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Líder que não ouve não é capaz de liderar
Data de Publicação: 29 de maio de 2021 17:08:00 CONVERSAR SEMPRE - Nenhuma experiência ou conhecimento faz ninguém superior, mesmo na chefia, ao ponto de não precisar escutar o outro.
É incrível como tudo muda quando você para e absorve o que o outro tem para falar sobre o problema que o aflige.
Jornalista não tem tempo para nada.
Quem trabalha nessa profissão sabe bem disso e não é à toa que não tenhamos tempo.
Temos de verificar muita coisa.
Estamos sempre sob pressão do horário, da chefia, da pauta e dos próprios colegas.
Eu não fui diferente quando atuava na grande imprensa e respondia por manchetes de uma Folha de São Paulo ou Gazeta Mercantil.
Só que um episódio que vivi no Correio Popular de Campinas mudou isso.
Depois de deixar a Folha para comandar um projeto desafiador na área política no Correio, passei a integrar a escala dos finais de semana.
Nesses plantões, editava Cidades em vez de Política e passei a ter contato com vários repórteres daquela editoria, que era a maior do jornal e a que mais tinha jornalistas.
A exemplo do que já fazia na Folha, meu trabalho lá não me permitia olhar nos olhos dos repórteres tampouco parar para ouvi-los.
Na Folha fazíamos três tarefas ao mesmo tempo e no Correio não era muito diferente.
Se parasse, eu achava, fechava atrasado.
Mas tanto na Folha quanto no Correio me defrontei com repórteres que não aceitavam isto e que protestaram comigo.
Na Folha, foi a Luciana. Ela disse um dia que não me daria o retorno da pauta, mesmo que eu a mandasse embora, se eu não olhasse nos seus olhos e parasse para ouvi-la.
Bom, apesar da minha má vontade para fazer isto, acabei por atendê-la quando ela sofreu um acidente e fraturou um dos pés.
Então parei e a ouvi contar sobre tudo o que acontecera, ainda que isto me atrasasse.
Naquele dia descobri que conseguia obter muito mais informação do que apenas ouvindo.
Ela demonstrou toda a sua emoção com a situação que vivera e o quanto estava preocupada, pois não poderia trabalhar daquele jeito e tínhamos uma equipe muito enxuta.
Esse espírito de corpo é fundamental.
Luciana subiu no meu conceito por isso.
A partir dali decidi que não poderia continuar agindo daquela forma tão fria.
Só que, ao me transferir para o Correio, me deparei com um desafio grande, que era provar que a minha experiência poderia fazer a diferença para aquele trabalho.
Afinal, eu tinha sido contratado por ela.
Então voltei a ser prático e a não parar para ouvir e tampouco para olhar nos olhos dos repórteres, fossem eles quem fossem.
Mais uma vez foi uma mulher (as mulheres, me parece, são mais sensíveis a isso que os homens) quem me alertou para o problema.
Magda me disse que eu não prestara atenção ao texto dela e que isto era uma afronta.
Confesso que achei mimimi de cara.
Mas era fato: eu não tinha ouvido com a atenção necessária. O retorno que ela me dera era de que uma família vivia debaixo do viaduto.
Aquilo não era nenhuma novidade e tampouco era algo que fosse impactar o leitor.
Disse isso a ela e segui para a próxima.
Ela puxou o meu braço.
Era uma repórter recém-formada.
Entendi que aquilo fosse uma reação própria de quem começou agora a ver o mundo das pautas e das reportagens e que ainda não se ambientara totalmente ao universo.
Magda insistiu:
- Você não pode ignorar essa história. É uma família que está vivendo na aposta. Pode ser que amanhã não tenha mais ninguém lá.
- Eu sei, mas isso é comum Magda. Muita gente vive debaixo de viadutos hoje. A situação econômica do país leva a isto.
- Então não é importante porque é comum?
- Não é isso. Temos de priorizar aqui. Se não houvesse nenhuma outra história melhor, usaríamos, mas existem outras.
A repórter não aceitou o que eu disse.
Eu gosto de ser desafiado.
Os desafios mexem comigo.
- Pois bem, então me convença que essa história é melhor que esta outra aqui.
Apontei para um acidente de carro violento, no qual havia três mortos.
- Simples: aqui eles estão vivos ainda. E podem continuar vivos se o jornal os ajudar. A reportagem é essa, uma história de vida.
- Ok, você tentou, mas não convenceu.
Ela apanhou as anotações e saiu pisando duro.
Pensei que tudo estava resolvido.
Só que ela foi falar com um dos editores-assistentes de plantão, que veio falar comigo.
Expliquei a situação.
Ele entendeu, mas disse:
- Dá uma força para ela. É recém-formada. Vai desanimar desse jeito.
- Está bem.
Chamei a Magda novamente, me sentei à sua frente e a ouvi contar toda a história.
Como é incrível quando olhamos nos olhos dos outros e como muda quando paramos para ouvir o que as pessoas têm a dizer.
Magda me contou uma história tão emocionante e tão envolvente que me convenceu de que precisávamos ajudar.
Pedi que redigisse e ela me entregou um texto maravilhoso, que me emociona até hoje.
Não me lembro das palavras todas, mas começou fazendo uma alusão ao poema “A Casa”, de Vinícius de Moraes, que ela alterou algumas palavras dramatizando.
“Era uma casa muito engraçada” virou “Era uma casa muito desgraçada”.
“Não tinha teto, não tinha nada” continuou como estava acrescida do verso: “Construída debaixo do viaduto” e continuou:
“Ninguém podia entrar nela não, ninguém podia viver nela não, porque na casa não tinha chão. Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede. Ninguém podia fazer pipi, porque pinico não tinha ali”.
Depois encerrava mudando: “Mas era feita com muito esmero na Rua dos Bobos, número zero”, que virou: “Mas era a única saída para a família Silva debaixo do viaduto da Rodovia X”.
Logo em seguida vinha o texto relatando o drama e fazendo o apelo para que a família fosse salva antes que o pior acontecesse.
Resultado: a reportagem fez tanto sucesso que a família foi resgatada no dia seguinte. Todos foram tratados e receberam auxílio.
Mas não só isso: Magda recebeu um prêmio de melhor reportagem em um concurso.
Esse é o verdadeiro jornalismo, o que muda a vida das pessoas e que transforma realidades.
Faço aqui o meu reconhecimento ao trabalho dessas duas repórteres, sensíveis e inteligentes, que me ensinaram, no papel de gestor, que ouvir é mais importante que falar sempre.
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