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Diário da cegueira que me matou de medo
Data de Publicação: 11 de outubro de 2020 12:00:00 MEMÓRIA - Neste episódio do livro dos bastidores das minhas reportagens falo de um caso do passado atormentando o meu hoje.
SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO
Uma reportagem antiga trouxe grandes preocupações quando precisei de um médico. Ele era o profissional indicado para me atender, mas temia uma vingança. O medo e as expectativas negativas foram uma tortura.
- A pior coisa do mundo é ficar cego.
A frase me tocou mais pela melancolia da voz daquele homem que pelo significado.
Curvado sobre um potinho de lata que estendia para receber moedas, com barba e cabelo longos e os olhos murchos, ele parecia alguém que fora jogado em um buraco escuro e que perdera a energia para tentar sair.
- Eu imagino, respondi observando-o.
- Não, você não imagina. Tenho certeza de que não imagina. Faça um teste. Feche os olhos. Tente perceber tudo em volta.
Estava com pressa por causa do trabalho.
- Amigo, tome aqui uma ajuda. Eu entendo o seu problema. Só não quero fazer o teste.
- Está certo. Você precisa me despachar. Tem muita coisa para ver. Vá, eu fico imaginando.
Aquela provocação me irritou.
Eu entendia que ele estava desapontado com o problema que enfrentava, mas eu não o estava desprezando como ele fazia parecer.
- Amigo, a sua cegueira te permite exercitar uma qualidade que poucos de nós temos.
- Ah é? E qual seria ela?
- A imaginação. Você tem a oportunidade de compor mentalmente todas as imagens. Pode definir cores, extensões, intensidades. Isto não é para qualquer um. Nem todos conseguem.
- Você tem razão. Fiquei cego depois de ter enxergado. Se tivesse nascido cego, talvez não conseguisse isso. Mas exatamente por ter enxergado que a imaginação me é um tormento. Eu quero voltar a ver.
- E perdeu a visão como?
- Em um assalto.
- Como assim?
- Bandidos invadiram a minha casa quando eu fazia churrasco. Eles queriam dinheiro, mas um deles mudou de ideia ao ver a minha mulher. Lívia era uma princesa. Jovem, bonita, pele vibrante. Ele decidiu estuprá-la. Eram dois. Um ficou apontando o revólver para mim e o outro a agarrou. Eu parti para cima dele. O do revólver ficou com medo de atirar, mas o outro apanhou um espeto da mesa e acertou os meus olhos. Furou os dois com vários golpes.
- Meu Deus.
- Depois, estupraram a minha mulher, jogaram as brasas do churrasco em mim e foram embora sem levar nada.
- Que péssimo isso amigo.
- É péssimo sim, mas não acabou. Minha mulher não suportou o que sentia e se matou com uma faca do próprio churrasco. As queimaduras destruíram os meus genitais.
- Que história.
- Vim parar aqui porque perdi o emprego, a casa e tudo que eu tinha.
- Consigo entender a sua dor.
- Não, você não consegue. Tenho certeza de que não consegue. Faça o teste e entenderá.
Não compreendia por que ele insistia tanto no tal teste e resolvi fazer.
Afinal, a história dele já me comovia.
- Por que insiste tanto nesse teste?
- Quero que veja o que vivi quando fiquei cego depois das espetadas que recebi.
- Está bem então.
Fechei os olhos.
Ele disse:
- Agora caminhe na minha direção.
Tentei caminhar. Ele estava a poucos passos de mim. Mas acabei caindo sobre ele.
Então, inesperadamente o homem me agarrou pelo pescoço e apertou forte como se quisesse me sufocar até a morte.
Abri os olhos imediatamente e comecei a tentar me safar do golpe que ele me dava.
- O que é isso? Me solte.
- Não antes de compreender. Feche os olhos novamente. Feche os olhos.
Não queria fechar. Fiz força para escapar. Mas ele era forte apesar da aparência frágil.
