na verdade, a laje que aguardava o telhado.

Só não estava rebocada nem tinha portas e janelas nos espaços abertos para isto.

A escuridão lá dentro era medonha.

Juca não tinha medo.

Ia lá para usar drogas.

Conseguia alguns cigarrinhos com os amigos de perto do cemitério.

Ficava horas lá absorto até passar o efeito.

 

No outro dia, quando saía de casa para a rua, Juca teve a atenção chamada por Mariana.

- Ju, Ju.

- Oi Mari.

- Oi.

- O que foi?

Ela o puxa para um canto perto do portão para falar sem ser percebida.

- O que está acontecendo? Por que está misteriosa assim? Do que está escondendo?

- Chio, fica quieto.

- Fale Mari.

- Eu quero saber o que ia dizer e não pode porque meu pai nos chamou.

- Ah, do outro jeito?

- É, como é isso?

- Vamos fazer melhor: em vez de falar, vamos fazer. O que acha?

- Está louco? Eu sou virgem.

- Mas vai continuar virgem.

- Como assim?

Juca sussurra no ouvido dela.

A menina explode nervosa empurrando-o.

- Credo, você é um tarado mesmo. Não fale mais comigo. Nem chegue perto de mim.

A menina se afasta irritada demais com o que ouvira dele sussurrado no ouvido.

Juca fica sem reação.

Sem ter o que fazer, ele tenta esquecer a vizinha e vai para a rua encontrar os amigos de perto do Cemitério da Saudade.

Mariana não se conforma com o que ouviu e fala para as irmãs também.

As outras duas têm a mesma reação dela.

Todas resolvem não falar mais com Juca.

O menino lamenta mais por Mari, que é por quem vinha se interessando mais.

Mas não faz nenhum esforço para chamar a atenção delas novamente.

 

Só quando Lisa se muda para a casa da frente de Juca é que as meninas do lado resolvem rever a decisão de não falar mais com ele.

É que Lisa gostou dele como elas e os dois passaram a conversar com mais frequência.

Lisa perdera o pai quando tinha dois anos.

Um acidente de carro deixou Elza viúva e tendo de criar a filha sozinha.

Por essa razão, Lisa era mais solta que as outras meninas e começou a conversar com Juca assim que o conheceu.

Tinham longos papos no portão dela.

Com ciúme, as irmãs do lado da casa dele retomaram a conversa com o rapaz.

- Está de namorada nova Juca?, perguntou Magali ao lado das irmãs.

Juca olhou para as três antes de entrar em casa e respondeu seco:

- Não, ela não é minha namorada.

E depois entrou sem dizer mais nada.

No dia seguinte, quando Juca saía para a rua, foi parado por Magali novamente.

- Ju, eu fiquei sabendo daquela história que falou para minha irmã e não gostei, viu?

- Foi por isso que deixaram de falar comigo?

- Sim, isso que disse é nojento e deve doer.

- Não é nojento. Eu só falei porque é um jeito de evitar a gravidez. Vocês é que perguntaram.

- Você é bobo ou o quê?

- Por quê?

- Porque existem outros meios.

- Existem, claro que existem. Mas este é infalível. Além disso, você tem uma experiência nova, diferente, que nunca teve. Você ia gostar.

Disse e se foi.

Ela ficou pensando.

Depois balançou a cabeça negando para si mesma. A curiosidade era grande, mas o medo e a educação que tivera não permitiam aquilo.

 

No outro dia, Magali voltou a falar com Juca.

- Você já fez?

- Muitas vezes, mentiu ele.

- Fez com a outra aí da frente?

- Não. Não fiz com ninguém aqui. Quero fazer com você. Topa? Tem uma construção ali perto do campinho. Vamos lá? Topa?

Magali olha para ele com cara de reprovação:

- Imagina. Você é só um moleque. Eu tenho 18 anos, esqueceu? Você tem quanto?

- Tenho 14, mas garanto que já vivi nesses 14 muito mais que você nos seus 18.

Magali fechou a cara e o deixou falando sozinho, mas ficou pensando no que ele disse.

Ela tinha curiosidade pelo sexo e ficou com mais curiosidade com a forma que ele descreveu. Nunca soube de ninguém que fizera.

Magali queria saber de tudo, experimentar. Mas tinha muito medo e vergonha.

A frase que ele disse de não ter vivido com os 18 anos que tinha a fez se achar fora do padrão.

As outras meninas da idade dela já não eram mais virgens havia muito tempo.

Ela ainda continuava virgem.

Tinha de mudar isso, mas ela tinha muito medo de engravidar. Se acontecesse, seria um drama para ela e para sua família.

Aquilo não saía da cabeça dela.

Na época não se vendia preservativos com a facilidade de hoje e ainda mais a meninas.

Ela ficou pensando que, se tentasse o jeito que Juca proporá, não perderia nada.

