Covarde é quem morre

13 de dezembro de 2020

Covarde é quem morre

Data de Publicação: 13 de dezembro de 2020 18:23:00 MEMÓRIAS DO CÁRCERE - Neste episódio dos bastidores dos meus 40 anos de reportagens a história de uma violenta e triste vingança.

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SEM TEMPO? ENTÃO VEJA O RESUMO

Quando um homem sofre uma violência e se vê impotente para impedi-la, ele só pensa em se vingar. Mesmo assim, o troco não lhe devolve as perdas que arregimentou com o ato. A tragédia está instalada.

 

 

Quando Armando foi trazido ao cômodo minúsculo era fim de tarde. Não havia iluminação elétrica. A luz do sol já esmaecia sem força. Era como se o escuro a cercasse e tentasse cobri-la como um grande cobertor.

 Mas deu para ver as paredes marcadas por rabiscos de frases e desenhos obscenos, feitos a caneta Bic; o teto mofado, a cama suja por pegadas de sapatos cheios de barro.

Ela estava forrada com lençóis amarelecidos.

Cobriam um colchão fino de espuma, jogado sobre uma caixa de alvenaria exatamente do seu tamanho. Ela o cercava e o prendia.

O cheiro de azedo exalava no ar.

O lugar era quente, sem ventilação, cheio de pó depositado sobre as superfícies e o chão.

À esquerda, quase ao centro da parede, havia uma passagem sem porta. Levava a uma privada, onde se podia apenas colocar os pés, abaixar as calças e se agachar para fazer as necessidades. Uma pia minúscula ficava ao lado. Tinha a torneira torta e o cano do esgoto torcido, dando a impressão de não deixar passar nada havia muito tempo já.

Do lado oposto ao banheiro, havia a grade.

Grossas barras de ferro, uma pequena porta à direita com uma fechadura enorme.

Quando olhou para ela, viu o guarda que o trouxe se afastar após passar duas voltas na tranca e colocar as chaves presas à cintura.

Estava sozinho, enfiado naquele lugar escuro, como se tivesse sido abandonado em uma caverna no meio do nada. Olhou detidamente cada detalhe da parede, da passagem para o banheiro, da cama. Terminou nas grades.

Parecia que tudo se resumia a elas agora.

Armando se sentia a última das pessoas. Tanto que explicara, tanto que falara sobre a sua inocência. Ninguém. Ninguém lhe dera ouvidos. O que seria dele agora naquela prisão? Não quis nem imaginar para não se deprimir mais.

O advogado que arranjaram havia dito que seria só uma noite. Não acreditava. No fundo queria acreditar, mas era difícil. Como o tiraria se não evitara chegar até ali? Era uma esperança verde demais para se tornar fruto maduro.

Sentado na beira da cama, as mãos unidas, os cotovelos sobre os joelhos, a cabeça baixa.

Lágrimas escorreram pelos cantos dos olhos.

Deitou-se de lado, encolheu-se imitando um feto. Queria voltar ao útero de dona Amélia. Coitadinha. Ficara tão espantada com a prisão. Que desgosto sem tamanho ele lhe dera.

Virou-se para a parede rabiscada.

Tentaria dormir para que aquela noite passasse logo e rezaria para que o advogado conseguisse a soltura para o dia seguinte.

Os olhos cansados foram se fechando lentamente até adormecer no silêncio.

 

Acordou com a frase:

- Vamos, tire a roupa.

Não conseguiu entender de pronto.

Parecia que a voz estava dentro de um aquário. Vinha de longe. Não devia ser com ele.

Esfregou os olhos para tentar ver melhor.

Não havia como sem a luz elétrica.

Mas percebeu a presença.

Sabia que estava ali, dentro da cela.

- Eu não vou falar outra vez. Tire a roupa agora seu veadinho imbecil. Vamos!

Armando se levantou de súbito.

