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Minha vida virou um inferno
Data de Publicação: 4 de outubro de 2020 15:22:00 TORMENTO DO PASSADO - Um homem perturbado por uma sombra e um amor digno de filme estão neste episódio que integrará o livro.
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
Como alguém pode viver um amor com uma sombra o perseguindo? Como alguém pode odiar tanto a ponto de querer matar? A vida tem surpresas que são capazes de mudar tudo. É isso o que nos prova Amadeu Silva.
Quando se deu conta de que acompanhara o caminhar daquela mulher sem nem respirar, Amadeu Silva se sentiu enfeitiçado.
Como podia esquecer de tudo para contemplar uma bunda, afinal era apenas isto que olhara e no que se perdera todo aquele tempo enquanto Sara Martins passava?
Ele se indagava confuso, mas ainda continuava observando enquanto ela se distanciava devagar, mantendo os movimentos iguais aos que quase o hipnotizaram quando cruzara a sua frente, os movimentos involuntários de jogar os quadris hora para a esquerda e hora para a direita.
Sara, uma mulata de um metro e setenta de altura, com seios e bunda proeminentes, sabia que atraia olhares masculinos.
Ainda mais usando uma saia rodada com estampas florais, pouco acima dos joelhos, que dava mais volume aos seus dotes naturais.
Mas estava acostumada aos flertes, tanto que não dava mais nenhuma atenção nem aos olhares nem aos comentários que ouvia ao passar por ali todas as manhãs, no centro de Londrina, no Paraná, a caminho do trabalho.
Ainda mais hoje quando estava com os braços cheios de pastas e sacolas que até dificultavam o seu caminhar.
Vários homens ficavam na pracinha próxima à Pousada das Flores, na rua Fernando de Noronha, perto de um ponto de táxi.
O local era bem arborizado e fresco, bom para os dias de calor como o que fazia, embora não recebesse cuidados da Prefeitura.
Vez por outra se podia sentir o fedor de galinheiro deixado pela infestação de pombos que vivia ocorrendo pelo local.
Era um cheiro tão forte que tornava quase impossível transitar pelos arredores, mas, felizmente para Amadeu, Sara e os demais que se aglomeravam ali, não era o caso agora.
A pracinha reunia desocupados, aposentados e os motoristas de táxi, geralmente envolvidos com o jogo de truco, mas frequentemente com o fim de observar mulheres que passavam em direção ao trabalho no comércio próximo.
A passagem de Sara Martins mexera com a libido do grupo de tal modo que, quando um vento repentino levantou a saia dela, expondo um body cavado todo rendado que substituía a calcinha, ela quase foi atravessada pelos olhares e não só isso: todos se aproximaram rapidamente meio que hipnotizados.
Ato contínuo ao quase ultraje promovido pelo vento, Sara soltou as pastas e sacolas e usou as mãos para abaixar e segurar a saia aonde ela deveria ficar não fosse o incidente.
Ao perceber a situação, Amadeu Silva saiu do transe em que entrara quando a viu passar e foi rapidamente em seu socorro.
Ele tirou a blusa dos ombros e deu a ela para que se cobrisse e passou a apanhar as pastas e sacolas enquanto gritava aos outros homens:
- Afastem-se, afastem-se. Estão pensando o que seus tarados? O primeiro que avançar vai haver-se comigo, disse fechando os punhos para indicar que não brincava com eles.
Sem ter uma decisão exata do que pretendiam, a não ser se sentirem puxados pelo sex appeal da moça, todos recuaram.
- Obrigada, ela disse com uma voz tão doce quanto a sua imagem que já o inebriava antes.
- Não foi nada. Esses caras precisam de um corretivo. Onde já se viu avançarem contra alguém como você? Não podia deixar.
- Passo aqui todos os dias e sempre é assim. Eles não têm modos. Mas se restringem a olharem e a fofocarem obscenidades um ao outro. Nunca avançaram como hoje.
- Creio que também nunca aconteceu um vento tão traiçoeiro como esse, não é?
Ela riu da observação.
- Com certeza não. Me senti nua.
- Mas estava linda, me desculpe.
Olhando-o com admiração, Sara releva.
- Não se preocupe. Elogios são sempre bem-vindos. O que ninguém gosta é abuso.
- Tem razão.
- Você é novo por aqui. Não me lembro de tê-lo visto antes. Estou enganada?
- Não, não está. Cheguei hoje. Estou hospedado na Pensão das Flores, ali na praça.
- Eu conheço, aquela do toldo duplo azul.
- Vim de Uraí, município desmembrado da cidade de Assaí e colonizado por japoneses. Vivia da agricultura lá. Agora vou trabalhar no hotel de um advogado amigo.
- Ah que ótimo. O hotel é por aqui?
- Não sei. Ele se chama Crystal Palace. Ainda preciso encontrá-lo. Sai só para reconhecer os arredores e por estar muito calor.
- É pertinho sim. Fica na Rua Quintino Bocaiúva. O dono lá é o Tavares.
- Sim, Manoel Tavares. Você o conhece?
- Conheço sim. É um advogado respeitado aqui. Viúvo e rico, ela esboça um sorriso.
Amadeu também ensaia o riso para ser simpático à observação dela.
- Bem, você estava indo aonde? Posso acompanhá-la para ajudar com as pastas, ele diz para continuar a conversa.
- Que gentil da sua parte, mas não precisa, ela devolve a blusa dele, agora que o vento passou.
- Eu faço questão.
- Está bem então. Eu estava indo à Pizzaria Donatello. Fica aqui pertinho.
- Me mostra o caminho.