Mas ele era um menino ainda.

Se soubessem disso, ela seria ridicularizada.

Depois pensou que Juca era grande e forte. Não aparentava a idade que tinha.

Resolveu aceitar a proposta.

Não sabia ainda como faria, se faria, mas queria, estava disposta a aceitar.

Não disse nada para as irmãs.

Quando se encontrou com Juca novamente, disse que queria saber uma coisa:

- O quê?

- Se aceitasse, como seria?

- Simples: eu vou lá na construção, preparo tudo e você vai para lá uns dez minutos depois. Olha se ninguém está vendo você ir. Entra e fazemos. Depois, você sai primeiro.

- Humm.

- Se quiser, vou para lá agora que é um bom horário. Era final da manhã. - Não tem ninguém no campinho. Os meninos vão jogar só de tarde.

- Agora?

- É.

A resposta rápida dele e a curiosidade dela mordendo por dentro a deixam em polvorosa.

Os olhos da menina ficam inquietos.

As mãos tremem, ela sua frio, gagueja.

- Está, tá, tá bem. Eu vou dizer à minha mãe que vou comprar coisas na mercearia. E daí vou.

- Não. Se disser isso, a Margarete vai com você. Aí não vai dar certo, ele adverte.

- É verdade, ela fica pensando em tudo ao mesmo tempo. Sua cabeça não para. Está nervosa demais. - Então vá. Vá. Eu já vou.

O rapaz ri do nervosismo dela e vai.

Alguns minutos depois, ela chega.

Quando Magali entra na casa em construção, vê Juca terminando de arrumar um pano colorido no chão do quarto.

Parecia uma colcha.

Ele o colocou bem longe da janela ou do que seria a janela.  Preferiu o local mais próximo ao banheiro. Ali ficariam mais protegidos.

Magali está nervosa demais.

Ela treme como se estivesse com frio.

Senta-se devagar sobre o pano.

- Ei, calma, ele diz.

- Não sei se devemos fazer Juca. É uma loucura isso. Eu estou com medo, muito medo.

- Pare com isso. Veio até aqui. Vai desistir agora? Não pode Magali. Você tem de experimentar. Tem de saber as coisas.

- Posso sim. Eu não quero mais. Vou embora.

A menina se levanta totalmente para se dirigir em direção à porta, Juca a agarra pelos braços. Ela começa a chorar tentando se desvencilhar dele. Os dois rolam no pano. São alguns minutos de luta. Ela tentando escapar. Ele tentando prender e usando força.

Juca era esperto.

Não queria perder a oportunidade.

Sabia que ela não gritaria, porque não teria como explicar estar ali. Além disso, não havia ninguém por perto. A rua e o campinho estavam totalmente vazios. A hora era a melhor para fazerem, como ele havia dito.

Enquanto a segurava, Juca arranca a calcinha que a menina usava por baixo do vestido.

Magali conseguiu se desvencilhar dele depois disso e correu para o espaço que seria a janela, já que ele estava postado na frente da porta do quarto. Sua intenção era pular ou chamar alguém para que a salvasse.

Mas não havia ninguém por perto e ela não teve tempo de pular a janela.

Quando percebe que não havia ninguém perto da casa, Juca já estava atrás dela e os seus braços fortes a agarravam com decisão.

Com uma das mãos, ele a segura e com a outra abaixa o bermudão que usava.

Magali até gritou assim que ele começou a violentá-la, mas de nada adiantou.

Depois ela teve a boca tapada com uma das mãos dele. A outra a segurou até que ele terminasse apenas alguns minutos depois.

Ao soltá-la e se deixar cair no chão exausto, Juca nem percebeu o sangue no seu sexo.

Ela não. Ela percebeu, mas a percepção a fez desabar no chão também. Não tinha forças mais. Estava a ponto de ter um colapso.

Juca se levantou rápido e preocupado.

Ele a carregou até o pano. Tinha trazido outros panos. Usou-os para limpá-la e a si. Mas o sangue não parava de sair dela.

- Acho melhor você voltar para sua casa.

Magali chora desesperada.

- O que vou dizer?

- Diga que foi atacada por um homem no campinho e que nunca o viu por aqui.

- Não vão acreditar.

- Se disser que fui eu, vão me linchar. Eu não vou esperar. Mas, se fizer isto, eu volto para me vingar. Me vingo de você e das suas irmãs.

Magali olha para o sangue e para ele.

Ela está perplexa com tudo e com muito medo do que ele dissera:

- Não vou dizer, finalmente ela pronuncia.

Ele a ajuda a se levantar e a acompanha até a porta. Ela sai correndo e chorando.

 

A menina foi levada ao hospital e não disse nada para ninguém, nem para as irmãs.

O pai resolveu não dar queixa.

A direção do hospital o obrigou a fazer.