- Eu não vou tirar roupa nenhuma. Quem é você? O que está fazendo aqui?

- Ah não vai tirar a roupa? Então eu vou te ensinar uma lição. Vai aprender rapidinho.

De repente, do meio do escuro veio um soco no estômago de Armando. Ele não sabia quem era. Quando ainda se recuperava do impacto, veio outro soco e mais outro e outro.

Ele caiu para trás.

Contorcia-se de dor.

Ficou ali por longos segundos.

Depois, ergueu-se em um salto e começou a dar socos inadvertidamente, tentando acertar quem o golpeara com aquela violência.

Não acertou nenhum soco.

Não enxergava e não estava familiarizado com o ambiente como o intruso estava. Nem era rápido como ele para desferir os golpes.

Cansou logo.

Então sentiu que outras pessoas começaram a rasgar as suas roupas puxando-as com força.

Armando reagiu furioso.

Desferiu socos para todos os lados.

Não acertou ninguém.

Uma ou duas pessoas, não conseguiu definir, seguraram os seus braços. Outra ou outras puxaram as suas calças para baixo.

O jeans grudado ao corpo, como gostava de usar, saiu com tanta violência que parecia que a pele dele estava sendo arrancada.

Após ficar finalmente nu, Armando foi amarrado a dois suportes que havia na borda da cama. Ele nem tivera tempo de percebê-los. Agora verificava que eram de ferro. Não conseguia safar-se das cordas que o prendiam a eles. Amarraram também as pernas.

De repente, o barulho daquelas pessoas foi diminuindo. Deduziu pelo som que saíram pela porta à direita da grade. Não escutou as voltas na chave da tranca. Por que será que o amarraram e não trancaram a cela?

Estava com medo daquilo tudo.

Seguiu-se um silêncio intrigante.

Ao ouvir a respiração forte, percebeu que não estava só. Quem quer que fosse, deitou-se sobre ele, que estava amarrado de bruços.

Uma boca molhada começou a tocar as suas costas com beijos. Uma língua rápida e úmida percorreu o seu pescoço, entrou nas suas orelhas. A saliva escorria para a frente do rosto.

- Pare com isso, me solte, eu vou te matar, desgraçado. Saia daí agora, vamos.

O estranho deu um tabefe no seu ouvido esquerdo, seguido de outro e outro no ouvido direito, que o deixaram surdo na hora.

- Cale essa boca agora.

Sentiu o bafo quente com cheiro de cigarro falando bem de perto do seu ouvido esquerdo.

Com a perna esquerda, ele empurrou a perna esquerda de Armando. Depois repetiu o gesto com a direita. Passou os dedos viris entre as pernas dele, se detendo no ânus.

- Pare, seu filho da puta.

Armando se mexia desesperado tentando escapar das cordas. Inútil. Estava bem preso.

O estranho começou a penetrá-lo.

Sentiu muita dor e urrou.

- Isso, meu veadinho. Agora gostei. É assim mesmo. Tem de sentir de verdade.

Armando fechou os olhos tentando fazer tudo aquilo parar a exemplo de um sonho ruim.

Os olhos ardiam como se tivesse acordado muito cedo ou tivesse passado a noite em claro.

Não era possível escapar.

O pesadelo era real.

O estranho se movimentava sobre ele com energia. A dor aumentava. Armando urrava e se mexia dentro do que as cordas permitiam, tentando escapar. E xingava o agressor.

A cada urro ou xingo, ele empurrava mais.

A agonia durou mais uns 15 minutos. Os corpos ficaram melados, grudentos. Até que o estranho também urrou e parou. Depois ele soltou o corpo pesado sobre Armando e mordeu a sua orelha esquerda levemente.

Armando sentia latejar tudo.

Quando pensou que o pior já tinha passado, um líquido grosso, quente, viscoso escorreu entre suas pernas molhando o escroto.

Com uma raiva incontida, Armando se remexeu debaixo do homem para tentar sair dali e se livrar definitivamente daquela situação.