Os dois seguem em direção à pizzaria e continuam conversando como se já se conhecessem há muito tempo.
Sara Martins entra primeiro no restaurante.
Quando coloca os pés no local atrás dela sorridente, Amadeu Silva leva um soco no meio do nariz sem nem ter tempo de perceber de onde veio e nem o porquê da agressão.
O impacto é tão forte que ele desaba no chão. O agressor não espera que se recupere. Parte para cima dele com chutes e pontapés.
Amadeu não é de briga e nem sabe muito como se defender, embora tivesse afrontado o grupo de desocupados da praça.
Mesmo assim, ele consegue se erguer e passa a agredir também o homem que o atacara.
Com seu um metro e setenta, Amadeu não é forte nem ágil, mas tem um soco bom de esquerda e é isto que tenta ao se erguer.
Sara grita, pede socorro, quer que parem.
Eles rolam no chão sem ouvi-la.
O agressor é muito maior que Amadeu. Devia ter um metro e noventa de altura e, junto à habilidade para dar socos rápidos, tem braços fortes e punhos duros. Em poucos minutos, o rosto de Amadeu está todo ensanguentado.
Sem conseguir impedir a agressão, Sara Martins pega um vaso pendurado logo à entrada e o ergue com alguma dificuldade, pelo peso, para despejá-lo na sequência com toda a força na cabeça do agressor de Amadeu Silva.
O peso do vaso e a força empregada por ela são suficientes para desmaiá-lo.
Em seguida, Sara vai em socorro de Amadeu.
Ele se levanta sem entender.
Ela pergunta se ele está bem.
- Mais ou menos. Que cara louco. Não fiz nada. Você o conhece?
- Sim, é melhor você ir embora. Se ele acordar e o vir aqui, vai recomeçar tudo.
- Vou chamar a polícia, isso sim.
Ele olha para o homem desmaiado e nota uma cicatriz na bochecha esquerda, provavelmente fruto de alguma outra briga.
- Não, por favor. Não faça isso. Ele é daqui. Vai me atrapalhar no trabalho.
- Está bem então. Nem deu tempo de pegar o seu telefone. Saber o seu nome.
- É Sara, Sara Martins. Vá agora, por favor. Depois nos falamos.
- Eu sou Amadeu Silva. Promete que vamos nos falar depois?
- Sim.
Amadeu obedece e deixa o local como entrou: sem saber o porquê foi agredido.
Já era noite quando a recepção da Pousada das Flores informou que havia uma mulher procurando por Amadeu Silva.
- Quem é?, ele quis saber antes de descer.
- Disse que se chama Sara Martins.
- Diga que estou descendo.
Rapidamente, o homem já estava na frente da mulata que ainda estava com aquela saia rodada e ele mentalmente pensou que ela também estava com aquele body cavado.
Amadeu Silva suspirou ao vê-la.
- Como você está? Meu Deus, está muito machucado. Eu lamento pelo que aconteceu.
- Você não teve culpa. Não se preocupe. Mas quem é aquele maluco?
- Não vamos falar dele. É uma pessoa triste. Não vale a pena sequer pensarmos nele.
- Está bem. Eu fiz alguns curativos. Está feio, mas está sob controle. Amanhã já vou estar novo em folha outra vez.
- Precisa fazer os curativos direito. Você não deve ter aí uma maletinha de primeiros socorros. Mas posso comprar alguma coisa na farmácia aqui da praça e eu faço o curativo.
- Está bem então. Vamos lá. Eu te acompanho. Mas antes vamos tomar sorvete?
- É uma boa ideia. Está muito calor hoje.
Os dois caminham juntos e seguem conversando como velhos amigos. O entrosamento entre eles é impressionante.
Durante o passeio, Amadeu Silva conta a ela que é de Sorocaba, no interior de São Paulo.
- Eu conheço Sorocaba. É uma cidade linda. Nunca fui lá, mas vi fotos ótimas.
- Um dia vou te levar lá.
- Por que veio parar em Uraí?
- Nasci em Sorocaba e queria mudar de vida. Vim para cá para trabalhar com japoneses que conheci em São Paulo. Sou multiprofissional. Além de agricultor, sou pedreiro e também faço consertos eletrônicos. Na verdade, sou curioso.
- Entendi.
Quando retornam à pousada, Amadeu Silva pede que ela suba ao seu quarto para fazer o curativo e Sara Martins aceita.
No quarto, eles não param de conversar.
Amadeu mostra fotos da sua família em Sorocaba, da mãe, da irmã e do marido da irmã. Os três estão em uma casa que ele diz ficar no Jardim Brasilândia, na zona norte.
Ele conta sobre o São Bento, time para o qual ele torce desde pequeno, mas que não vai bem há um bom tempo já. Fala de política. Mostra fotos da praça central, da Feira da Barganha.
Finalmente, ele se senta em uma cadeira para que ela faça os curativos.
Ao sentir o rosto de Sara próximo o suficiente dele, Amadeu enlaça o braço no seu pescoço e a puxa para si, dando-lhe um beijo na boca.
Ele esperava que ela o repelisse e ficasse muito brava com a ousadia, mas, em vez disso, Sara correspondeu ao beijo e o abraçou também, apertando-o forte contra o peito.
O beijo se repetiu, os abraços foram ficando mais apertados, as mãos se perderam.
Ao se darem conta, os dois estavam na cama.
Com um urro forte, ele terminou.
- Como você é maravilhosa. Eu estou completamente doido por você.
Ao terminar a frase, Amadeu Silva a beijou docemente nos lábios ainda úmidos do amor frenético que acabaram de fazer.
