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Mexeu com um, mexeu com todos
Data de Publicação: 22 de novembro de 2020 18:22:00 FORÇA DA CLASSE - Poderosos sempre estão agindo contra jornalistas, mas às vezes se dão mal, como neste caso em Campinas.
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
Fui demitido poucas vezes. Dá para contar em uma mão, embora tenha trabalhado em inúmeras empresas em 40 anos. Por pressão de poderosos que pediram minha cabeça apenas duas vezes. Esta foi uma.
- E aí jornalista, o que você é capaz de me dar por uma boa informação?
A pergunta direta veio de uma colega que trabalhava na assessoria de políticos em Campinas e que sempre me passava alguma novidade, mas muitas vezes só me enrolava ou queria me usar para os seus interesses.
Eu trabalhava no Correio Popular e assinava uma coluna de bastidores políticos chamada “Xeque-Mate”, uma das mais lidas do jornal e por isso uma das mais visadas.
- Depende, respondi.
- Depende do quê?
- Se é uma informação verdadeira, se me interessa, se é exclusiva.
- Você é exigente, hein?
- Tenho de ser. Muita gente quer usar o jornalista. Não posso vacilar. A coluna é muito lida e eu tenho responsabilidade com o leitor.
- Mas ela só é lida, porque gente como eu te dá informação boa que muda tudo.
- Então sua informação tem o poder de mudar tudo? É isso o que está me oferecendo?
- Sim. Minha informação mudará a vida de algumas pessoas. Eu tenho certeza.
- E qual é o seu interesse nessa mudança?
- Isso não importa.
- Importa sim.
- Não, não importa. Jornalista, vai por mim. Foque no que precisa. Não perca seu tempo.
- Está bem. Sobre quem é? O que tem?
- Calma lá, você ainda não me disse o que me dará por essa informação que tenho?
- Eu não vou te dar nada. Você não tem informação que me interesse. Esqueça.
- Por que você é tão difícil jornalista?
- Eu não sou difícil. Só não tenho tempo para enrolação. E, se quer algo em troca, é porque não tem nada de importante. Está apenas querendo me usar para os seus interesses.
- Eu não disse que quero algo em troca. Perguntei o que me dá. O crédito de confiança já é algo que pode me dar.
- Eu só vou te dar esse crédito se puder provar o que disser e se realmente for algo que eu não saiba e que me interesse de fato.
- Se não me deixa falar, como vai avaliar?
- Estamos conversando há séculos e não me disse nada de bom ainda, não é?
- Não é.
- É sim. Preciso de coisas que ninguém saiba. Você prestou atenção no nome da coluna?
- Sim, “Xe-que-Ma-te”, ela soletra o nome com desdém. - É isso mesmo: xeque-mate que minha informação vai dar na pessoa alvo dela.
- Muito bem e o que você ganha com isso?
- Você é chato, hein jornalista?
- Não, só estou tentando ver até onde sua informação é verdadeira e até que ponto ela é abrangente o suficiente para me interessar.
- Só pelo que eu ganho por divulgá-la?
- Sim.
- E se eu te disser que ganharei um orgasmo?
- Rsrsrs
- Vamos, e agora o que me diz?
- Digo que sua informação pode ser apenas um balão de ensaio. Mulheres com raiva tendem a falar mais e fazer menos. Neste caso tendem a mostrar mais ódio e menos informação. O que me interessa é informação.
- Ah, eu odeio isso. A minha intenção é acabar com a candidatura dele. É isso que eu ganho.
- Bom, então estamos falando de um candidato? Um homem? Candidato a quê?
- Sim, estamos falando de um candidato homem e um candidato a deputado federal que explora as pessoas que o ajudam.
- Diga o nome dele e o que ele fez de errado. Já falamos demais. Não tenho mais tempo para falarmos. Sabe quantas pessoas tenho de ouvir por dia para fazer a coluna?
- Não, quantas?
- Não vou te falar. Você é que tem de me dar informação. Vamos diga quem é e o que fez?
- Também não vou te falar. Vou te levar até lá. O que acha da minha proposta?
- Só se for agora?
- Já, eu passo aí para te pegar na frente do jornal em mais ou menos 15 minutos.
- Está bem. Vou te esperar na frente. Não se atrase. Tenho de fechar a coluna de hoje e do final de semana ainda. Além das outras coisas.
- Calma jornalista, você vai ver que valerá a espera, valerá muito mesmo.
Eu não coloquei muita fé, mas fui esperá-la.
Nem dez minutos depois, a minha informante apareceu com seu carro esporte vermelho.