O médico que a atendeu disse ao pai que o estuprador era ainda muito bem-dotado.

Os danos que causara eram grandes.

Magali não saiu mais de casa.

Ficou traumatizada e com medo.

Ela não falou nada sobre Juca Pereira, mas descreveu para as irmãs a agressão tal como aconteceu passo a passo.

As irmãs ficaram horrorizadas.

A ideia de experimentar o que Juca havia proposto agora era algo que elas abominavam.

 

A noite estava sem luar quando Juca se dirigiu à casa em construção.

Era a primeira vez que voltava ao local depois do ataque à Magali. Ele não tinha sentimento de culpa ou de arrependimento. Sabia como ela estava sofrendo com tudo, mas achava que se recuperaria logo e esqueceria tudo.

- Afinal, ela se mantém virgem, disse rindo alto dentro da casa no meio da escuridão.

Ele levara para o local os baseados de sempre, mas desta vez acrescentara um pó.

Soneca, um dos amigos de perto do cemitério, tinha conseguido com conhecidos de São Paulo e queria que ele experimentasse.

- É muito foda Juca. Você vai pirar. Mas ó, se cuida porque o barato não passa rápido.

- Tô sabendo.

Acendeu o fósforo e fez uma fogueira pequena para iluminar um pouco e poder preparar tudo com mais tranquilidade.

Enrolou o baseado e fumou.

Deixou o pó em um canto para depois.

O efeito do baseado era rápido.

Logo depois ele já estava ligado de novo.

Foi até o pó, pegou uma placa de vidro e colocou tudo em cima. Não era muito o que o amigo tinha conseguido, mas ele não sabia como seriam os efeitos.

- Dá para a noite toda se você cheirar devagar.

Juca começou a aspirar o pó com um canudo de caneta Bic sem a carga.

Assim que entrava na narina, o pó ardia as paredes do nariz e em seguida vinha um alívio porque o cérebro começava a viajar.

Juca começou a ficar excitado, mas não era uma excitação só sexual. Percebeu que seu sexo estava entumecido. Parecia um pedaço de ferro. Só que a excitação ia além disso. Sentia o corpo latejar com mais força de dentro para fora.

Era como se a parte interna da pele forçasse para sair e voltasse ao encontrar resistência, mas voltasse para tomar impulso e tentar de novo e de novo e de novo e de novo.

Aquela sensação era prazerosa.

Ele começou a se masturbar.

O coração batia muito rápido. À medida que a pressão arterial se acelerava, ele fazia os movimentos mais rápidos. A pele sangrava.

De repente, começou a sentir uma dor no peito, uma dor forte como se estivesse separando as costelas. Não gozou.

Passou a se revirar em cima do pano que levara para se sentar enquanto se drogaria.

Ele gira o corpo de um lado para o outro.

Levanta-se e cai.

Os olhos não enxergam mais nada.

Desmaia.

Algum tempo depois acorda.

Então vê a mulher entrar pela porta.

É apenas um vulto.

Sua visão está embaçada demais.

A fogueira já está quase apagada.

É uma mulher magra, alta, cabelos compridos. Ela veste uma roupa de couro.

Ele não consegue ter muita certeza de nada.

Volta a se excitar.

A mulher se vira para fugir ao vê-lo com o sexo na mão e duro. Ela faz menção de correr. Ele corre mais rápido. Segura-a com força.

Parece ter a força de três homens.

Ele rasga a roupa dela.

Não consegue entender como fizera aquilo, mas rasgara couro só de puxar para os lados.

Completamente nua, a mulher chora e implora que ele a solte, mas Juca está possuído por alguma coisa anormal.

O seu rosto está sangrando.

Ele não sabe do que é.

O rapaz baba, revira os olhos, urra.

Juca segura os braços da mulher com tanta força que ele os quebra. Ouve o barulho de quebrar. A mulher chora, grita.

Mas o rapaz não tem piedade.

Ele a violenta de todas as formas possíveis.

Seu sexo parece um pedaço de ferro.

- Meu pau é de aço, ele grita.

Não consegue terminar.

Fica enfurecido com isso.

Em seguida, passa a agredir a mulher a socos e chutes. Ela chora e grita.

Com mais raiva ainda, Juca pega um pedaço de ferro da construção e passa a bater nela com o instrumento. O sangue espirra no seu rosto, no seu corpo, por tudo. A mulher silencia.

Juca senta exausto encostado na parede.

No dia seguinte, os meninos vão jogar futebol no campinho e acham o corpo.

Juca some do Jardim Maria José.

Ele se esconde na casa de um dos amigos de perto do cemitério. Fica o dia inteiro se drogando com baseados.

A família não sabe o que fazer, mas ninguém desconfia que ele seja o assassino.

Só Magali, quando sabe do crime, diz:

- Foi ele.

Mas o faz baixinho sem que ninguém ouça.