Sara Martins sorriu terna também.
Os corpos nus rolaram na cama se alternando quem ficava em cima e quem ficava embaixo.
Cerca de meia hora depois, Sara se vestia.
- Preciso ir agora, meu querido.
- Está bem, mas vou levá-la. Está tarde. Pode ser perigoso. Amadeu começa a se vestir.
- Não, não será preciso. Vou tomar o ônibus aqui na frente. Não tem perigo.
- Tem certeza?
- Sim, meu querido. Fique tranquilo.
Ela já está na porta e assopra um beijo.
Amadeu corre até ela e a beija sôfrego.
Ao abraçá-la e soltar as mãos das calças, elas caem aos seus pés mostrando-o de cueca.
- Vamos recomeçar?
Sara sorri doce.
- Não, não agora não, meu querido. Tenho de ir mesmo. Depois nos falamos.
- Por falar nisso, você não me deu o seu telefone ainda, não é mocinha?
Ele aperta a cinta prendendo a calça.
- Está bem, anote.
O homem procura um papel e não encontra.
- Deixa eu colocar no celular mesmo.
O dia amanhecia mais fresco que o anterior.
Amadeu Silva desperta com os ruídos da rua que sobem à sua janela, no terceiro andar, como se a distância não existisse.
A cidade acordava cedo no centro.
Ele descobria essa realidade de uma maneira não muito agradável, pois queria dormir mais.
Entravam pela janela sons de várias vozes falando ao mesmo tempo, movimento de carros, freadas bruscas, buzinas.
Apesar de despertado cedo, Amadeu se sentia um rei. Não tinha acontecido nada para isso, mas se sentia assim por causa de Sara.
Ele ainda se lembra dos carinhos, do quanto ela era sexy nua, do que ela lhe falou durante o amor que fizeram e o quanto o prendeu.
Aquela mulher o deixara de queixo caído desde o primeiro momento em que a viu.
Ia ser boa a sua estadia em Londrina, ele pensava enquanto se espreguiçava.
- Tomara que o dr Manoel Tavares seja um bom patrão. Se for, estarei no céu, ele diz em voz alta enquanto caminha pelo quarto.
No mesmo instante, a tempo de ouvir a frase, o homem que o agredira no dia anterior arromba a porta e responde à fala:
- Você vai é para o inferno.
O invasor empunha uma pistola na mão direita e ainda se livra dos pedaços da porta antes de fazer mira contra Amadeu.
O susto quase lhe causa um infarto.
- O que é isso?, ele grita com o estranho.
Atrás do homem vêm funcionários da pousada para tentar detê-lo.
Mas ao ver que está armado, eles se afastam.
O invasor entrou na pousada procurando por Amadeu e, quando soube em qual quarto estava, subiu pelas escadas sem permissão.
Amadeu Silva não sabia o que fazer, mas não queria morrer. Por isso, tomou uma decisão radical: pegou a cadeira e a jogou sobre o invasor. O gesto pegou o homem de surpresa e derrubou a pistola da sua mão.
Ao mesmo tempo, Amadeu partiu para cima dele desferindo socos sem parar.
O problema é que o invasor era mais forte que ele. Ao perceber que ganharia a briga, ele deixou a pistola de lado e tentou acabar com Amadeu com as próprias mãos.
O estranho não parava de desferir socos e pontapés contra Amadeu. Até que os funcionários da pousada voltaram. Eles tentaram segurar o homem sem sucesso.
- Eu vou te matar, seu desgraçado, ele dizia.
- O que eu te fiz, seu maluco?
Amadeu tentava entender por que apanhava tanto como já acontecera no dia anterior.
- Ainda pergunta? Você vai aprender a não mexer com a mulher dos outros. Vai aprender da pior forma que se aprende: sangrando.
- Você está louco. Eu não mexi com mulher de ninguém. Estou aqui há um dia.
- E não vai viver para outro dia.
O invasor estava enfurecido.
Os dois rolam pelo chão trocando socos e pontapés, mas a diferença de tamanho e de força é nítida e Amadeu vai perdendo.
Quando consegue se erguer, Amadeu apanha uma arara com roupas e joga sobre o homem. Com isso, ele tem tempo de se dirigir à janela, que é a saída mais próxima do quarto. Ele pensa em se atirar por ela para escapar, esquecendo-se de que está no terceiro andar.
Mas o invasor não pretende deixar.
Ele se livra da arara e corre na direção de Amadeu para segurá-lo antes que pule.
Ao perceber que não dará tempo, o homem se atira na direção de Amadeu.
Em um reflexo que nem ele imaginava que tinha e que o agressor não esperava, Amadeu se abaixa e o estranho atravessa a janela.
- Meu Deus, disse um dos funcionários.
Os dois e Amadeu vão até a janela para ver.
Esperavam que o agressor tivesse se esborrachado no chão e tirado aquele carma da vida dele, Amadeu, definitivamente, mas não.
O invasor caiu em cima do toldo duplo azul da entrada da pousada, atravessou a lona e caiu no chão. O amortecimento da queda o livrou de morrer. De qualquer forma, quebrou as pernas.
Os funcionários da pousada testemunharam a favor de Amadeu Silva, informando que o estranho é quem invadira o quarto armado e que tentara matar o hóspede.
Com isto, Amadeu ficou livre de responder pela queda e pelos estragos na pousada.
A ambulância já tinha levado o estranho quando Sara Martins chegou apressada para saber de Amadeu Silva. Encontraram-se na rua, à entrada da Pousada das Flores.
Os dois se beijaram na boca, embora ele estivesse bem mais machucado que antes.