Parou bem perto de onde eu estava, desceu e caminhou alguns passos de salto alto, como se desfilasse, me olhou e disse:
- Vamos jornalista?
Entrei no carro e fiquei de olho no trajeto.
Já era final de tarde de um dia de 1998.
Ela andou por algumas ruas do centro e acabou por me levar a uma avenida perto do Bosque dos Jequitibás, onde havia funcionado uma unidade do MC Donald’s até pouco tempo antes daquele período eleitoral.
No prédio imponente de dois andares e super bem localizado funcionava agora um comitê eleitoral do então vereador Roberto Mingone, que estava filiado à época ao PFL.
Naquele ano, o parlamentar concorria a uma cadeira na Câmara Federal.
- Então a sua vítima é o Mingone?
- Sim, é ele.
- Mas o que ele fez de errado? Não entendi. Você me trouxe aqui para nada?
- Calma jornalista. Este é o lugar e ele é o político. A informação que você poderá divulgar vai aparecer mais tarde. Terá de ter paciência.
- Como assim?
- Fique aqui e observe tudo o que acontece. Daqui a pouco, precisamente às 19h30 vai acontecer uma situação digna de registro. Como você vai querer usar isso, é com você.
- Eu não posso ficar aqui esperando algo acontecer, você entende?
- Não terá de esperar tanto. Meu conselho, vá lá no comitê e se enturme. Você verá.
Ela não me convenceu, mas, mesmo assim, desci do carro e fui até o comitê.
Entrei como se fosse um eleitor. Embora trabalhasse no jornal, meu rosto não era conhecido entre os funcionários. Evidentemente o vereador saberia quem eu era. Mas ele ficava no segundo andar.
Algum tempo depois apareceu a figura sobre quem a minha informante queria tanto falar: Manoel Moreira (então no PMDB), que concorria a deputado estadual naquele ano.
A sua presença lá causaria um grande dissabor ao vereador e à sua campanha eleitoral, afinal Manoel Moreira, que morreu em 6 de agosto de 2017, era uma espécie de leproso político.
Ninguém o queria por perto.
Ele foi deputado federal constituinte em 1987 e depois deputado federal em 1991, mas foi por um escândalo em 1993 que ele ficou conhecido, os chamados “Anões do Orçamento”.
O deputado foi denunciado por sua ex-mulher Marinalva Soares da Silva, que foi à CPI do Orçamento e apresentou documentos provando o envolvimento dele em um esquema de manipulação de emendas com o objetivo de desviar dinheiro do orçamento por meio de entidades sociais fantasmas e empreiteiras.
Moreira renunciou em 1994 antes de ser iniciado um processo de cassação do seu mandato. Depois foi inocentado de parte das acusações na Justiça em 2009.
Mesmo assim, ficou marcado pelo escândalo e não se ajustou mais. As pessoas o repeliam tanto que ele se mudou de Campinas para Brasília após o episódio da visita a Mingone.
Eu estava dentro do comitê eleitoral do vereador quando o ex-deputado chegou.
Ele me conhecia, mas não me viu.
Perguntei a algumas pessoas se sabiam quem o homem que chegou era, mas nenhum dos eleitores de Roberto Mingone tinha ideia.
Assim que chegou, o anão do orçamento foi direto para o gabinete do vereador candidato no segundo andar e de lá não saiu tão cedo.
Como tinha de preparar as edições de sábado, domingo e segunda da coluna e as outras páginas que eu era responsável, não me demorei ali. Fiz o registro e fui embora para a redação usando um táxi, já que a minha informante e o seu carro esportivo tinham ido embora havia muito tempo já.
Mais tarde, a informante me ligou:
- E aí jornalista? Conseguiu pegar o rato?
- Sim. Ótima informação. Obrigado.
- Só um obrigado é o que eu vou ganhar?
- Eu disse a você que não te daria nada.
- Você é muito cruel jornalista.
- Não me disse o que ganhará com a publicação dessa informação.
- Disse sim.
- Não vale aquela besteirada.
- Vale sim jornalista, você é que precisa prestar atenção. Só isso.
- Bom, eu vou divulgar amanhã a informação.
- Ótimo, suspirou ela.
Encerrei a edição de sábado, depois a de domingo e por fim a de segunda-feira.
Ao final, já tarde da noite, me despedi dos colegas e fui embora para Salto, onde morava à época e onde moro hoje novamente. A apenas 40 quilômetros de Campinas.
Como não estava de plantão no final de semana, só voltaria ao jornal na segunda-feira, às 14h, que era o meu horário de entrada.
Mas no sábado, ao ver a notícia de que o candidato a deputado federal Roberto Mingone recebera o anão do orçamento para uma longa conversa, o vereador ficou possesso.