 

As irmãs ficaram todas mais reclusas logo depois do incidente com Magali.

Estavam com medo do ataque do tarado como ficou conhecido o caso do homem que teria violentado Magali e que nunca fora encontrado pela polícia.

Só com o tempo, foram voltando a sair para a rua e a ter menos medo.

Quando isso começou a acontecer de novo, Juca voltou para casa e passou a assediar as irmãs novamente e também Lisa.

Juca Pereira era bom de conversa.

E, apesar de tudo o que ocorrera com Magali, as irmãs ainda tinham muita curiosidade com o sexo, já que eram virgens.

A curiosidade das duas menores as levou ao mesmo caminho e ao mesmo resultado obtido por Magali. A irmã mais velha não conseguia contar nada a ninguém. Nem mesmo quando aconteceu novamente. O trauma a travava.

A primeira vítima depois dela foi a de 16 anos.

Ela também não contou nada a ninguém quando aconteceu, nem às irmãs.

A história foi a mesma.

Um homem tarado a agarrou e a violentou.

Margarete não sabia como descrevê-lo.

Por isso, Mariana também caiu nas garras de Juca Pereira e acabou no hospital.

Alguns dias depois dela aconteceu com Lisa.

O mesmo procedimento.

Os moradores do Jardim Maria José começaram a caçar o tarado e a polícia também, mas sem sucesso. O homem desaparecia como que por encanto depois dos crimes.

As meninas o descreviam como um homem grande e forte, loiro e com cabelos encaracolados. Ninguém colocou as características em um menino como Juca, embora ele fosse grande e forte.

Os ataques às três irmãs e da forma como aconteceram fizeram a família se mudar.

Não passou um mês e a mãe de Lisa também se mudou com medo de novos ataques.

Lisa estava tão traumatizada que não se alimentava mais direito e tinha medo de ficar sozinha. A mãe tivera de dormir com ela todas as noites desde o ataque. Ela não percebeu que a menina nunca mais quis ou falou de Juca.

Ele também nunca a visitou e tampouco às irmãs depois dos ataques a elas.

Depois das experiências com as irmãs e com Lisa, além da mulher misteriosa que morrera nas suas mãos, Juca Pereira ficou mais confiante de que poderia e passou a atacar outras meninas e as levar para a casa em construção à força agindo sempre da mesma forma e com as mesmas ameaças depois das violências.

Como poucas pessoas moravam no bairro ainda, ele nunca fora visto nos ataques.

 

Um dia quando foi à casa em construção à noite com mais uma quantidade de um pó novo que os amigos de perto do cemitério conseguiram, Juca ficou mais louco ainda.

Esse pó era mais forte que aquele primeiro.

Juca estava curioso com ele.

O rapaz não quisera experimentar mais o pó depois do assassinato da mulher.

Chegou a ficar um tempo sem se drogar de forma alguma. Sentia vontade, mas temia que fosse descoberto pela polícia.

Logo depois do crime, os policiais fizeram muitas buscas pelo bairro.

Ninguém desconfiava dele.

De qualquer forma, era um risco muito grande ir para a casa em construção onde tudo ocorrera para se drogar. Era como se entregar para a polícia de mão beijada. Ele raciocinou dessa forma e os amigos de perto do cemitério também o aconselharam a suspender.

Teve o período em que sumiu do bairro também e que já serviu para despistar a polícia.

Mesmo nesse período, ele evitou o pó.

Mas agora as coisas estavam mais calmas.

Ele achou que não teria mais risco.

Fazia tempo que a polícia não aparecia à noite no bairro. Tinha havido uma pressão maior depois dos ataques às irmãs e à Lisa, mas cessaram rapidamente, já que nenhum suspeito foi identificado ou preso nesse período.

Assim que começou a cheirar o pó, Juca teve convulsões. Ele caiu no chão e rolou com o coração pela boca. Depois de alguns minutos sobreveio uma sensação de prazer muito grande que ele não sabia nem dimensionar.

Esse pó dava um barato diferente.

A boca ficava seca, os olhos grandes.

O problema era a barriga: a sensação era de má digestão e tinha prisão de ventre.

Ele se sentia mais leve, mais solto. Sentia-se com asas. Achava que tinha o peito de aço. Tinha a impressão de que era todo de aço ou de ferro.

Sentia-se tão forte que resolveu derrubar a parede com socos. Começou a desferir socos nos tijolos com muita força. Não tinha dor alguma. Ele não percebeu, mas as suas mãos estavam sangrando. Os tijolos nem se mexeram.

Em seguida, Juca começou a ter sono.

Deitou-se, a respiração diminuiu, os batimentos eram lentos, quase parando.

Sua pele ficou fria. A temperatura do corpo caiu. Ele azulou nos braços, nas mãos, no rosto.