- Aquele maluco apareceu aqui e me agrediu de novo. Eu não sei qual é a desse cara. Eu nem o conheço e ele vem me atacando.
- Eu sei.
- Ele apareceu com uma pistola aqui. Queria me matar. Lutamos e ele acabou caindo da janela. Eu não tive culpa, mas foi bom.
- Eu sei.
- Como sabe? Você nem estava aqui?
- Aquele homem se chama Valdir Antunes. Ele era o meu namorado. Eu acompanhei quando caiu da janela e quebrou as pernas.
- Espera lá. Você está dizendo que aquele cara era seu namorado? Mas ontem nós...
- Não, ele não era mais meu namorado. Terminamos já tem um tempo. Mas ele não aceita. Ele te agrediu ontem e veio aqui hoje por causa disso. Não aceita que ninguém se aproxime de mim. Eu terminei por causa da violência dele. Não gosto.
- Entendi, agora entendi por que apanhei. Mas, se foi por você, fico feliz. Foi por uma boa causa. Esse desgraçado vai ter o que merece.
- Não, não, por favor. Eu não acho que deva enfrentá-lo. Ele comanda uma gangue. Ele é perigoso. Você está correndo perigo. Desculpe.
- Sara, eu não posso aceitar que esse cara me impeça de me aproximar de você.
- Eu acho melhor a gente dar um tempo.
- Como dar um tempo? Nós começamos ontem. Então não vai mais me ver?
- É só por um tempo.
- Não, eu não aceito.
- Ouça, é preciso. A gangue dele virá atrás de você. Não dá para enfrentar essa gente.
- E o que vamos fazer?
- Eu vou para Curitiba na casa da minha irmã. Vou ficar lá um tempo. Depois vemos o que fazer. Por favor, espere só um pouco. Uma ou duas semanas. Até as coisas se acalmarem.
- Eu não sei.
- Ouça o que eu digo. Faça.
Os dois se despedem e Amadeu volta para a pousada. Ele arruma a mala, mas não está convencido. Desce, deixa a mala na recepção e se senta na entrada para pensar.
Alguns minutos depois chegam quatro homens do mesmo porte do ex-namorado de Sara, com roupas de couro, anéis em vários dedos e com longas barbas.
Eles nem olham para os lados.
Vão direto ao recepcionista.
- Estamos procurando Amadeu Silva. Qual é o quarto dele? Não adianta você dizer que não pode, porque vamos subir do mesmo jeito.
Gaguejando, o recepcionista mente:
- Ele não está mais aqui. Depois de uma confusão que ocorreu agora há pouco, em que um homem caiu da janela do quarto em que estava e foi hospitalizado, ele foi embora. Prestou contas à polícia e foi embora.
- Ah é? E em qual quarto ele estava?
- No 318.
- Então vamos lá conferir se ele foi mesmo embora. Se você estiver mentindo, vamos conversar bem de pertinho daqui a pouco.
- Não, ele já foi mesmo, continua gaguejando o recepcionista muito assustado.
Os quatro sobem ao terceiro andar.
Ao ver a cena, Amadeu Silva entende que Sara tinha razão mesmo. Ele apanha a mala com o recepcionista, dá um abraço nele e foge.
A mãe e a irmã de Amadeu Silva e o seu cunhado o recebem com alegria.
- Que bom que voltou meu filho. Fazia tempo que não vinha para nos ver.
- Sim mãe. Eu andei atarefado por lá. Mas agora estou aqui. Estava com saudade de vocês.
- E agora veio para ficar mesmo Amadeu, pergunta a irmã.
- Sim, Judite, desta vez é para ficar.
- E onde vai ficar? Já tem um lugar?, quer saber Jorge, o cunhado.
- Pois é, meu caro. Essa é uma questão importante. Não tenho onde ficar ainda.
- Não tem importância. Fica aqui com a gente, diz dona Jurema, a mãe, mas Jorge olha torto.
Amadeu Silva percebe.
- Eu não quero incomodar vocês. Não se preocupem. Vou achar um lugar.
- É só até ele achar um lugar Jorge, diz a mulher como que fazendo um pedido.
- Está bem, você pode ficar aqui até achar um lugar, diz o cunhado.
Depois da recepção regada a bolo de coco, Jorge mostra um quartinho nos fundos, onde Amadeu Silva deverá ficar provisoriamente.
O lugar não é grande e nem confortável. Era usado antes como quarto da bagunça. Tiveram de tirar e recolocar, arrumando, várias coisas lá para que Amadeu pudesse se alojar.
Assim que se acomoda e fica sozinho no quartinho, Amadeu liga para Sara.
- Você tinha razão. Apareceram quatro caras do tamanho do seu ex lá na pousada. A minha sorte é que eles não me conheciam. Perguntaram por mim e o recepcionista mentiu que eu já tinha saído, mas eles subiram para confirmar se era verdade.
- Nossa, então foi por pouco.
- Pouquíssimo. Mas consegui driblá-los e fugi. E você como está?
- E onde você está?
- Estou em Sorocaba, na casa da minha irmã, no Jardim Brasilândia, que te falei.
- Ah que bom. Isto me deixa um pouco mais tranquila. Mas fique esperto mesmo aí. Ele pode ir atrás de você se descobrir onde está.
- Não tem como descobrir. Não falei para ninguém. Depois, na pousada ninguém sabia que eu sou de Sorocaba. Está tranquilo.
- Eu sei, mas o Valdir é sarna.
- Não esquenta, mas me fala: como você está? Está em Curitiba mesmo?
- Sim, meu querido. Estou na casa da minha irmã. Fica no centro aqui de Curitiba.