De nada adiantou.

Após relaxar mais alguns minutos, o estranho sussurrou no ouvido esquerdo dele:

- Gostei muito. Vou querer repetir.

- Seu filho da puta, eu vou te matar.

Em seguida, o homem levantou-se, limpou-se com papel higiênico, vestiu-se lentamente e saiu da cela sem trancá-la como os outros.

Armando voltou a se remexer tentando escapar das cordas. Não conseguiu. Era inútil tentar escapar. Estava muito bem amarrado mesmo. A raiva que sentia poderia destruir o seu agressor só com um olhar se pudesse vê-lo.

Aos poucos a dor foi diminuindo e ele adormeceu novamente.

 

No dia seguinte, Armando abriu os olhos lentamente tentando verificar se estava seguro.

A primeira imagem que viu foi a do teto da cela. Só agora percebeu um desenho de um homem forte e grande abusando de outro, que gritava como mostrava um balão de conversa perto da sua boca. Embaixo do desenho estava escrito: “Kid Bengala é foda”.

Armando sentiu vontade de vomitar.

Percebeu que estava solto. Ainda estava nu, mas livre das cordas. A dor o incomodava mais.

Levantou-se com dificuldade.

Foi ao banheiro, agachou-se sobre a privada e começou a forçar para defecar.

Conseguiu após alguns segundos.

Não mirou direito o buraco que havia entre as marcas onde deveria pisar e o que saiu ficou preso na borda do buraco.

Olhou com curiosidade e percebeu que o bolo de merda estava tingido de sangue.

Fechou os olhos apertando as pálpebras com uma sensação de impotência terrível.

Ficou imóvel tentando segurar a raiva em si.

Quando abriu os olhos novamente, notou o chuveiro minúsculo instalado ao lado da pia.

Ergueu-se da privada com dificuldade ainda e foi até ele para se lavar. Ficou ali por alguns minutos. Esfregou o corpo todo tentando apagar o cheiro de suor e cigarro que o estranho deixara nele. Inútil. Parecia que impregnara.

A raiva tinha de ser extravasada.

Deu vários socos na parede.

Só parou quando o sangue começou a escorrer dos dedos inchados.

Ele iria se vingar.

Precisava descobrir quem fizera aquilo com ele e daí planejar tudo. Aquele desgraçado ia morrer nas suas mãos. Antes ia agonizar muito.

 

Como Armando previa, o advogado não conseguiu a sua liberdade no dia seguinte.

Inconformado com o seu destino, ele se misturou aos outros presos da penitenciária Dr. Danilo Pinheiro, chamada de Sorocaba I, que fica no bairro Mineirão, zona norte.

Logo que foi para o pátio percebeu que os outros detentos riam dele e disfarçavam.

Ao passar por um dos que riam e que não escondeu a manifestação quando olhou, Armando partiu para cima do homem.

Ele o agarrou pelo pescoço e começou a desferir socos. Os dois rolaram pelo chão. Um círculo se formou em torno deles.

O outro preso dava socos também.

Os guardas chegaram rapidamente e separaram a briga e ameaçaram que eles seriam levados para o isolamento se voltassem a se atracar. As brigas não eram permitidas. Os dois se acalmaram finalmente e cada um foi para um lado do pátio com cara de mau.

- O que foi aquilo mano?, perguntou um dos presos para Armando.

- Ele estava gozando a minha cara.

- É normal depois de ontem. Você não deve se incomodar com isso. Senão, vai brigar toda hora.

- Depois de ontem?

- É, você não recebeu a visita do Kid ontem?

- Quem é esse Kid?

- É o chefão aqui. Todo cara que cai acaba na mão do Duquecatorze canhoto. Você não seria diferente. Ele escolhe as vítimas a dedo.

- Me mostre quem é ele.