Os olhos estavam quase se fechando quando ele viu a mulher da outra noite do pó entrar pela porta. Ela estava viva de novo. Como poderia? A cabeça dele faz perguntas uma atrás da outra. Ele não tem respostas para nenhuma delas.

Como ela revivera, ele não sabe, mas ela estava ali e vinha sua direção.

Juca tenta se erguer para se defender dela e não consegue. Percebe que as suas pernas estavam presas ao chão. Ele olha e não vê nenhuma amarra. Só que não consegue mexer.

Nem os braços ele mexe.

Está paralisado no chão como se pesasse toneladas agora. Toda a leveza que conseguira havia poucos minutos desaparecera totalmente.

Quando a mulher está próxima dele, ela o olha com a cara de quem está possuída pelo demônio. Seus olhos estão desorganizados. Seus gestos ficam rígidos. Ela baba.

Juca tem medo pela primeira vez.

A mulher levanta os braços para o teto e diz:

- Poderoso exu tranca rua do imbaré, exu veludo negro, exu caveira, exu da capa preta, exu da meia noite das almas, exu do lodo, eu vos invoco para que me ajudem a dar cabo do lazarento, que não tem perdão, que não pensa no outro, que não merece viver sem dor e sofrimento, o desgraçado Juca Pereira.

Ele sente medo, mas não consegue se mexer.

De repente aquela mulher que estava vestida com roupa de couro como da primeira vez começa a virar uma caveira. Seu corpo vai se deteriorando na frente dele como se ela tivesse tomado alguma coisa que provocasse aquilo. Tudo se desfaz e ela vai envergando, envergando, envergando.

Quando Juca Pereira pensa que se livrou daquilo, começam a crescer asas nas costas dela.

Asas grandes, que vão ficando maiores ainda. As asas ficam maiores que o corpo.

Aos poucos, a mulher levanta a cabeça e sua fisionomia agora é a de um homem, um homem velho, barbado, narigudo, pele grossa e com apenas um olho, um olho gigante no meio da testa.

Ele sorri puxando apenas um dos cantos da boca para o lado, sem mostrar os dentes, de forma sarcástica, e depois inclina a cabeça, desvia o olhar dele e volta a olhá-lo fixamente.

Quando Juca olha para o resto do corpo dele percebe que o homem tem um pênis gigante.

Ele está totalmente ereto.

Juca não consegue se mexer.

O homem abre a boca enorme gargalhando agora e se aproxima dele, vira-o de costas e o abraça com as suas asas enormes antes de violentá-lo da mesma forma que ele fizera com as meninas e com a mulher que se transformara naquele ser estranho e aterrorizante.

A vingança estava consumada.

 

No dia seguinte, Juca acorda ainda na casa.

O efeito do pó havia passado.

Agora consegue se mexer.

Ele olha todo o seu corpo e não vê nenhum dano aparente. Passa a mão várias vezes no ânus tentando perceber algum machucado, dor. Não há nada. Ao menos aparente.

Conclui então que fora uma alucinação provocada pelo pó. Aquele pó era muito forte. Ele devia estar com os ataques às meninas na cabeça e por isso vivera aquela alucinação.

- Ufa, felizmente não era verdade.

Três meses depois daquela noite, a família de Juca Pereira resolveu se mudar também do Jardim Maria José como as outras famílias.

Não havia medo do tarado evidentemente.

A mudança ocorreu porque seu Antenor arranjou emprego em outro lugar.

Era preciso ficar mais próximo do trabalho.

Por isso, nunca ninguém descobriu que Juca Pereira era um monstro da casa em construção.

 

O tempo passou.

Juca estava agora com 18 anos.

Nunca mais ele tinha atacado ninguém.  

Na sua cabeça, era preciso ter um lugar como a casa em construção do Jardim Maria José para poder agir. O lugar para onde se mudou com a família era totalmente habitado. Não havia como fazer qualquer coisa sem ser visto.

Juca não queria ser preso.

Sem um local, acabou adiando novos ataques.

Mas nesses quatro anos o menino se envolveu mais ainda com os amigos que moravam perto do Cemitério da Saudade e mergulhou nas drogas, usando cada vez mais e mais pesadas.

O pó daquela noite fatídica do monstro de asas não fazia mais o mesmo efeito.

Soneca era um dos amigos mais frequentes.

- Ju, fiquei sabendo de umas minas aí que fazem programa. O que acha de dar um rolé com elas sem pagar só para zoar com a cara delas?

- Como é isso?

- A gente marca com elas, vai até um drive em Itu, faz o programa e não paga. Se encherem o saco, a gente cobre de porrada.

- Mas não dá merda?

- Claro que não.

- Vamos nessa então.