- E ele não sabe onde é?
- Não sabe. Disse uma vez que tinha uma irmã em Curitiba, mas Curitiba é grande.
- E ele não é uma sarna?
Ela ri.
- É, mas não vai me achar.
- Como pode ter tanta certeza?
- Sabe como? Porque eu vou para Sorocaba. Vou atrás de você. Me passa o endereço.
- Sara, não dá para você vir aqui ainda. Estou na casa da minha irmã. Não tem lugar aqui. Preciso arrumar um emprego e um lugar. Depois você vem. Está certo?
- Está bem então. Eu entendo. Eu também precisarei arranjar um emprego aí.
- Sim, aqui não é difícil de arranjar emprego não. A cidade tem muitas oportunidades. Muitas indústrias e comércios, sabe?
- Que bom.
- Mas eu quero te ver antes que venha para cá. Vamos nos encontrar em Curitiba. Eu vou te visitar no final da semana. Pode ser?
- Eu vou adorar.
No final de semana, Amadeu Silva reencontra Sara e os dois passeiam por Curitiba sem se preocupar com Valdir Antunes.
De fato, não havia mesmo com que se preocupar. Com as duas pernas quebradas, ele iria demorar para voltar à ativa.
- Nem acredito que podemos nos ver sem preocupação, diz Sara antes de beijá-lo com muita vontade, um beijo escandalosamente demorado e invasivo aos olhos de qualquer um.
Quando consegue respirar novamente de forma normal, Amadeu Silva diz que eles deviam esquecer Valdir Antunes.
- Esse morreu para nós. Vamos levar a nossa vida de boa. Ele não merece uma ruga nossa.
Os dois riem solto.
Novos encontros acontecem mais duas e quatro semanas depois.
Agora é Sara quem vai para Sorocaba.
Ela fica encantada com a cidade.
Os dois passeiam e aproveitam para procurar emprego e um lugar para ficar.
Mas acabam não gostando de nada e nem conseguindo uma ocupação.
Mais duas semanas é Amadeu Silva quem vai para Curitiba desta vez para visitá-la.
Totalmente despreocupados, os dois passeiam por vários pontos turísticos. Praticamente esqueceram da existência de Valdir Antunes e das suas ameaças.
Apenas quando estão atravessando uma rua para tomar o BRT é que eles percebem algo estranho. Alguém parecia estar seguindo-os. A mesma pessoa já tinha sido vista em outros lugares e eles não tinham se atentado.
Não era uma pessoa conhecida deles.
- Não pode ser.
- Eu acho que é, ela diz.
Mesmo assim, nada aconteceu.
Amadeu Silva voltou para Sorocaba. Viajou de ônibus. Chegou à rodoviária à noite já e pegou outro ônibus até o Jardim Brasilândia.
Quando chegou à rua da casa da irmã, havia um movimento enorme de pessoas, carros de bombeiro, polícia e muita gente na rua.
Ele foi se aproximando devagar para tentar entender o que estava acontecendo.
Finalmente descobriu que a casa da irmã estava no meio de um incêndio.
Os bombeiros tentavam apagar, mas não havia como recuperar praticamente nada.
Ao vê-lo, o cunhado de Amadeu Silva bateu em seu peito e disse:
- A culpa é sua. Não quero mais você aqui.
- O quê?
- É isso mesmo, gritou Jorge e saiu de perto.
- Ele está nervoso. Calma, vamos conversar, disse Judite.
- Por que ele me acusa? Eu nem estava aqui.
- É que ele disse que um homem ateou o fogo e disse que era por sua culpa. Só deu tempo de a gente sair. O fogo avançou rápido.
- Espera. Como era esse homem?
- Ele disse que era alto, quase dois metros, e muito forte. Tinha uma cicatriz na bochecha.
- Meu Deus, é o desgraçado.
- Quem?
- Não, deixa para lá. O Jorge tem razão. É melhor eu desaparecer da vida de vocês. Já causei muitos problemas aqui.
- Não Amadeu. Não é nada disso. Ele só está nervoso. Perdemos tudo que tínhamos.
- Eu sei. Se eu pudesse, ajudava a reconstruir, mas agora o melhor que eu tenho a fazer é ir embora. Assim, ajudo mais a vocês.
- Tem certeza irmão?
- Tenho. Você e a mãe estão bem. É isso que importa. Eu dou notícias.
Amadeu Silva anda sem rumo pelas avenidas de Sorocaba. Ele não sabe o que fazer. Não tem ideia de como se livrar daquele homem. Mas não tem medo dele. Pensa com raiva que, se o encontrasse, ele daria cabo dele.
Enquanto caminha sem rumo, uma equipe da Prefeitura o aborda para saber se ele estava bem, se tinha casa para morar.
Sem querer dar explicações, Amadeu Silva diz que não está bem e que não tem casa.
Os funcionários o levam para o SOS.
Após o atendimento, ele é liberado.
Amadeu resolve deixar Sorocaba.
Era melhor não encontrar aquele homem novamente. Ele repensa a decisão de antes de encontrar e enfrentar. Toma um ônibus para o Guarujá. Tem um conhecido lá. Quem sabe Élcio possa ajudá-lo. No Guarujá, estará longe o suficiente para não causar problemas.
Ele liga para Sara.
Quer contar o que aconteceu.
O telefone dela não atende.
Deixa recado e pede que retorne, mas Sara não retorna. A essa altura, ele já tinha o telefone da irmã de Sara e liga para saber dela.
- Alô, é Márcia? Aqui é o Amadeu.
- Não me ligue mais.
