Não desistamos do bom jornalismo

4 de dezembro de 2020

Não desistamos do bom jornalismo

Data de Publicação: 4 de dezembro de 2020 10:25:00 Este episódio retrata bem como os políticos são tratados pela imprensa, mas sempre é possível quebrar paradigmas e preconceitos.

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SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO

Existe uma máxima dentro de redações, principalmente no interior, de que se é político, é culpado. Nem sempre isto é correto, mas, ainda que fosse, não é justo condenar ninguém sem a possibilidade de defesa.

 

 

Se é político, é culpado.

Essa é a tese mais repetida em redações, principalmente no interior, onde mandam normalmente os interesses locais.

Não digo que se condene sumariamente.

Ou que não se dê o direito de defesa.

Atendem isto sim, mas tentam de todas as maneiras fazer parecer que o político é culpado.

Também não estou aqui defendendo político.

Sei bem dos erros que cometem e da forma como tentam manipular a imprensa.

Nessa questão os dois lados têm responsabilidades pela forma como agem.

No final, sobra para quem trabalha na assessoria ou na consultoria de políticos.

A estes cabe mudar essa história.

Eu já vivi os dois lados desse balcão e sei bem como ambos agem e quanto atacam a verdade.

 

Certa vez, em 2009, quando fazia a assessoria do então deputado federal Renato Amary (à época no PSDB), vivi um conflito do tipo.

O jornal Cruzeiro do Sul, o maior de Sorocaba, base eleitoral do deputado, ainda engatinhava nas suas edições pela internet.

Nesse período, para mostrar que tinha visibilidade, a cada publicação o jornal colocava embaixo o número de acessos que conseguia.

Os acessos eram minguados.

Não chegavam a cem na maioria das vezes.

Mas toda vez que divulgava algo sobre Amary, os acessos saltavam para mais de 1,2 mil, o que fazia o deputado um tema interessante.

As publicações sobre ele bombavam, fossem quais fossem os assuntos abordados.

 

Renato Amary foi prefeito de Sorocaba por dois mandatos e exerceu governos profundamente ativos no que se refere à tomada de decisões, mudança de conceitos e quebra de paradigmas da história política.

Há quem diga que existe uma Sorocaba antes e outra depois dos governos dele.

Por conta desse arrojo, o então deputado angariou uma série de processos oriundos em vereadores de oposição e no Ministério Público.

Então, quando deputado, um dos assuntos mais recorrentes sobre Amary eram os processos, sempre saindo uma decisão aqui ou acolá e toda a repercussão que envolvia.

 

Nesse caso que relato especificamente, uma repórter do Cruzeiro, Telma Silvério, me procurou para que desse a versão do deputado a respeito das acusações do processo.

Ela já o havia procurado diretamente e ele não atendera a reportagem.

Por essa razão constava da notícia, que bombara na internet, que o deputado fora procurado, mas não respondera.

Tínhamos a chance de responder para fazer constar do texto na internet a defesa e fundamentalmente para constar no impresso.

Fui ao deputado com o tema e o vi sair de si.

A irritação dele era compreensível: ele sabia que seria colocado como culpado no jornal, não importando o que apresentasse como defesa.

Por essa razão, ordenou que não respondêssemos, que ignorássemos.

Disse a ele que não era o caso.

Tínhamos de apresentar a defesa sim, afinal o jornal nos dava o direito a isso e este é um direito inalienável da boa imprensa.

Ele me disse:

- Então veja as outras edições em que fui acusado sobre algum processo.

Deixei o deputado sem responder e fui ver as edições do mesmo Cruzeiro do Sul.

Lá estavam diversas reportagens retratando todas as acusações, o que gerava inclusive o título dos textos, e as defesas dadas pelo deputado sempre apareciam em algumas linhas ao final do texto, sem qualquer título.

 

Era sobre isso que falei no início.

Não se condenam o político sumariamente, mas o colocam de uma maneira que ao leitor a culpa lhe caía de alguma forma.

Afinal, estatísticas mostram que a maioria das pessoas não vai ao final do texto e muitas sequer passam do segundo parágrafo.

A atitude do jornal tornava a defesa do deputado totalmente sem propósito mesmo.

Não importava se ele era culpado ou não.

O problema ali é que não se dava a ele o direito de se defender e nem ao leitor de poder fazer a sua própria interpretação.

Se é político, é culpado.

Voltei ao deputado e ponderei que tínhamos de mudar essa situação e que eu faria isto.

Ele concordou a contragosto, mas concordou.

 

Procurei Telma Silvério e lhe disse que o deputado poderia dar a sua defesa, mas que eu gostaria que ela tivesse o mesmo peso das acusações, posto que era um direito dele de se defender e um direito do leitor saber da defesa.

Pedi que a defesa tivesse um título à parte do texto das acusações e que a chamada da capa mencionasse no primeiro parágrafo o teor da defesa, de modo que, se o leitor não passasse da capa ou se não passasse do segundo parágrafo na página interna, mesmo assim, ele saberia qual era a defesa do deputado.

Ela concordou comigo, mas advertiu que não era ela quem decidiu. Isto ficava a cargo da edição e poderia ser que não dessem ouvidos ao meu pedido, até porque ela nem sabia quem editaria o texto à noite, depois que saísse.

Além disso, não era hábito do jornal dar esse tratamento para a notícia de acusação contra políticos, como eu mesmo já havia sabido nos arquivos que o deputado me mostrara.

De qualquer forma, pedi que apresentasse as minhas considerações aos editores e que redigisse o texto da forma equilibrada sobre a qual conversamos, tendo em vista que havia uma explicação para todas as acusações.

Telma concordou e fez isto.

 

Para surpresa de Renato Amary, no dia seguinte o Cruzeiro do Sul estampou a notícia principal com as acusações e o texto da capa já trazia no primeiro parágrafo a defesa.

Na página interna, as explicações do deputado ganharam um título à parte do título com as acusações e quem quer que tenha visto essa reportagem da Telma Silvério ficou sabendo das acusações, mas também da defesa.

O texto bombou como sempre.

Evidentemente, a notícia não era boa para o deputado e o meu trabalho não mudara isto, mas essa ação quebrou um paradigma no jornal.

Foi importante para mostrar que é possível fazer jornalismo sério e equilibrado no interior, em que pesem os interesses locais.

Fiquei muito feliz com o tratamento do jornal.

Em razão disso, enviei uma mensagem à direção e à Telma Silvério pelos bons serviços, ainda que a reportagem não fosse boa para o meu cliente e recebi de volta a informação de que quem editara o texto fora o Marcel Stefano, professor da universidade local e um grande jornalista que tive o prazer de conhecer e com quem trabalhei posteriormente.

Ele me disse que concordava comigo sobre a forma de tratar a notícia e que acreditava que aquele meu pedido mudaria os procedimentos do jornal nas próximas vezes.

Esse é o grande presente dessa ação.

 

 

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