Fechei os olhos novamente por cansaço.
Quando fechei, ele torceu a minha cabeça como se fosse me destroncar.
Não foi até o fim.
Aí me soltou e se desculpou.
Levantei-me, sacudindo a roupa e, com muita raiva, comecei a xingá-lo em altos brados.
- Porra cara. Te dei ajuda. Te ouvi. E você me ataca desse jeito. Se não fosse cego, te arrebentaria. Te arrebentaria entendeu?
- Eu entendo a sua raiva, mas agora entendeu como é entrar em um confronto cego?
- Sem dúvida que sim.
- Então, foi isso o que senti e vivi quando fui atrás daqueles bandidos ao sair do hospital.
- O quê? Você foi atrás deles?
- Fui. Guardei o tipo de voz. Eu sabia que eram ladrõezinhos baratos de perto de casa. Desses que se drogam e fazem besteira. Fui até onde achava que eles ficavam, no final da rua debaixo. Quando me viram, vieram tentar me gozar com o que fizeram. Esperei o que tinha a voz mais forte, que era o que tinha atacado minha mulher, chegar mais perto e o agarrei como fiz com você. Não larguei.
- Você é louco. E o outro não te atacou?
- Sim, ele bateu com um pedaço de madeira nas minhas costas até eu largar o companheiro. Quando soltei o pescoço dele, o corpo rolou para o chão inerte para desespero do outro.
- Você o matou?
- Sim. E aí o outro veio me bater de novo. Agora de frente, mas com as mãos.
- E aí?
- Aí eu peguei as mãos dele e torci. Depois segurei o pescoço dele igual ao outro e, quando tirei as minhas mãos daquele lixo, ele caiu duro.
- Você matou o outro também?
- Sim, mas as pancadas que ele me deu nas costas causaram uma paraplegia completa.
- O quê?
- Eu não ando mais.
- Cara, que doido isso tudo. Se não tivesse me agarrado e quase me matado, não acreditaria. Mas você é louco o suficiente. E não foi preso?
- Pois é, acabei livre dos crimes. Tudo pareceu uma briga deles comigo para me assaltarem e, como fiquei desse jeito, não restaram dúvidas de que eles eram os culpados. Mas hoje eu dependo de um casal que me dá lugar para dormir. O homem vem me buscar no final do dia e eu fico aqui pedindo ajuda.
- Eu lamento muito.
- Lembra que eu disse quando chegou que ser cego é a pior coisa do mundo?
- Sim.
- Eu digo isso porque esse homem abusa de mim todos os dias quando me leva embora.
- Você não está falando sério?
- Estou. Eu poderia pegá-lo pelo pescoço e fazer a mesma coisa que fiz com os dois. O problema é que não ando e não consigo alcançá-lo. Mas eu não desisto.
- Você quer matá-lo também?
- Eu vou matá-lo hoje.
- Cara, não pense nisso mais. Não pode viver assim. Precisa pensar em coisas boas.
- Eu não tenho mais vida. Não tenho mais nada. Tiraram tudo de mim. Ser cego é a pior coisa do mundo. Ele vai pagar pelo que faz.
- Não faça isso.
- Você me ajudou no que me faltava.
- Como assim?
- Eu precisava saber como atraí-lo e ver como pegá-lo quando caísse como fiz com você. Agora já imaginei como fazer cada passo.
- Cara, eu não acredito no que está dizendo.
- Pois acredite. Será hoje. Ninguém vai me impedir de me vingar. Ninguém.
- Esse não é o melhor caminho, mas que a sua consciência o convença disso ou Deus o impeça.
Disse e comecei a caminhar em direção ao meu trabalho. Era 1996 e eu trabalhava no Correio Popular em Campinas.
Não dei dez passos e um carro veio na minha direção em alta velocidade. O motorista parecia estar desmaiado. Tive tempo apenas de saltar para o lado e me salvar. Foi no reflexo.