Em um catálogo de garotas de programa, Juca escolhe Rochele, uma mulher magra, pequena, de cabelos loiros tingidos e uma boca carnuda, quase inchada. No anúncio dizia que ela fazia o tipo de sexo pelo qual ele era apaixonado e que o levara aos ataques no Jardim Maria José.

- É essa.

- Legal, marque com ela. Eu vou nessa aqui, escolheu Soneca apontando outra loira.

Antes de irem para o programa, os dois roubaram um carro no buracão, que é conhecido em Salto como Jardim Bandeirantes.

Juca pegou Rochele na Rua 9 de Julho, onde ela marcou que o esperaria.

Dali foram para o drive em Itu, já que em Salto não existem drives com essa atividade.

No caminho, foram conversando:

- Você gostou de mim amor?, perguntou ela.

- Não sei ainda. Vamos ver depois. Mas você parece legal. Essa sua boca carnuda é maneira.

- Você vai gostar. Só preciso te dizer uma coisa antes. Aí você vê o que...

- Dizer o quê?

- É que eu sou uma mulher trans.

- Você é o quê?

- Uma mulher trans amor, mas ninguém nem percebe. Olhe para mim.

- Que porra é essa? Você acha que eu vou transar com um homem?

Na mesma hora veio à cabeça de Juca o monstro de asas daquela noite.

Ele tremeu só de pensar que poderia acontecer aquilo de verdade.

- Eu não sou homem. Eu sou uma mulher quase completa. Você não está vendo?

- Quase completa? Só falta uma coisinha, né? Só falta tirar o pinto, ele gritou com ela.

Juca fica muito irritado, mas não para de dirigir. Na verdade, não sabia o que fazer. Estava disposto a judiar daquela Rochelle até ela sangrar. Ele vai discutindo e dirigindo cada vez mais irritado e nervoso com a informação.

- Amor, você não é obrigado. Me leva de volta. Está tudo certo. Se não curte...

- O quê? Te levar de volta? Não. Agora nós vamos. Você não me enganou? Agora você vai ver o que acontece com quem me engana.

- Por favor, me leve de volta. Se não curte, tudo bem. Eu não te enganei. Falei antes.

Rochele estava ficando cada vez mais nervosa, mas não podia saltar do carro. Estavam na Rodovia da Convenção já, que liga Salto e Itu.

- Antes quando seu merda? Estamos quase lá e você me fala uma bosta dessas agora.

- Desculpe, mas eu não pareço mulher para você? Diga se não pareço? Eu sou perfeita.

- O problema não é se parece. Você não é, ele grita de novo e aperta o braço dela com força. – Você não é uma mulher, porra.

- Olha, pare o carro. Eu vou descer aqui.  Não importa. Depois eu dou um jeito de voltar.

- Ah, você não vai mesmo, ele diz segurando firme com uma mão no volante e a outra no braço de Rochele para garantir que ela não pule.

Rochele faz menção de abrir a porta para saltar com o carro em movimento mesmo assim e isto irrita ainda mais Juca.

Ele reduz a velocidade e começa a dar socos no rosto dela cada vez com mais força.

A reação faz com que Rochele pare.

Rochele chora copiosamente.

Ele ordena quando chegam ao drive:

- Pare de chorar, senão eu te mato.

Rochele engole o choro.

Os dois entram no drive e vão para o quarto.

Lá, Juca manda que Rochele se dispa.

Ela não quer, diz que não quer mais fazer programa com ele. Pede por favor para ele parar. Diz que não quer mais nada.

Juca nem ouve o que ela diz e retira um canivete do bolso. Vai para cima dela. Coloca a ponta da lâmina no lado esquerdo do rosto dela.

- Vamos logo que eu já estou de saco cheio.

Rochele tenta empurrá-lo para trás em um gesto impensado de autodefesa.

O gesto é suficiente para que Juca corte o rosto dela. Não é um corte profundo, mas sangra e a desespera, porque a partir dali ela não sabe o que acontecerá. Rochele se irrita:

- Seu desgraçado, você me cortou.

- Vou te cortar mais, se não colaborar.

Rochele se afasta dele, retira um esparadrapo da bolsa e gaze e consegue estancar o sangue.

Enquanto faz isto, Juca já se despiu.

- Venha aqui agora para terminar o que veio fazer aqui, ele grita com ela novamente.

Sem alternativa, a mulher atende.

Ele não está excitado para o ato, mas força-a a fazer sexo oral até ficar excitado.

Depois coloca-a de costas na parede e faz os movimentos com violência.

Assim que ele termina, ela corre para o banheiro porque sangra no ânus.

- Desgraçado, olha o que fez comigo. Você é um monstro. Um monstro.

A frase o faz se lembrar dos ataques na casa em construção do Jardim Maria José.

Isto o anima.

De repente, ele descobre um local.

A pousada poderia ser o novo lugar dos ataques e as vítimas poderiam ser as putas.

