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Não se lembra de mim?
Nesta crônica, conheça a história de um casal de desconhecidos ou de muitos conhecidos e um exercício de construção de diálogos.
Ela se assustou com aquele homem estranho, mas ele dizia com tanta segurança que a conhecia que ela chegou a duvidar.
- De onde você surgiu?, ele perguntou tocando o ombro dela como se a conhecesse.
- Quem é você?, ela disse se afastando.
- Não se lembra mais de mim?
- Eu deveria?
- É claro que deveria. Afinal, estive com você todo esse tempo. Eu te ajudei quando precisou.
- Você é louco ou o quê? Como eu não me lembraria de alguém que tivesse me ajudado?
- Olha, eu não sei por que razão não se lembra, mas estive com você sempre.
- O que quer comigo?
- Quero que se lembre de mim primeiro.
- Não me lembro, desculpe.
- É assim então?
- Assim como?
- Não se lembra e me descarta na rua, como se eu não fosse nada?
- O que quer que eu faça?
- Eu já disse: que se lembre de mim.
- Mas eu não me lembro. Não tem como eu me lembrar. Olha, siga o seu caminho. Eu tenho compromissos e preciso ir embora.
- Seus compromissos não me incluem mais?, ele diz com voz chorosa.
- Eu acho que nunca incluíram.
- Você é insensível, ingrata e egoísta, ele grita.
- Nossa, o que mais? Diz que nem me conhece e já me desanca desse jeito? Eu sou tão má assim?
- Desculpe, ele disse tentando consertar.
- Você deve ter algum problema sério de autoestima ou de solidão, eu não sei.
- É claro que tenho problemas de autoestima e de solidão. Você me abandonou e desapareceu no mundo. Você me apagou do mundo, do seu mundo. Como eu poderia me sentir agora?
Os olhos dele brilharam quando falava.
Em seguida se encheram de água.
- Eu não fiz nada disso. Eu não te conheço. E nem quero conhecer alguém assim como você.
- Você me despreza então?
- Como é difícil. Eu não te desprezo. Você é até um homem bonito. Mas eu não quero nada com você. Será que dá para entender?
- Você gostou do meu cabelo?
Ele mostra o rabo de cavalo prendendo os fios lisos e totalmente loiros.
- O que tem o seu cabelo?
- Você pediu para que eu o cortasse e arrumasse assim, porque pareceria com aquele ator de que gosta que tem os olhos azuis.
- É, não está mal. Talvez se você deixasse ele crescer mais ficasse melhor. Mas eu não pedi.
Ela percebe no final da frase que estava sendo mais condescendente do que devia.
- E da minha roupa, você gostou?, ele não dá tempo para que ela pense.
- Do jeans? O que tem a sua roupa?
- Você pediu que eu usasse jeans. Disse que eu era muito careta. Eu mudei por você.
- Estou sensibilizada, mas, cara, eu preciso ir.
- Você não vai perguntar se eu consegui o trabalho? Você estava tão ansiosa por isso. Não está mais preocupada?
- Eu nunca estive preocupada com o seu trabalho, porque eu não te conheço, ela disse as palavras soletradas com um certo mau humor.
- É muito triste que uma pessoa com quem a gente esteve o tempo todo e que fez tudo por ela, que essa pessoa não se lembre mais da gente, outra vez a voz chorosa.
- Meu Deus do céu, o que você tem?
- Saudade.
- Ah vá para o inferno.
- Foi o que você disse quando foi embora.
- E por que você não foi?
- Porque eu te amo e você é um anjo. Como eu viveria no inferno sem o meu anjo?
- Essa é pracabar mesmo. Olha, foi bom te conhecer, mas estou indo agora. Você deveria fazer teatro. É um bom ator.
- Foi o que você disse quando eu não arranjava trabalho. Disse que devia procurar uma companhia de teatro e exercitar a profissão que abandonei quando nos conhecemos.
- O quê? Você era ator e abandonou a profissão por causa de outra pessoa? Por quê?
- Porque eu te amo, eu já disse. Eu fiz e faço tudo por você. Quando a gente ama alguém, a gente faz de tudo por essa pessoa.
- Ah que lindo, mas não foi por mim que fez isso não. Está enganado com certeza. Acho que está querendo aplicar um golpe, não é? Não vou cair na sua não. Perdeu seu tempo playboy.
- Sempre achou que eu não deveria fazer nada por você. Se achava feia, gorda. Tinha vergonha de ficar nua perto de mim. Mas eu disse que você era linda e você continua linda ainda.
- Ah é? Qual é o golpe? O que está querendo?
- Eu já disse: que se lembre de mim.
Virando os olhos impaciente:
- Mas eu não me lembro. Sabe, você não é uma pessoa ruim. Ao menos não me parece. Eu até gostei de saber que alguém faz tudo isso por outra pessoa como disse. Mas, amigo, eu preciso ir. Tenho um encontro agora. Não posso me atrasar. Desculpe. Tente com outra pessoa.
- Vai se encontrar com o Roberto?
Coincidentemente, era com um Roberto que ela se encontraria e ela se espantou com isso.
- Como sabe?
- Você me trocou por ele e foram morar longe daqui. Mas eu não te esqueci e sabia que voltaria.
- É esse o golpe então?
- Que golpe?
- Você pesquisou a minha vida e tenta se passar por alguém que eu conheço. Olha, não vou te dar cartão de crédito, dinheiro, nada. Não adianta me ameaçar e, se fizer isto, vou gritar.
- Eu não vou fazer isso.
- Não?
- Não.
- O que quer então?
- Eu não vou repetir.
Disse e se virou de costas para ela, começando a caminhar em silêncio.
Ela ficou intrigada.
Não entendeu o que aquele sujeito queria.
Bom, fosse o que fosse, não conseguiu, ela pensou. Virou-se de costas para as costas dele e começou a caminhar na direção oposta.
Foi quando ouviu o estrondo.
Um barulho alto de um atropelamento.
Olhou e teve certeza: o sujeito acabara de ser atropelado ao atravessar a rua.
Ela ficou com pena.
Voltou até perto da roda de pessoas que cercavam o corpo espantadas com a violência da batida: ele estava todo ensanguentado e morto.
Ao vê-la, uma mulher disse:
- Deixem que ela passe: é a mulher dele.
Ela olhou em volta e constatou que a estranha falava dela mesma e, mesmo olhando com pena dele, não se lembrou daquele homem.
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