Mas o carro atropelou o cego antes de bater em uma parede e finalmente parar.
Só aí eu entendi a frase daquele homem que me fez parar tanto tempo ali:
- Ser cego é a pior coisa do mundo.
Se ele não fosse, teria escapado.
O motorista teve um infarto ao volante.
Quando cheguei à redação e contei a história, ninguém acreditou em nada do que eu disse.
Por que é tão difícil para as pessoas acreditarem em uma história fantástica?
É incrível como isso se repete sempre.
Eu passei por muitas situações que jamais imaginaria nos bastidores das reportagens que fiz e em várias situações quando nem estava trabalhando, mas vivendo apenas.
Tenho um amigo que sempre diz que tudo acontece comigo ou quando estou perto.
Não sei se é verdade, mas, se for, fico feliz, porque nada é mais gostoso de viver do que o inusitado, aquilo que acontece sem esperar.
Talvez as coisas aconteçam porque têm de acontecer, mas eu sempre me surpreendo.
Essa é a graça da vida: ver acontecer o que não esperávamos, mas que tinha de acontecer.
Se não acreditavam em tudo o que ouvi daquele cego que pedia esmolas, ninguém podia negar que ele havia sido atropelado por um carro desgovernado e morto.
Eu fiz uma reportagem sobre isso, mas tive de me limitar a registrar o atropelamento e a morte, nada do restante.
Então escrevi em um bloquinho tudo o que tinha acontecido e guardei as anotações sem nenhum propósito imediato.
Hoje elas me servem para contar aqui esse bastidor do que vivi. Nesse dia, não estava fazendo nenhuma reportagem. Mas a caminho do trabalho e registrei o fato.
É claro que me perturbou que ninguém acreditasse, ainda mais porque eu não tinha como provar, já que o cego morrera.
Não era só o fato de não acreditarem em tudo o que ouvi e vivi com aquele cego quando ia para o trabalho no Correio que me incomodava, mas o fato de ele falar tanto de ficar cego e a melancolia na voz.
Eu não queria nem imaginar essa possibilidade, por mais que fosse possível. Usava óculos já desde 1994.
O episódio do cego me preocupou tanto que fui procurar um especialista na minha cidade para me certificar de que não ficaria cego.
Disse a ele que queria me livrar dos óculos e continuar enxergando normalmente.
- Tem como doutor Luciano?
- Tem. É só operar os olhos. A cirurgia corrige o seu problema. O astigmatismo some.
- Que ótimo. Não vou precisar nem de lentes? Eu quero fazer. O que precisa?
Eu usava lentes de contato para intercalar com os óculos, mas nem elas eram confortáveis e eu queria me sentir livre.
- Precisa fazer em Campinas. Não fazemos essa operação em Salto ainda. Você pode fazer lá sem dificuldade. Eu te encaminho a um especialista que conheço bem e em quem confio cegamente há muito tempo.
- Cegamente não doutor, por favor. Mas é legal essa possibilidade. Vamos fazer isso então. Me explica como é, quem faz a cirurgia, o que preciso fazer antes dela?
- Você faz em uma clínica com quem temos parceria e é a maior especialista da região. Não há nenhuma preparação especial. Eu faço o encaminhamento e você vai em consulta. Depois marca a cirurgia. Eles fazem todas nas quintas-feiras. Faz um olho em uma semana. Depois o outro. Para não ter problemas se alguma coisa vier a dar errado.
- Como assim: dar errado?
- Olha, Eloy, você precisa estar ciente de que essa cirurgia pode dar errado. Isto é, pode ser que não zere o grau e tenha de continuar usando óculos, mas isso é raro de acontecer.
- Ficar cego, não fico, não é?
O médico soltou uma gargalhada enorme.
- Não, a possibilidade existe, mas eu nem considero de tão difícil de acontecer.
Eu estava muito inseguro sobre fazer a cirurgia. Então pensei no que tinha a perder. Se não desse certo, poderia usar óculos com menos graus e seria mais fácil.