- Cara, você não está querendo dar o troco, né? Tem um monte de mano te corujando. Se você der mole, vão te fazer rapidinho.

- Eu vou matar esse cara.

- Mano, se você está a fim de apagar o chefe, precisa ter esquema. Já viu que os funça estão com ele, não viu? E isso te fode.

- O que é funça?

- Os agentes. Abriram a cela. Eles fazem isso com todos que caem. Facilitam pro duque.

- Só me fale quem é. Vou planejar tudo. Mas eu vou matar esse cara. Ele vai agonizar.

- Está certo. O chefe é aquele ali.

O detento faz sinal com os olhos e sobrancelhas apontando um negro de 1m90.

- Aquele?

- Sim.

Assim que confirma, Armando parte na direção de Kid Bengala e mete um soco no nariz dele. Os dois rolam pelo chão. Não dá tempo nem de cercarem para assistir e os capangas do chefão começam a espancar Armando.

Os guardas o salvam e o levam para o castigo.

A cela de isolamento não tem janelas e é muito mais apertada que a outra.

No dia seguinte, ele volta para a sua cela, mas agora tem a companhia de outros oito presos.

O que indicara o chefão está lá também.

Armando se aproxima dele.

- Porra mano, você não podia atacar o chefe.

- Eu vou matar esse cara.

- Ele vai se vingar de você.

À noite, Kid Bengala reaparece com seus capangas e espanca Armando novamente.

Depois que vão embora, ele está machucado por dentro e por fora. Mais ainda por fora. A surra deixa marcas nos inchaços e manchas roxas por toda parte do corpo.

Tratado na enfermaria, Armando conhece Tino, que também odeia Kid Bengala.

- Mano, se você quer apagar o chefe, conte comigo. Os dois planejam pegá-lo de madrugada. Armando fica sabendo que o chefe tem passe livre para sair da cela.

À noite, além de visitar os novos presos para abusar deles, ele faz bacanais em celas arranjadas para esse fim pelos agentes.

Tino vai até a cela de Armando para tentar tirá-lo de lá quando soa o alarme.

O enfermeiro corre para se esconder.

Há um corre-corre de agentes e policiais.

Alguns presos conseguiram fugir.

- Quantos escaparam?, pergunta Armando a Tino, quando ele volta.

- Apenas três.

- Bom, vamos pegar esse Kid Bengala amanhã.

- Não vai dar mais, conta o enfermeiro.

- Por que não?

- Porque um dos três que fugiram é ele.

- Não acredito.

- Pois acredite. Kid estava jurado de morte aqui por vários presos. Deve ter achado que seus capangas não dariam conta. Por isso, fugiu.

- Então, eu preciso fugir daqui também. Vou caçar esse filho da puta até no inferno. Ele vai agonizar nas minhas mãos. Depois vai morrer.

 

Oito meses depois.

Armando já se familiarizara com a prisão.

Mas não se conformava ainda em estar lá.

Desde a fuga de Kid Bengala, ele tramava a sua própria fuga para ir atrás do seu agressor e matá-lo como vingança. Só não conseguira ainda por não ter dinheiro para pagar agentes. Uma fuga custava muito caro.

Sem a ajuda deles, era muito difícil escapar.

Ele já conversara com todo mundo que estava preso com ele e ninguém tinha uma fórmula.

A solução veio quando conheceu Tarso.

Homem forte, alto e rude, o preso fora transferido para a cela de Armando.

Tarso era traficante e liderava uma gangue criada em 1979 e que vinha se espalhando pelos presídios paulistas com rapidez.

Os dois ficaram amigos imediatamente.

O traficante gostara do jeitão de Armando.

Conhecido como o rei das brigas, ele se encaixava certinho nos planos de Tarso.

Armando não deixava nada passar. Se alguém ria às suas costas, ia atrás e tirava satisfações. Caso fosse necessário dar socos, estava pronto.

O novo companheiro precisava de alguém assim para controlar a venda de drogas que acontecia fora do presídio.