- Ei, calma. O que aconteceu? Estou tentando falar com a Sara e ela não atende e nem retorna. Você sabe dela?
- Minha irmã está no hospital por sua causa.
- Como assim? No hospital? O que aconteceu? Por favor, me fale.
- Aquele monstro do ex-namorado dela veio aqui e puxou ela para a rua pelos cabelos. Ele bateu tanto nela que ela teve de ser hospitalizada. Ela está muito mal.
- Meu Deus, quando foi isso?
- Pouco depois que você foi embora para Sorocaba. Algumas horas depois, ele apareceu.
- Mas ele foi preso?
- É claro que não. Ele queria saber onde você estava. Ela não disse e ele a espancou desse jeito até que os vizinhos ajudaram a tirá-lo de cima dela. Ele ia matar ela para forçá-la a dizer onde você estava.
- Que cretino.
- Ela não disse, mas eu disse.
- O quê?
- Sim, eu disse que você estava em Sorocaba. Eu não queria ver a minha irmã morrer.
- Então isso explica o incêndio.
- Que incêndio?
- Ele colocou fogo na casa da minha irmã, onde eu estava morando. Só não entendo como achou o endereço. Você só disse Sorocaba?
- Não, disse que era no Jardim Brasilândia. Ele quis saber onde era exatamente.
- Está certo. Mas eu preciso saber da Sara. Preciso te ligar de novo. Estou indo para outro lugar agora até tudo isso passar.
- Está bem. Pode ligar. Mas assim que souber do estado dela, não me ligue mais. Vou te passar o telefone do hospital. Você liga lá. Para onde está indo agora?
- É melhor você não saber.
No Guarujá, Amadeu não encontrou o amigo Élcio. Ele havia se mudado. Não deixara endereço e não havia nenhuma informação.
Sem ter onde ficar, Amadeu Silva lembrou do SOS de Sorocaba e procurou o SOS de lá.
No Guarujá, o SOS permite que o morador de rua possa passar a noite.
Durante a madrugada, Amadeu Silva tem pesadelos com Valdir Antunes. A cena do incêndio, a agressão a Sara, o rosto de Valdir dizendo que iria matá-lo, tudo se revira na cabeça dele, sufocando-o. Ele acorda.
Ao abrir os olhos, Amadeu Silva vê o rosto de Valdir Antunes bem de perto. O seu perseguidor está em cima dele e suas mãos estão apertando o pescoço dele. A sufocação do pesadelo era real. Se não acordasse aquela hora, não acordaria mais.
Amadeu Silva desfere um soco certeiro de esquerda, que é o seu forte, e acerta o olho de Valdir Antunes. Os dois começam a brigar como se um fosse matar o outro. Ele até consegue acertar bons socos de esquerda em Valdir, mas o problema é que o homem é muito grande e muito forte e pouco se abala com os golpes.
Sem ter alternativa para vencê-lo, Amadeu arranca um pedaço do ferro da guarda da cama e desfere uma pancada forte na cabeça do seu agressor, que desmaia na hora.
A essa altura todos os abrigados estão em polvorosa e a segurança do lugar já estava tirando a barra de ferro das mãos de Amadeu.
- Ele me atacou, ele me atacou, ele diz para os guardas, tentando se explicar, nervoso.
Os outros abrigados dão razão a ele e confirmam que o homem desmaiado foi quem agrediu primeiro. Mesmo assim, os guardas querem que Amadeu espere para prestar depoimento e um deles o segura.
Com receio de Valdir Antunes acordar e partir para cima dele novamente, ele sacode o braço e escapa das mãos do guarda. Em seguida, corre em direção à porta e vai atropelando quem está na sua frente. Os abrigados são pessoas fracas e sem energia, porque não se alimentam direito. Todos acabam vencidos.
Amadeu Silva vai para a rua e corre como louco sem nem olhar para trás.
Quando se sente seguro, ele para e tenta retomar uma respiração normal.
Leva algum tempo até que consiga.
Toma um ônibus e vai para a rodoviária. De lá ele segue para Santos. Não quer esperar para ver Valdir Antunes acordar.
Em Santos, ele não tem para onde ir também. De repente, a sua vida estava consistindo em fugir daquele homem. Essa situação não poderia continuar. Tinha de tomar uma atitude.
Amadeu Silva vai a uma delegacia e registra um boletim de ocorrência contra Valdir Antunes por ameaça e conta todas as ocorrências, inclusive a última no Guarujá.
Em seguida, ele procura o SOS de Santos, que também permite pernoitar, embora já seja madrugada. O SOS não queria recebê-lo, mas como ele está muito assustado e ansioso, os funcionários acabam concordando que fique.
De forma totalmente desequilibrada, Amadeu Silva olha para todos os lados o tempo todo. Procura atrás de portas. Tem os olhos estalados. Ele pergunta a todo momento se alguém viu um homem de quase dois metros de altura com uma cicatriz na bochecha esquerda.
Um dos funcionários lhe aplica uma injeção e rapidamente ele dorme.
- É paranoia, diz o funcionário para o colega. – Eles usam muita droga e acabam alucinando. Pensam que são perseguidos e não tem ninguém atrás deles. Se abusar, enlouquecem.
- Pobre coitado, diz o outro.
Amadeu Silva é carregado para uma das camas do lugar e repousa profundamente.
O sol entra pela janela do SOS de Santos como se fosse um braço de calor invadindo o ambiente e inundando tudo com muita luz.
Quando abre os olhos, Amadeu Silva observa o teto branco e se assusta sem motivo.