- Marque. Eu vou fazer, disse ao meu médico. Estava decidido a resolver aquilo.
Ele marcou por telefone e me deu a indicação por escrito, onde dizia as razões para encaminhar, em que local faria e com qual médico, já que todo o procedimento auxiliar, os exames, medicamentos e acompanhamentos seriam pelo convênio. Eu pagaria à parte só a cirurgia em si, mas combinaria com o médico lá.
Fui embora sem nem olhar o que escrevera.
Quando fui checar o endereço para comparecer no dia marcado, levei um grande susto com o que li na anotação.
A clínica a quem o meu médico havia me recomendado era a Signorelli, instalada próxima da antiga rodoviária, e o médico indicado era Carlos Roberto Signorelli.
O meu espanto foi porque, no tempo em que trabalhei na Folha, ele chegou a processar o jornal, a minha chefe e a mim por uma notícia que eu produzi e que ia contra os seus interesses comerciais naquele momento.
A Folha tinha acabado de lançar o caderno regional Folha Sudeste, também conhecido como Folha Campinas, em novembro de 1990, e o doutor Carlos Roberto Signorelli convocou uma entrevista coletiva na sua clínica para divulgar a presença de um médico russo.
O profissional havia sido convidado pela clínica para demonstrar a alguns médicos da cidade uma técnica de recuperação de problemas na visão a partir do uso de tecidos de cadáveres e aproveitaria para realizar algumas cirurgias no dia seguinte.
Pelo que consegui saber quando cheguei à clínica para o encontro, seriam 20 cirurgias.
A entrevista transcorria muito bem com as explicações do médico russo traduzidas pelo doutor Carlos e por outros médicos da clínica. Toda a imprensa de Campinas estava lá. De veículos de repercussão nacional, apenas a Folha, mas representada por mim, que faria a reportagem também para o caderno regional.
Tudo mudou quando, durante a coletiva, eu perguntei ao médico se o profissional russo tinha autorização para operar no Brasil. Havia uma exigência de liberação de procedimentos como esse que teriam de ser conseguidas junto aos órgãos que gerenciavam a saúde.
Na hora em que fiz a pergunta, o doutor Carlos Roberto Signorelli ficou muito irritado e se recusou a responder. Em seguida, disse que a entrevista estava encerrada e dispensou todo mundo. Eu ainda tentei falar com ele com calma e educação para obter as informações. Os demais repórteres também, mas não houve conversa. Os seguranças praticamente nos colocaram para fora da clínica.
Cheguei à redação, expus o que acontecera e minha chefe à época, Rosana Vasconcellos, disse que eu apurasse todos os detalhes da necessidade da exigência e que preparasse o texto para a publicação na próxima edição.
Enquanto isto, o doutor Carlos e outros representantes da clínica ligaram para todos os veículos que estiveram presentes e pediram para não divulgarem nada a respeito. Informou que realmente o médico russo não tinha a autorização para as cirurgias e afirmou que elas não aconteceriam mais.
Os veículos de Campinas concordaram. O médico era uma pessoa muito influente lá. Além disso, não havia ocorrido a irregularidade. Afinal, ele havia cancelado todas as cirurgias.
A Folha também poderia deixar de divulgar como fizeram os outros veículos. Só que havia uma questão comercial importante: o caderno acabara de ser lançado e a divulgação, à revelia do médico, demonstraria a independência pela qual a Folha sempre fora conhecida.
Minha chefe disse:
- Vamos publicar. Não será nada grande. Mas vamos registrar o que aconteceu.
E assim foi feito.
No dia seguinte, o médico estava possesso e determinou aos seus advogados que nos processasse por danos morais.
Não havia sentido no processo, posto que a minha ação e a do jornal foram legítimas.
Nossa missão era divulgar a notícia e ela existia, ainda que contrariasse os interesses comerciais do doutor Carlos. E devem ter causado um bom prejuízo a ele. No final, o processo foi arquivado e ficamos como que inimigos, embora para a Folha aquele fosse apenas mais um caso e nem mesmo para mim ficou qualquer ressalva ou desentendimento.