O traficante ofereceu a Armando uma parceria. Ele o tirava da prisão e o detento brigão teria de trabalhar para ele.

- Topo. Eu preciso matar um cara. Só isso, depois vou estar livre para qualquer coisa.

- Quem é o cara?

- Kid Bengala.

- Quando saírmos, daremos um jeito.

 

- Venha aqui gata, disse Kid Bengala para Manuela, uma mestiça filha de japoneses.

A mulher caminhava nua para a cama, mas antes que chegasse até ele o quarto fora invadido por Armando e outros dois homens cedidos por Tarso para a execução.

Kid Bengala não teve tempo de nada.

Armando não atirou.

Em vez disso, mandou que ele se vestisse e o algemou com as mãos nas costas.

O trio saiu do quarto da casa levando Kid.

Assim que saíram, Manuela ligou para a polícia para contar o que aconteceu.

Kid Bengala foi levado para uma casa afastada do centro, teve toda a sua roupa retirada novamente e foi amarrado a uma cama.

Estava de bruços.

Armando esquentou um ferro no fogão e o introduziu no ânus de Kid Bengala.

A dor que ele sentiu foi tão grande que ele desmaiou com lágrimas nos olhos.

Quando acordou, Armando espancou-o várias vezes com a mesma barra de ferro.

A pele levantou vergões na hora.

Depois de tantas agressões, Kid Bengala estava agonizando e pediu pelo amor de Deus para ser liberado do castigo:

- Você já se vingou. Não me mate, por favor. Não me mate. Me dê uma chance.

- Está bem. Eu vou te dar uma chance. Você vai sair correndo e não vai olhar para trás. Se conseguir, estará livre. Eu prometo.

Kid Bengala foi levado para um descampado e começou a correr assim que foi autorizado.

Armando correu atrás dele.

Preocupado, Kid olhou para trás para ver a distância que estava do seu algoz.

Foi aí que Armando atirou no rosto dele.

Com o corpo estatelado no chão, Kid levou mais três tiros: na cabeça, no peito e no sexo.

 

Eu conheci Armando em 1988, quando fazia a ronda diária pelos distritos policiais de Sorocaba para colher o material que embasaria minhas reportagens para o jornal Cruzeiro do Sul.

Minha rotina era pegar o carro do jornal e ir de distrito em distrito. Naquela época, a polícia não centralizava as informações.

Hoje todos os distritos remetem as suas ocorrências para a Delegacia Seccional ou para o plantão da zona norte e os repórteres só precisam ir a esses dois locais.

Eu chegava de noite em alguns distritos, mas quando encontrei Armando no 5º DP ainda era final de tarde. A unidade ficava no centro em um velho prédio de dois andares.

Assim que cheguei fui informado da prisão de Armando, um fugitivo da penitenciária, que era acusado de matar um companheiro de prisão com requintes de crueldade.

Tinha todas as informações para redigir o texto, mas quis falar com Armando.

Uma entrevista ao vivo sempre trazia elementos que não se conseguia nos boletins.

Colocado frente a frente com o preso, me apresentei como jornalista e perguntei se ele podia falar comigo um instante antes que o levassem de volta à prisão.

Ele concordou.

Na nossa conversa, ele me contou toda essa história sobre a sua prisão, que considerava injusta, e o abuso que sofrera de Kid Bengala.

Disse que não se arrependia de nada.

Ainda seria ouvido pela polícia, mas para mim confessou o crime contra Kid Bengala.

Tinha um material muito bom para a reportagem. Avisei meu editor e fui perguntar ao delegado o que seria feito de Armando.

O delegado disse sem rodeios na frente dele:

- Vai voltar para o cadeião.

Ao ouvir a informação, Armando se irritou:

- Para o cadeião eu não volto. Para lá eu não volto. Os comparsas do Kid vão me matar. Eu não volto, eu não volto, ele gritou e começou a se agitar apesar de estar algemado com as mãos para trás. O homem saiu de si.