Em seguida, olha para os lados. Ele se levanta de chofre e salta da cama para olhar embaixo dela. Olhos esbugalhados, procura alguém em cada canto do quarto coletivo.
Os outros o observam com desdém.
- Está maluquinho, diz um.
- Ei, ei, grita o outro.
Rapidamente, estão todos gritando.
O barulho faz os funcionários responsáveis pelo local aparecerem para ver o que está acontecendo e, ao notarem, Amadeu Silva naquele estado, eles voltam a lhe aplicar uma injeção que o faz dormir.
Amadeu Silva não sabe quanto tempo se passou enquanto dormia ao despertar.
Mas avalia que devem ter se passado alguns dias, pois as pessoas não são as mesmas.
De qualquer forma, ele está mais calmo agora e não sente mais a ansiedade e o medo de antes, talvez seja, pensa, fruto das injeções.
- Quanto tempo eu dormi?
- Alguns dias. O suficiente para sair daquela crise de paranoia que estava atravessando. De onde você é? O que te aconteceu?
Com a voz calma e os gestos lentos, Amadeu Silva relata o drama que vivera até chegar ali.
O funcionário fica impressionado.
Ele não sabe se o funcionário acreditou ou não no que ele disse, devido à fisionomia de dúvida que esboçou, mas não se importava.
Ele precisava saber de Sara.
Perguntou do seu celular e o funcionário disse que o devolveria assim que ele se alimentasse. Explicou que guardou para que não sumisse, já que os abrigados não perdem a oportunidade quando encontram alguém com um aparelho. Esses celulares valem drogas quando voltam para as ruas.
O SOS não atende apenas moradores de rua. Vão para lá pessoas que se perdem ou que estão com distúrbio como era o caso dele.
Um bom prato de arroz com feijão e um pedaço de carne dão nova vida para ele.
Assim que termina o prato, Amadeu Silva recebe o seu celular de volta.
Imediatamente, ele liga para Márcia.
Ela não atende.
A ligação chama até cair.
Bate o desespero novamente.
O que terá acontecido com Sara.
A irmã dela disse que ia dar informação e agora desaparecera. Parecia que tudo dava errado. Mas ele tinha de dar um jeito.
Só não sabia o que fazer.
No início da tarde, ele tenta novamente.
Agora Márcia atende.
- Márcia? É o Amadeu. Como Sara está?
- Você de novo? Pensei que já tivesse morrido. Para quem estava preocupado, você não ligou muito, não é? Faz oito dias e só agora se lembrou de que minha irmã estava mal? Se Sara tivesse de morrer, já teria morrido.
- Por favor, Márcia. Não brinque com isso. Eu tive problemas sérios aqui. Aquele monstro me achou no SOS do Guarujá. Ele quase me enforcou. Nós brigamos feio, mas consegui fugir. Depois fui dopado e só acordei hoje.
- Onde você está?
- É melhor você não saber.
- Se não me disser, não falo sobre Sara.
- Para que quer saber? Vai me entregar para ele novamente? É melhor não saber.
- Eu só te entreguei para salvar a minha irmã, mas, se não quer falar, não vai saber dela.
Márcia bate o telefone na cara dele.
Amadeu Silva liga novamente várias vezes, mas ela não atende. A ligação chama até cair.
- Desgraçada, ele diz.
Depois, raciocina. Pelo que ela disse Sara teria melhorado. Se tivesse piorado ou morrido, ela não diria se tivesse de morrer, teria morrido. Era sinal de que Sara melhorara.
Ele resolve ligar para a própria Sara.
Dá certo: Sara atende.
- Amadeu, meu querido. Como você está? Achei que tivesse acontecido o pior. Onde você está? O que aconteceu para sumir assim?
Ele conta tudo que passou e diz que eles precisam se ver e ficar juntos definitivamente.
- Você é o amor da minha vida.
- Você também é o meu, ela diz.
Mas Sara pede que ele espere um pouco. Diz que eles precisam saber onde Valdir Antunes está antes de qualquer coisa.
Sara diz que eles precisam resolver aquela situação de uma vez por todas.
- Eu não aguento mais essa perseguição.
- Eu também não: minha vida virou um inferno. E eu nem posso te ver mais.
- É verdade, a nossa vida virou um inferno.
- Eu vou ficar aqui mais essa noite para tentar descobrir alguma coisa desse monstro. Amanhã vemos o que fazer. Descansa meu amor.
- Você também.
Como está melhor, Amadeu Silva não recebe a injeção para dormir desta vez.
Mas também não consegue dormir.
Ele fica acordado a noite toda.
Não dormir foi a sua salvação.
Durante a madrugada, ele ouve barulho de alguém forçando a janela do quarto coletivo.
Antes que quem estivesse tentando entrar consiga o seu intento, Amadeu se arma de um pedaço de madeira que era usado para escorar a porta à noite para não ficar batendo com o vento e se prepara para atacar o invasor.
Ele se posiciona próximo da janela, de modo que ao entrar o intruso seja acertado com a paulada certeira dele. E não dá outra: quando quem tentava arrombar a janela consegue entrar esse alguém é Valdir Antunes.
Ao vê-lo começar a entrar, Amadeu Silva fica momentaneamente paralisado. Ele não acredita que aquele homem está ali no seu encalço novamente. Mas é real. O corpanzil dele está quase todo dentro do quarto já. Valdir não percebe a presença à espreita de Amadeu até se virar para ele.
Quando consegue ver que há alguém escondido, é o tempo apenas de levar a pancada. Amadeu bate repetidas vezes na cabeça dele. O homenzarrão já está no chão, mas ele continua batendo e gritando:
- Desgraçado, desgraçado, desgraçado.