Nunca mais havia falado ou me aproximado da clínica ou do doutor Carlos. Nunca até o meu médico me encaminhar a ele.
Quando li o nome do doutor Carlos Roberto Signorelli no encaminhamento, toda a história daquela coletiva veio de volta à minha lembrança e um frio percorreu minha espinha.
A voz melancólica do cego que havia encontrado e agora a possibilidade de o médico se vingar dos prejuízos que lhe causei, tudo aquilo me perturbava enormemente.
Mas também me incomodava a situação de usar óculos e de ter a possibilidade de fazer a cirurgia para me livrar daquele problema.
O jeito era trocar o médico.
Voltei ao meu médico em Salto e lhe disse que indicasse outro, pois aquele poderia me deixar cego de propósito e eu não queria.
O meu médico, doutor Luciano Mendonça, me deu uma bronca por falar daquele jeito. Disse que um profissional do gabarito do doutor Carlos Signorelli jamais agiria pelo lado pessoal, ainda que eu tivesse causado prejuízos financeiros para ele no passado.
- Eu o conheço e confio cegamente nele, me disse o meu médico para avalizar.
- Cegamente não, por favor doutor.
Ele riu da minha observação.
- Desculpe, foi a palavra que me ocorreu.
O meu médico afirmou que não tinha outro médico tão bom para indicar e que tudo aquilo que eu relatara sobre o ocorrido na época da Folha já era passado e ele nem se lembraria.
Era um teste muito grande.
Será que o doutor Carlos não se vingaria? Será que teria esquecido de mim? Será que eu devia me arriscar e correr o risco de ficar cego? Será que eu deveria fazer a cirurgia se ela deveria ser feita naquela clínica?
As dúvidas eram muitas e nenhuma resposta vinha para me tranquilizar.
Passei dias e dias pensando a respeito, consultei pessoas que eram importantes para mim e voltei a falar com o meu médico.
Queria saber do doutor Luciano cada passo da cirurgia. Como era todo o procedimento. Ele me disse uma coisa que me tranquilizou: eu passaria por consulta com médicos da clínica, mas não com o doutor Carlos.
E tudo que fosse apontado nos exames e na consulta seria anotado e eu teria esses documentos. Portanto, se os exames e todos os dados indicassem que os meus olhos eram saudáveis, não poderia dar errado a cirurgia ao ponto de eu ficar cego de uma hora para outra.
Ainda assim, pensava que o doutor Carlos poderia alegar que o comportamento durante a cirurgia provocara algum problema e então me deixar definitivamente cego.
Perguntei se isto era possível. O meu médico voltou a reforçar que confiava no seu indicado e disse que tudo ficaria bem. Afirmou: faça.
Foi um amigo que nem era tão próximo de mim que acabou me ajudando a decidir ao me lembrar de um detalhe importante.
O meu nome completo é Edemilson Elói de Oliveira e o nome usado para assinar as reportagens era Eloy de Oliveira. Então o médico de Campinas poderia não ligar os nomes e até no processo, ao menos na inicial, foi colocado que o jornalista Eloy de Oliveira fora o autor da reportagem.
O nome completo aparecia no final do processo, mas ele poderia não ter se ligado nele. Enfim, o nome que o marcou fora Eloy.
Resolvi arriscar e me cerquei de todos os cuidados, registrando cada etapa.
Se algo fosse feito, eu teria elementos para processá-lo, ainda que isto não me trouxesse a visão de volta. De algum modo, se acontecesse, poderia tentar a recuperação com a indenização que ganharia da causa.
Outro detalhe importante: operaria um olho de cada vez. Se tudo desse errado com um deles, eu teria o outro bom e poderia tentar a recuperação com o processo.