O delegado mandou que se calasse.

Ele não obedeceu.

De repente, o preso se levantou e, mesmo algemado, se desfez dos guardas e correu para a janela do prédio no segundo andar.

A janela era uma daquelas antigas de madeira, com vidros pequenos quase quadrados.

Pensei que fosse pular para tentar escapar, mas ele não fez isto.

Em vez de tentar fugir, Armando enfiou a cabeça no vidro quebrando-o. Os cacos cortaram todo o seu rosto. Quando trouxe a cabeça de volta, os vidros rasgaram o seu pescoço, o que fez jorrar sangue para todo lado.

Os guardas foram tentar detê-lo.

Ele gritou para que não colocassem a mão nele e nem que se aproximassem.

- Eu tenho Aids. Vou passar para vocês. É só se aproximarem. Vocês vão ver.

A informação amedrontou a todos.

Os policiais e o delegado recuaram.

Provavelmente ele se contaminara com Kid.

A Aids já era conhecida, mas havia muitas dúvidas sobre a forma de contágio.

De qualquer forma, o sangue era uma delas.

Não me lembro de ter tido tanto medo de me contaminar como dessa vez.

Achei que Armando fosse tomar um de nós como refém para tentar fugir.

Assim que ele anunciou que estava com Aids, eu saí correndo e desci as escadas em direção à rua. Não deu dois minutos e já estava lá embaixo na frente do prédio esperando para ver o que aconteceria com o preso e com os policiais.

Armando ficou no segundo andar com cacos de vidro ensanguentados enroscados na sua roupa e com o pescoço e o rosto todos ensanguentados também ameaçando os policiais que tentassem se aproximar.

Eu os via da rua.

O preso estava perto da janela ainda.

Ouvi sempre que jornalista tem de enfrentar o que tiver pela frente. Não pode fugir. Não pode ficar com medo nunca.

Senti-me um covarde por correr.

Decidi que não contaria sobre essa fuga para ninguém, principalmente no jornal.

Na época nenhum fotógrafo nos acompanhava para registrar os fatos, porque víamos mais boletins de ocorrência, sem a presença dos acusados nem das vítimas.

Se tivesse a companhia de um profissional desses, teria fotografado o momento em que os policiais avançaram sobre ele e o dominaram.

Sem alternativa, eles pegaram bandejas de aço do distrito e partiram para cima do preso batendo nele até que caísse no chão.

O preso foi levado para o hospital.

Subi novamente para ver o estrago.

Estavam todos apavorados.

Ninguém esperava uma reação daquelas. Muito menos que fosse de alguém com Aids.

Mesmo assim, a faxineira limpou a janela, as mesas, o chão, tudo onde havia respingado o sangue de Armando com apenas um pano e um balde água e sabão como fazia sempre.

Não usou luvas nem nenhum tipo de proteção contra a Aids e também outras doenças.

Perguntei se não tinha medo de contaminação e ela respondeu:

- Eu tenho medo é de viver.

 

No jornal, fui orientado a resumir a história.

- Fale apenas que o preso se cortou, avisou que estava com Aids e ameaçou os policiais. Conte sobre o pânico de todos. Depois como foi a dominação em si e o destino do preso.

Meu editor não queria dor de cabeça para encontrar espaço na edição para aquela história.

Eu tinha um grande material nas mãos, mas ele não podia ser publicado por falta de espaço.

Pensei na minha atitude de fugir para a rua.

E não me senti mais um covarde.

Covarde é quem morre.

 

 

FIQUE SABENDO

Em breve lançarei um livro intitulado "Coração Jornalista" com este texto e outros que estou preparando para contar coisas que vivi nos bastidores das reportagens que fiz ao longo de quase 40 anos de profissão.

Imagem da Galeria A desgraça de um homem preso que viveu o horror da prisão
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