O concurso

6 de outubro de 2020

O concurso

Data de Publicação: 6 de outubro de 2020 18:48:00 EXAGERO - Prestar uma prova válida para a seletiva de uma Prefeitura pode ser uma operação mais difícil do que responder as perguntas.

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SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO

Voltar às atividades depois de meses de confinamento pode ser mais complicado que parece. Sobretudo se for para prestar uma prova de concurso público. Mas nem tudo é passível de se conformar.

 

 

- Não feche essa porta em hipótese alguma, senão eu vou ter um treco aqui e você não quer isso, quer?

A ameaça partiu de uma mulher alta e magra, aparentando uns 50 anos, que usava uma blusa fina de alcinha, a qual permitia ver que tinha toda a costa tatuada, e que chegara atrasada para a prova seletiva do concurso público da Prefeitura.

Ao menos atrasada em relação ao horário imposto pela organização para separar os grupos, a fim de evitar aglomeração devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus.

Era a primeira vez que eu saía do confinamento para uma atividade coletiva desde que começaram os casos, mas não achava que o temor da doença estava nesse nível.

Imaginava que, se marcaram a realização da prova, as coisas já estivessem melhores aqui fora e pelo que vi não estavam.

Em seguida, a mulher tatuada justificou a ameaça.

- Estamos em uma pandemia. Não posso concordar que nos feche em uma sala para nos contaminarmos. Não vou aceitar.

Falava como se todos ali estivessem morrendo e ela estivesse exposta à morte por conta da atitude do fiscal.

Era o tipo que parecia gostar de uma confusão.

Os olhares de todos se concentraram nela e o homem mais próximo dela, do lado direito, já que eu estava logo atrás, um senhor de quase 70 anos, chegou a tentar ajudar na discussão, mas foi logo repreendido por ela com veemência.

- Também não é para tanto senhora.

- Se não é para você, para mim é. E ninguém aqui vai tirar o meu direito de protestar e de garantir a minha saúde.

- Calma, eu só iria fechar um pouco. O vento está forte demais e está prejudicando a sua colega aqui mais próxima da porta. Mas não quero que tenha um treco. Nem você nem ninguém aqui.

Confesso que não compartilhava da mesma calma do fiscal encarregado da sala, posto que a agressividade da mulher foi flagrantemente ofensiva e injustificada, além da arrogância.

A tentativa de fechar a porta surgiu depois que a candidata posicionada bem à frente da abertura teve todas as suas coisas atiradas ao chão pelo vento e tremia de frio.

Ao ver que a outra vencera a discussão com as suas ameaças, ela disse que queria então mudar de lugar.

- Isto não pode. As regras são de que não se pode mudar de lugar. Por isso, as carteiras são numeradas, disse o fiscal.

Foi aí que mais estive a ponto de explodir, afinal por que as regras do medo da pandemia valiam e as regras da lógica não?

Mas me contive.

Eu queria que a prova começasse logo.

A discussão se arrastava havia já uns 15 minutos.

O homem ao lado da mulher que iniciou tudo sugeriu ao fiscal que chamasse a coordenação para colocar um ponto final.

As outras pessoas fizeram algum barulho com a boca, do tipo rum-rum, sem dizer uma palavra compreensível, mas demonstrando que concordavam com ele.

Ele nos deixou sozinhos e foi.

Minutos depois estava de volta com as decisões.

- A coordenação me disse que não posso fechar a porta e que você, dirigindo-se à mulher na frente da porta, pode mudar de lugar em razão do vento, excepcionalmente por isso.

A mulher que havia reclamado do vento virou-se para ele e disse:

- Não quero, não preciso mais.

Todos se entreolharam sem entender.

Talvez ela quisesse protestar também pela vitória da ameaçadora e tivesse resolvido mostrar que era forte.

Eu não entendo essas pessoas: nem as que se colocam fracas diante de tudo nem as que fazem o contrário.

Como a prova não começava, resolvi olhar em redor.

Queria ver quem estava presenciando tudo aquilo comigo.

Ao meu lado direito, uma jovem tinha duas garrafas de água de meio litro, quatro chocolates e ainda um pacote de biscoito.