Era tudo muito louco, mas eu estava decidido a contar com a possibilidade de voltar a enxergar normalmente e aquela cirurgia garantia isso ou prometia isso.
Fui às consultas iniciais e fui atendido por médicos auxiliares do doutor Carlos.
Eles me submeteram a vários exames e me tranquilizaram sobre o resultado da cirurgia. Ainda que não desse para garantir o sucesso, ele era o que se esperava porque o grau de astigmatismo que eu tinha era baixo e perfeitamente corrigível com a intervenção.
Especulei sobre o processo todo e fiquei sabendo que o doutor Carlos só tinha contato com o paciente na hora da cirurgia e que, como operava dezenas de pessoas no mesmo dia, era uma abordagem de minutos apenas.
O tempo era suficiente para fazer a intervenção e sair na sequência.
Os cuidados pós-operatórios eram feitos por outro médico da equipe em outra sala.
Fui em frente registrando cada etapa e cada passo como um diário do enfrentamento daquele dilema de voltar a ver bem ou não.
Depois de algum tempo, o dia fatídico chegou. A cirurgia foi marcada e eu tinha de ir acompanhado por causa da volta, já que ficaria só com um olho em condições de me conduzir e dirigir assim não seria uma boa ideia.
Mas naquele dia não havia ninguém para me acompanhar e acabei indo sozinho. Dirigi o próprio carro até Campinas e o deixei em um estacionamento perto da clínica.
Se não conseguisse dirigir ao sair, daria um jeito depois, mas estava nervoso demais para pensar naquilo naquele momento.
Entrei em uma fila que ficava em um corredor. Todos sentados um de frente para o outro. Havia todo tipo de gente naquela espera. Jovens, velhos, crédulos, incrédulos, gente que falava muito, gente muda, gente nervosa, gente calma, homens, mulheres, pessoas já operadas e ansiosos pela primeira vez como eu.
Os que mais chamavam a atenção eram os já operados que falavam da experiência e explicavam o porquê estarem ali novamente. Esses eram quem ninguém queria ser no dia seguinte e eram fantasmas a nos atormentar.
Faziam rodinhas em torno deles para ouvi-los. Eu não queria ouvir de início, mas quem resiste? Fui até lá e ouvi de uma mulher que o risco era grande e que ela estava decepcionada.
- Estou aqui para tentar consertar o que aconteceu. Eu esperava sair daqui sem óculos e vou ter de usar óculos para o resto da vida.
- Como assim?
- Houve alguma coisa e os graus não foram eliminados como deveriam ser.
- Houve o quê?
- Não sei. Eles não explicam. Inflamou. Achei que ia ficar cega. Estou muito triste.
Saí de perto dela e fui para perto da porta. Estava a ponto de deixar o lugar.
Para que eu tinha de correr aquele risco? Não, eu ia fugir enquanto havia tempo.
- Aonde você vai?, me perguntou um dos que esperavam na ponta da fila, bem no início do corredor. Era um homem gordo e careca.
- Vou embora enquanto é tempo.
- Não faça isso. Deve ter ouvido aquela ali, né?, disse, apontando para a mulher que eu realmente havia ouvido alguns minutos antes.
- Sim, foi ela sim.
- Amigo, essa mulher não deve ser levada em consideração. Ela reclama da cirurgia. Só que o doutor Carlos fez o impossível com ela.
- Eu sei. Ela disse que inflamou, não explicaram nada. Achou que ia ficar cega.
- Mentira. Ela tinha 17 graus de miopia. Cirurgias nessa condição nunca zeram o grau. Após a operação ela ficou com 4 graus. Inflamou sim, mas foi tratada adequadamente.
- Então não foi erro?
- Claro que não. Ela não se conforma. Só que a culpa é do problema que ela tinha. Melhorou muito a vida dela. É que ainda não percebeu.
Voltei para a fila, me sentei e fiquei calado.
Estava disposto a não falar com mais ninguém até chegar a minha vez.
O problema é que demorava muito.