Ao se dar conta, Amadeu percebe que está sendo seguro por funcionários do SOS, que tentam acalmá-lo. Já se passaram alguns minutos desde o ataque dele a Valdir Antunes, mas ele não registrara a passagem do tempo.
Era como se ele estivesse ainda naquele momento da agressão e ele continua repetindo que o outro era um desgraçado.
Valdir sofrera traumatismo craniano e fora levado para o hospital em estado grave.
Os funcionários o informam do ocorrido.
E dizem que precisarão dopá-lo novamente, porque ele está muito agitado.
Ao saber disso, Amadeu Silva luta com os funcionários e foge do SOS. Quando ganha as ruas, ele corre, corre, como um desesperado.
Consegue chegar a outra delegacia.
Entra, retoma o fôlego, conta a história toda e registra mais um boletim de ocorrência.
Na saída da delegacia, já bem mais calmo, Amadeu Silva toma o ônibus na rodoviária e volta para Sorocaba quando amanhece o dia.
Após tomar um leite com café na rodoviária, Amadeu Silva passa pela banca de jornais e, à revelia do dono do lugar, folheia o Cruzeiro do Sul até ver um anúncio de emprego.
Ele compra a edição, recorta o anúncio e vai até a empresa no distrito industrial para se oferecer para o trabalho. A empresa aceita contratá-lo e ele já começa a trabalhar no mesmo dia, tal a sua felicidade.
Amadeu liga para Sara e conta a novidade.
Diz que está morrendo de saudade e pede que ela venha para Sorocaba.
Ele iria alugar uma casa para os dois.
Sara pula de alegria, mas diz que é melhor esperar até ele resolver tudo antes de vir.
Ele concorda.
Em duas semanas, a casa está alugada e Amadeu confirma que Sara pode vir.
Os dois se instalam em um imóvel na Vila Haro e passam a viver em paz.
Sara Martins não consegue emprego de pronto. Ela fica em casa esperando por ele e cuidando de tudo. A vida parece ter entrado nos eixos, Amadeu Silva diz a ela quando retorna do trabalho cansado, mas feliz.
Dois meses se passam sem nenhuma alteração naquela vida que os dois experimentam. Amadeu chega até a visitar a irmã, a mãe e o cunhado, que agora já superou o incidente do incêndio e o recebe bem.
No início de março de 2011, quando começa o terceiro mês de vida em comum, ele retorna para casa e não encontra Sara.
Bate novamente o desespero.
Ele liga para o telefone dela e ela não atende.
A angústia toma conta de Amadeu.
O homem procura pela mulher em todos os lugares onde ela pudesse estar sem sucesso.
São horas de sofrimento.
Até que o telefone toca.
Ele atende e é Sara.
- Alô, meu amor, alô. É você Sara.
- Alô, meu querido.
- Sara, Sara, onde você está?
De repente, a voz da mulher desaparece.
Quem fala ao telefone agora é Valdir Antunes e ele fala usando o celular de Sara.
- Ela está comigo. Agora eu vou aí e vou te matar, seu desgraçado. Eu vou te matar.
Em seguida, ele desliga.
O coração de Amadeu dispara.
Ele não sabe o que fazer.
Pensa em se armar para surpreendê-lo, mas como saber que hora chegaria?
E se ele tivesse matado Sara?
Amadeu precisa fazer alguma coisa.
Ele decide ir ao plantão da Delegacia na Avenida General Carneiro, no Cerrado.
Quando está entrando no prédio, olha para trás e vê Valdir Antunes a uma quadra dele.
Amadeu Silva entra rapidamente no plantão. Mas está desnorteado. É aí que ele observa um entra e sai de policiais. Gente o tempo todo circulando e mais: o plantão não fecha.
Ele resolve ficar.
O homem não sai mais dali.
Sem se alimentar, os funcionários ficam com pena dele e compram sanduíches. Pedem que vá embora, mas ele não vai. Já contou a história diversas vezes. As pessoas olham com desconfiança e vão embora.
Dias sem tomar banho, o cheiro dele começa a incomodar. Então ele vai para os bancos da entrada do plantão, que ficam em área aberta e onde as pessoas não param. Apenas passam. Assim, o mau cheiro se disfarça.
No quinto dia dessa odisseia, 10 de março de 2011, eu o conheço. Trabalhava como repórter em cobertura de férias na editoria de polícia do jornal Cruzeiro do Sul. Sempre passava ali para pegar os boletins de ocorrência do dia.
Já o tinha visto, mas não achei que estivesse “morando” na delegacia. Uma funcionária me perguntou se já tinha falado com ele.
Disse que não e que nem sabia.
- Pois então vá.
Sentei-me ao lado do homem e ouvi toda a sua história. Tudo o que foi relatado acima. No jornal acharam a história maluca demais.
A ordem foi que registrasse o inusitado de um homem “morar” na delegacia e só.
Depois da reportagem, Amadeu Silva foi internado em uma clínica para pessoas com problemas mentais e eu não sei se o tal Valdir Antunes, a Sara Martins e tudo o mais existiu.
O que soube de concreto é que a família dele: a irmã, a mãe e o cunhado, não o queriam perto mais. Eles prometiam vê-lo e não iam.
Penso que pode ter sido o incêndio.
De qualquer forma, essa foi uma história que ficou comigo durante todo esse tempo.
Guardo anotações, recortes, fotos. Tudo o que colhi ao longo do tempo nesse trabalho de jornalista. Pensava que virariam lixo, mas hoje viraram história e que história.
FIQUE SABENDO
Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.
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