Esta levou a sério a recomendação de que deveria se hidratar e se alimentar corretamente durante a prova.

Mas não era a única.

Atrás de mim, mais ao fundo da sala, um rapaz trouxe uma vasilha plástica com manga cortada em pedaços, suco de laranja e uma goiaba inteira, embalada em um guardanapo colorido.

A mulher atrás da que resistia ao vento estava com melancia cortadinha também em uma vasilha plástica.

As pessoas pareciam ter vindo para um piquenique em vez de prestar uma prova, que, aliás, duraria no máximo 3h30.

Na ponta da sala, do lado oposto da entrada, uma menina ainda, devia ter uns 18 anos se tanto, mas parecia 13, reclamou com o fiscal que a carteira onde estava não tinha espaço embaixo para guardar tudo o que havia trazido: ela estava com três celulares, uma bolsa enorme, quase uma mala para viagens curtas, um chapéu estiloso e um pente com alguns grampos.

Tudo afora a comida: dois chocolates, duas maçãs e um suco.

Devia ser de longe para ter trazido tanta coisa, pensei.

Olhei para mim e tudo que tinha era uma caneta preta.

Será que eu é que estava errado?

Não tive tempo de me dar uma resposta.

Minha viagem observadora foi interrompida bruscamente pela mulher que ameaçara o fiscal por causa da porta.

- Você não vai começar a prova? Temos horário e não está sendo cumprido. Isto atrasa tudo o que programamos.

- Eu estou resolvendo os problemas antes de iniciar. Não se preocupe que descontarei esse atraso no final.

- Sim, mas vai atrasar a nossa saída.

Pensei em dizer: se você não tivesse criado tanto problema por causa de uma porta fechada, já estaríamos no meio da prova, mas me contive mais uma vez, porque tinha decidido ficar calmo.

Não é fácil cumprir esse tipo de promessa.

O que mais me irritava era a calma do fiscal.

A ameaçadora então tirou a máscara que cobria quase todo o seu rosto, o que não foi nada agradável a quem, como eu, teve de assistir a sua exibição (ela tinha a boca torta e um nariz enorme), e para quê? Para comer também. Ela tinha trazido uma marmitinha de plástico com uma salada de frutas.

A mulher colocou a colher em cima da carteira para abrir a vasilha e depois enfiou-a na salada e em seguida na boca.

Agora eu me pergunto: e ela estava com medo da porta?

Deu muita vontade de falar isso a ela, mas me contive de novo.

Além disso, a prova ainda não tinha começado.

O atraso já era de meia hora.

Se eu não falei, o fiscal finalmente não deixou por menos.

- Estava tão preocupada com a contaminação e agora coloca a colher na carteira e depois na boca?

- E o que você tem a ver com isso? A sua obrigação aqui é aplicar a prova, coisa que até agora não fez.

O homem ao lado da ameaçadora interveio:

- Você é muito, mas muito insuportável.

- E você é muito, mas muito intrometido. Por que você não cuida da sua vida? Eu perguntei por que você usa esses óculos ridículos?

Eu comecei a falar, porque não aguentei aquela situação, mas não cheguei nem a pronunciar uma frase sequer.

O fiscal já tinha se colocado na frente dela e disse:

- Você não vai dizer mais nenhuma palavra. Estamos entendidos? Tudo que já falou e já fez aqui já foi demais.

A mulher olhou para ele com uma raiva que não cabia nela.

Os olhos tremiam e piscavam sem parar.

Ela bufava, apertava os punhos e acabou quebrando a caneta que apanhou da carteira como se quisesse quebrar o fiscal.

O instante de paralisia foi rápido, mas pareceu interminável.

E acabou com ela se levantando, atirando os pedaços da caneta no chão e saindo com a pressa que não teve para chegar.

- Vou reclamar de você para a organização do concurso.

- Se eu perder o meu emprego, você não mora mais comigo, disse ele com a mesma calma de antes.

 

 

FIQUE SABENDO

Todas as terças e quintas tem uma crônica nova neste espaço.

Imagem da Galeria Para prestar uma prova é preciso ter calma e muito boa vontade
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