Ele ligou para a direção do Correio e soltou cobras e lagartos. O presidente do jornal à época, Sylvino de Godoy Neto, ligou para a redação e mandou me demitir. Uma decisão sumária, baseada apenas no depoimento do vereador candidato de que não gostou.
Os editores executivos José Francisco Pacóla e Álvaro Kassab se colocaram em minha defesa.
Disseram ao presidente que a nota na coluna era um bastidor quentíssimo da eleição. Além disso, eu checara a informação pessoalmente. O vereador não tinha do que reclamar.
- Se ele não queria ser visto na companhia de Manoel Moreira, não deveria tê-lo recebido em seu comitê abertamente como fez, disseram.
- Vocês não estão entendendo. Eu não perguntei a opinião de vocês. Eu disse para mandar embora e pronto. Cumpram!
Os dois jornalistas continuaram tentando argumentar, levantaram meu histórico de bons serviços, disseram da falta que faria.
Nada disso adiantou.
Novas tentativas foram feitas no domingo.
Tudo resultou infrutífero.
Mas eu não sabia de nada.
Só tomei conhecimento das negociações e da decisão na segunda-feira quando retornei.
O Correio sempre teve essa política de dar voz aos poderosos da cidade dentro da redação.
Não é o tipo de jornalismo que queriam os jornalistas que trabalhavam comigo àquela época e que também estiveram por lá depois.
Lembro-me de um episódio em 1998 quando Ciro Gomes (à época no PPS) concorreu pela primeira vez à Presidência da República.
Eu era editor de Política Nacional do Correio e fazia uma série de outras coisas, mas o presidente do jornal resolveu me escalar para entrevistar o presidenciável na sua sala.
Para quem não tem familiaridade com a rotina das redações, editores são os chefes de cada área. Normalmente não fazem reportagens. Quem cuida disso são os repórteres, sob a orientação do editor e que é o profissional que vai ler o texto ao final e liberá-lo à publicação.
Portanto, me mandar para fazer a entrevista com Ciro Gomes era tirar a oportunidade dos repórteres que trabalhavam comigo e me dar mais trabalho ainda, sem contar que o presidenciável era um zero à esquerda naquela campanha com três meses de rua.
Mas a convocação atendia o “misancene” do presidente do jornal, que queria mostrar ao candidato que ele tinha alguma importância.
Não sei se por estar lá contrariado ou se por ter antipatia gratuita a Ciro Gomes, nossa conversa não foi nada amistosa:
- O senhor vem tentando costurar apoios com alguns setores importantes e está há três meses na estrada, mas não conseguiu nem os apoios nem decolar ainda. Qual é a sua expectativa em termos de apoio e de desenvolvimento da campanha nas próximas semanas?
- Eu tenho o apoio da minha mãe, zombou ele com toda a sua arrogância de sempre.
- Que bom que pelo menos ela não o abandonou ainda, alfinetei em resposta.
- Ninguém me abandonou jornalista. Campanha é o dia a dia. Estamos fazendo os contatos. As coisas vão acontecer ainda.
- Eu entendo, mas qual é a sua perspectiva?
- Não vou te dizer. Por que daria minha estratégia aos adversários?
- Bem, então sobre o que quer falar? Estou fazendo aqui as perguntas que os leitores gostariam de fazer. Se não pode responder aos leitores, fale o que quer falar.
- Eu não vou falar mais nada, seu desaforado, disse ele batendo na mesa e se levantou dizendo que a entrevista tinha acabado.
O presidente do jornal e outros diretores que acompanhavam ficaram assustados. Não sabiam o que fazer. Foram surpreendidos.
Eu fiquei aliviado.
- Obrigado por tentar candidato.
Disse e me levantei também.
O presidente e os diretores o levaram para outra sala e eu fui orientado a sair de lá.
Foi uma das piores entrevistas que já fiz.
Não pelo diálogo.
Estou acostumado a enfrentar candidatos cheios de razão como Ciro Gomes, candidatos que não respondem como Paulo Maluf, candidatos que são fisicamente agressivos como José Serra e por aí vai, mas pela forma que ela foi preparada, como se eu fosse lá para bajular o cidadão. Jamais faria isto, ainda mais com ele.
Quando voltei para a redação, escrevi a reportagem com o que eu tinha obtido.
Depois que ela foi publicada, o presidente mandou uma repreensão para mim.
Ele não gostou do texto evidentemente.
Na segunda-feira, quando retornei ao trabalho, nem cheguei a me sentar à mesa.
Os editores-executivos José Francisco Pacóla e Álvaro Kassab me chamaram a uma sala reservada para anunciar a demissão.