Depois de mais algum tempo de angústia, resolvi ir ao banheiro e ficar lá meditando.
Não sei quanto tempo passei sentado no vaso sanitário de cabeça baixa e em silêncio.
Repassei tudo que havia acontecido comigo e sai de lá decidido a enfrentar de vez.
Finalmente chegou a minha hora. Entrei em uma sala com um dos auxiliares. Ele mediu a pressão do olho, fez outros testes e me mandou para a sala seguinte. Nesta passei por outros exames e recebi um colírio para dilatar o olho.
Entrei em uma terceira sala e mais exames, assepsia e o aviso que me revirou o estômago:
- Você é o próximo.
Fiquei em pé na entrada da sala da cirurgia.
Alguns minutos depois, uma enfermeira veio e me pegou pelo braço para entrar.
Era uma sala ampla e muito clara. Havia uma cadeira reclinável bem no centro. Ela pediu que me sentasse nela. Em seguida, desceu o encosto de modo que fiquei quase deitado.
Estava esperando pelo pior ao me defrontar com o doutor Carlos e toda aquela situação do processo voltar à tona e ele de repente agir.
- Onde está o médico?, perguntei.
- Ele já vem. Assim que eu disser que está ok.
- E não está ok ainda?
- Não, ela disse.
Em seguida, apanhou um lençol enorme e o jogou para cima de mim. Achei estranho demais aquilo. A sensação era de sufocação. Minha respiração ficou difícil. Não porque não tivesse ar, mas pelo coração disparado.
Rapidamente, ela achou um buraco no lençol e o posicionou exatamente sobre o meu olho que seria operado, deixando apenas ele exposto para fora do lençol.
- Está tudo bem?
- Está, eu acho.
- Então agora sim você está pronto. Aguarde que vou chamar o doutor.
Ela saiu e entrou o doutor Carlos.
- Como vai?, ele disse.
Tentei não usar a voz normal. Estava escondido. Até ali tudo corria bem. Arrisquei.
- Sim, sim, sim.
- Você parece nervoso? Há algo que o preocupa? A cirurgia é simples. Você está ciente disso, não está?
- O que me preocupa é ficar cego.
O doutor Carlos caiu na gargalhada.
Embora o riso dele tivesse sido bem rápido, a mim me pareceu que não ia parar.
Quando finalmente parou de rir, ele disse:
- Você não vai ficar cego. É uma questão de honra para mim. Aqui ninguém sai cego.
A intervenção aconteceu e ele deixou a sala.
Meu olho estava fechado.
Agora, se estava cego, não havia mais o que fazer. A enfermeira me pegou pelo braço novamente e saímos para outra sala.
Recebi os curativos, a recomendação de que fosse embora com cuidado, que abrisse o olho fora do curativo só dois dias depois e que voltasse na outra semana para operar o outro.
Estava bem. Peguei o carro e fui sozinho. Dirigi com um olho só. Se ficasse cego do olho operado, precisava aprender a viver só com o outro. Esse era o meu primeiro teste.
Cheguei bem e o olho reabriu e eu enxerguei com alguma dificuldade dois dias depois.
Antes de operar o outro olho, este já estava perfeito. Foi o que me fez ir para a segunda cirurgia sem nenhuma preocupação mais.
O segundo olho ficou tão bom quanto o primeiro e eu quebrei os meus óculos com um prazer de quem se livrava de vários demônios.
A voz melancólica do cego voltou com aquela frase medonha e eu a repeti alto e feliz.
- A pior coisa do mundo é ficar cego. Felizmente eu não sou. Eu não sou.
Dei um soco no ar como o Pelé quando fazia um gol e agradeci a Deus e ao doutor Carlos.
Acabei nunca conversando com o doutor Carlos Roberto Signorelli sobre o episódio do processo e da minha fatídica cirurgia.
O médico morreu em 2009.
A clínica onde fui operado fechou em 2012.
FIQUE SABENDO
Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.
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