Juca se levanta da cama, veste as calças e vai até o banheiro com gestos bruscos:

- Ah, está magoada? Seu infeliz, você me enganou e ainda reclama. Olha aqui: não vou pagar nada, ouviu? Você não fez o serviço.

- O quê? Isso não. Você me estourou e ainda não quer pagar. Você não pode.

Rochele se levanta do vaso sanitário para protestar indo para cima dele.

Juca Pereira fica mais violento ainda.

Ele soca Rochele várias vezes.

Ela desmaia no próprio banheiro, que não é muito grande. Na verdade, um cubículo.

Juca carrega o corpo da mulher até a cama, veste-a e sai do quarto carregando-a.

A pousada não tem privacidade fora do quarto. Para não chamar a atenção, ele abraça a mulher como se estivessem apaixonados e a carrega até o carro. Coloca-a no banco do passageiro. Dá a volta e prende-a com o cinto.

A cabeça da mulher cai para o lado. Ele encosta o ombro e a apoia.

Na recepção, a mulher olha o casal com curiosidade, mas não pergunta nada.

Ao perceber o interesse da recepcionista, ele disfarça com uma explicação:

- Ela ficou cansada, coitadinha. Você está fora de forma amorzinho, diz ele batendo no rosto de Rochele devagar como se fosse um carinho.

Paga e vão embora.

- Mulher trans. Vou jogar você da ponte do Tietê. Vai aprender a não enganar ninguém.

Rochele não ouve o que ele diz.

Ainda está desmaiada.

Juca dirige até a saída de Itu para Jundiaí.

Volta para Salto pela Rodovia Dom Gabriel Paulino Bueno Couto, que liga Itu a Jundiaí.

Quando chega a uma região desabitada depois do Condomínio Monte Belo, já em Salto, ele sai da pista, entra em uma estradinha de terra, para e tira Rochele do carro.

Juca a coloca entre as pedras do lugar.

Antes de sair, toma o pulso dela e vê que não há pulso. Nenhum sinal.

- Será que essa louca morreu?, ele fala em voz alta, mas sem demonstrar preocupação.

O corpo está gelado.

Juca deixa o corpo lá e foge.

 

Quando o corpo de Rochele vai ser enterrado já é final de tarde do dia seguinte.

Juca acompanhara todo o noticiário.

Ele resolve ir ao enterro para ver o que falam. Quer saber se falam dele.

- Talvez devessem falar. Afinal, eu sou foda. Eles deveriam estar procurando um cara foda.

Várias pessoas comparecem ao velório e enterro. O caso chocou a cidade. Os socos que ele deu nela quebraram o crânio.

Parentes comentam e Juca ouve que a polícia já sabe que um homem esteve com Rochele na pousada em Itu e que a recepcionista fez uma descrição dele. Ela teria dito quem ele era.

Lembrava-se do nome e fez uma descrição para a polícia, porque achou estranha a forma como o casal chegou, pelo fato de ter ouvido gritos e depois pela maneira como eles saíram.

- A moça estava desmaiada.

A recepcionista só não entregara o número do documento dele. Não conseguira guardar. A pousada não fazia cópias. Só retinha durante o uso e depois devolvia ao casal.

Ao saber de tudo isso, Juca fica assustado.

Ele não quer ser preso.

 

À noite, Juca resolve ir à casa dos amigos que moram perto do cemitério.

Soneca diz que tem um novo lance para curtir.

- O que é?, Juca se interessa.

- Vamos invadir o cemitério. Tem umas mina que são góticas. Elas vão no cemitério de noite. Fazem umas coisas lá e depois vão embora. A gente vai, flagra elas, ataca e depois foge.

- Será?

- Claro que sim. Só para zoar. A gente leva o 38. Vão ficar morrendo de medo. Depois de dominar o grupo, amarramos os caras. Aí fazemos a lambuza com as mina.

- Tá legal. Vamo nessa. Hoje eu tô foda, disse Juca enrolando um baseado.

As ruas do cemitério estão vazias.

Um vento forte varre tudo.

- Sei não Sono. Estou achando que não tem ninguém aqui. Só morto mesmo. Hahahaha.

- Tem vivo sim. Calma.

Os dois vão andando entre os túmulos.

Não se importam com ninguém nem nada.

Ao passar por trás de uma construção mais ao fundo do cemitério, Juca pisa em um buraco.

Imediatamente, um vento gelado sopra forte em todo o cemitério. O céu se ilumina com raios que riscam o escuro. Em seguida, tudo fica escuro novamente e em silêncio.

- Merda.

- O que foi mano?, pergunta Soneca.

- Acho que pisei em merda.

- Deve ser das góticas. Estamos perto então. Vamos, vamos logo.

- Que gótica o quê? Quem vai cagar em um lugar desses? Eu preciso ver o que é. Meus pés estão pesando. Está muito sujo.