Explicaram todas as tentativas para reverter o processo durante o final de semana e deixaram claro que não concordavam e nem ninguém lá da redação concordava com aquilo.
Fui demitido de poucas empresas na minha vida. Dá para contar nos dedos quais foram, embora tenha passado por inúmeras ao longo da carreira. E apenas em duas situações a demissão ocorreu por uma razão como essa.
Outro jornal que me demitiu por interferência externa com grande pressão sobre a direção foi o Cruzeiro do Sul, de Sorocaba. Eu conto a respeito no relato intitulado “Sarajane”.
Decidida a demissão, pedi aos editores para ficar na redação até o final da tarde para ligar a outros veículos pedindo emprego.
Afinal, àquela época não havia facilidade com telefones como ocorre hoje.
Eles concordaram sem pestanejar.
Sai da sala e anunciei a todos que estava demitido a pedido de Roberto Mingone por causa da nota na coluna a respeito da visita a ele do anão do orçamento Manoel Moreira.
A revolta foi imediata.
Depois de anunciar a demissão e receber a solidariedade de todos, eu fui para a sala do arquivo, onde tinha um telefone que ficava mais livre e comecei os meus contatos.
Não acompanhei mais nada da redação.
Falei com várias redações e amigos expondo a situação e a indignação era geral.
Ninguém concordava com uma interferência desse tipo na redação e os jornalistas também não tinham simpatia por Mingone.
Quando falei com a Gazeta Mercantil, já mais para o final da tarde, recebi a melhor notícia que poderia ter tido naquela situação:
- Você caiu do céu. Estava quebrando a cabeça pensando em quem chamar para uma vaga que vamos ter com a abertura do caderno regional da Gazeta, o Planalto Paulista. Você topa ser o nosso correspondente em Sorocaba?
A pergunta era da Ana Carolina Silveira, a Carol, editora da Gazeta e do caderno que seria lançado. Ela me conhecia da Folha e do Correio e achava que eu havia caído como uma luva para o cargo e disse que sua procura havia acabado.
Assim, eu saí do Correio em um dia e no outro estava empregado novamente na Gazeta.
Mas a história com o gesto de Roberto Mingone não havia acabado.
Enquanto eu ligava para redações e amigos pedindo uma vaga, os jornalistas do Correio e de todos os outros veículos, irritados com a atitude do presidente do jornal, resolveram, por conta própria, boicotar Roberto Mingone dali para frente, só informando dele o estritamente necessário e obrigatório.
O candidato ficou irritadíssimo.
Rapidamente, ele me chamou em seu comitê eleitoral e pediu que eu falasse com os colegas para que não fizessem o boicote com ele.
Disse que não tinha nada a ver com a minha demissão e que eu o tinha prejudicado muito.
- Olha, candidato, eu fiz o meu trabalho. Se o senhor não queria ser visto com o anão do orçamento não deveria tê-lo convidado para visitá-lo em um comitê eleitoral.
- Eu não tive culpa. Ele apareceu aqui. Não podia tratá-lo mal. Eu o recebi e despachei.
- Foi o que eu disse na nota que aconteceu.
- Mas não precisava, não é?
- Notícia é notícia.
- Bom, não importa. O que eu posso fazer para reverter isso? Diga e eu faço.
- Eu poderia pedir o meu emprego de volta no Correio, que foi o que o senhor me tirou, mas não quero mais. Se um pedido seu, me tira de um trabalho sério e honesto como o que fiz e faço, prefiro continuar onde eu estou.
- Eu te dou emprego aqui.
- Eu não quero trabalhar com o senhor.
- Então me ajude com seus colegas.
- Sinto muito candidato. Não posso fazer isto. Não está nas minhas mãos. E, se estivesse, não faria. Tenha certeza de que não faria mesmo.
O vereador me fuzilou com os olhos, mas disse calmamente como um lorde:
- Obrigado e me desculpe.
Virei as costas e saí.
Não o desculpei.
Não durou muito tempo o boicote, mas o vereador candidato obteve 52.292 votos naquela eleição, insuficientes para se eleger.
De qualquer forma, essa foi a maior votação que conseguiu em todas as tentativas.
Em 2000 concorreu a prefeito de Campinas e em 2002 e em 2006 a deputado estadual. Não se elegeu em nenhuma. E em 2008 concorria a vereador em Campinas, mas renunciou.
Dizem que a classe dos jornalistas é desunida e em geral a luta é cada um por si. Mas este episódio me provou o contrário.
Temos muita força quando nos unimos.
E se nos importarmos com o colega seremos menos marginalizados na profissão.
FIQUE SABENDO
Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.
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