- Está muito escuro aqui. Não dá para ver. Vamos sair daqui então e ver no claro.

Soneca começa a correr.

- Vamos, vamos, vamos!

Juca tenta correr, mas não consegue.

A paralisia daquela noite do segundo pó voltara. Ele não sabe o que é. Não consegue andar. Ao tentar correr, ele cai.

Soneca já está longe.

Ele grita por ajuda. A voz não sai. As pernas estão presas. Parece que grudaram.

Juca se esforça para se libertar e nada.

De repente, ele se vê cercado por figuras estranhas com velas acesas nas mãos.

As figuras estão usando vestidos muito largos e turbantes e giram em torno dele como as baianas de uma escola de samba.

Há outros que carregam chifres na cabeça, usam tridentes e crânios para uma espécie de dança e também circulam o corpo de Juca.

Essas figuras, com grandes colares, brincos enormes e muitas pulseiras, cantam uma evocação enquanto fumam charutos:

- Prendam esse demônio e que todas as forças do mal não consigam impedir.

- Tirem as forças de fuga das energias maléficas que possam ajudar esse demônio.

- Nada podem contra o rei dos reis, jamais conseguirão ultrapassar o poder dele.

Juca não consegue entender o que está acontecendo e nem se livrar daquilo.

- Eu já sei: é tudo alucinação. Vai sumir. Vai desaparecer. É só eu não pensar nisso.

Aquela dança e aquelas rezas ocorrem mais alguns minutos e depois um silêncio se faz.

A seguir o vento forte volta a varrer tudo.

O vento enche os olhos de Juca de poeira.

Ele tenta se livrar dela para enxergar e não consegue. Os olhos ardem. Estão muito sujos.

Juca ainda está passando as mãos nos olhos quando sente uma luz forte em direção a ele.

Aos poucos ele vai conseguindo voltar a ver.

As luzes vêm da polícia.

Vários homens da polícia agora cercam Juca.

A paralisia passou.

Ele tenta correr para escapar, mas é cercado por homens armados que apontam para a sua cabeça. Não há saída para lugar nenhum.

- Você está preso Juca Pereira, grita um dos policiais que se aproxima mais.

Juca levanta as mãos e começa a olhar para todos os que cercam ainda tentando ver se consegue uma brecha para escapar.

Então enxerga uma mulher cuja fisionomia é familiar a ele: ela tem uma cicatriz no rosto.

Ela é Rochele.

- Que merda, você não morreu?, ele pergunta.

- Não, consegui escapar das suas garras. Fingi que havia morrido para que pensasse isso.

- Mas como? Eu chequei os seus pulsos. Não havia batimentos. Pare.

- Sou a enfermeira Isabel Miranda. Tenho treinamento para isso. Aprendi como controlar os meus batimentos e você é um idiota: não sabe ver batimentos. Por isso, te enganei.

- E quem foi enterrada no seu lugar?

- Uma mulher desconhecida. O corpo foi achado sem identificação. Combinei com a polícia. Sabia que ia pegá-lo. Os exus estão comigo e você, demônio, não pode escapar.

- Isso é o que veremos.

Juca chuta a arma de um dos policiais e apanha a arma do outro apontando-a para todos e começa a dar ordens:

- Deitem-se no chão. Agora quem dá as ordens aqui sou eu. Mas você Isabel ou Rochele, não importa, você eu vou matar.

Ele aponta o revólver para ela e ela começa a evocar os exus para defendê-la.

- Poderoso exu tranca rua do imbaré, exu veludo negro, exu caveira, exu da capa preta, exu da meia noite das almas, exu do lodo, eu vos invoco para que me ajudem a dar cabo desse lazarento, que não tem perdão...

Imediatamente, Juca volta a ficar sem reação.

Seu corpo fica paralisado outra vez.

Os policiais se recuperam e o prendem.

 

 

Anote isto

Encerro neste final de semana o projeto "Contos de Domingo", que visou mostrar neste espaço a cada edição, desde o início de janeiro, que um mesmo autor pode escrever histórias sob qualquer ótica. Trouxe aqui um conto novo com uma abordagem também nova em todos esses domingos (veja o conjunto já publicado no link https://eloydeoliveira.com.br/senta-que-eu-vou-te-contar-historias-contos-de-domingo). Hoje a história traz magia negra e terror, um estilo que mistura crenças, religiões e tradições. 

No conto, o personagem principal tem uma visão com uma criatura meio humana, meio morcega, com apenas um olho e um pênis gigante. Essa criatura é um dos demônios sexuais do imaginário popular que se nutre da vingança. Trata-se do Popogawa, que vem do folclore africano. Conta a lenda que esse demônio invadia casas para sodomizar suas vítimas, independentemente do sexo ou da idade. 

Imagem da Galeria Pais e mães de santo realizam trabalhos para afastar o demônio
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