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A pressa
Data de Publicação: 20 de maio de 2021 19:12:00 TUDO MUDA - Um motorista desorientado ao volante, desrespeitando regras de trânsito, os outros motoristas e as pessoas que estavam nas ruas.
Um homem que conhece as leis, mas que as desrespeita de forma descarada por estar atrasado para o seu compromisso.
Ao volante, nem parecia o advogado sensato que sempre procurou ser.
Dirigia como se necessitasse salvar o pai da forca. Mas enforcado estava ele. O escritório ia mal. Vinha pendurando contas por toda parte. Se tornara conhecido na cidade pelas dívidas.
Tentava agora a última cartada para sair da crise. Ia visitar um cliente. Contrato dos grandes. Serviço para sair do vermelho definitivamente. Fora indicado por um amigo.
Estava confiante, pois na primeira conversa caíra nas boas graças do homem.
- Este trânsito está um inferno. Parece que todo mundo resolveu sair de casa no mesmo horário, Celso. Não tenho tempo pra isso não, diz ele, enquanto enfia o bico do carro entre um caminhão e um ônibus, tentando passar.
No meio das peripécias, o advogado reclama com o amigo que, se as coisas continuarem ruins para ele, terá de tirar o filho da escola particular por falta de dinheiro. Lamenta aquilo como se fosse a derrocada final.
- Meu filho é tudo para mim Celso. Não posso fazer isto com ele. Vai me odiar.
O amigo nem tem tempo de responder à preocupação do advogado.
A buzina não pára.
É a sua arma contra os outros motoristas.
Parece usá-la para se vingar da sua situação.
- Ernani, acho que você está abusando da velocidade. Não se dirige assim.
- Para o diabo com suas observações, Celso.
- Já pensou se uma criança entra na frente?
- Criança tem de ficar dentro de casa. Se está na rua é porque os pais deixam. Se permitem isso, são irresponsáveis. Eu não tenho culpa. Eu posso consertar o mundo, Celso. Eu não posso.
- Mas você pode ser mais consciencioso.
- Cale a boca Celso. Você já falou demais. Ok?
O amigo silencia para evitar discussão.
Agora o advogado faz uma conversão proibida. O gesto não é só uma infração. Ele fecha um motociclista. A moto se desgoverna. O motoqueiro se estabaca no chão.
O advogado não se importa.
Acelera e sai do local ainda em velocidade.
- Você não vai parar Ernani? Ele precisa ser socorrido. Você viu o que aconteceu?
- Tem muita gente lá, Celso, diz olhando para trás. - Olha só o bando de curiosos. Estão todos velando o defunto vivo. Eles dão conta.
- Eu não conheço mais você.
Indiferente, o advogado prossegue em alta velocidade, cortando a frente dos outros.
- Devem ter anotado a sua placa.
- Não tem importância. Depois eu dou um jeito. O delegado é meu chapa, esqueceu? Ele me deve aquela quebrada de galho do dia que exagerou com um preso. O promotor estava louquinho pra ferrar o cara. Salvei a pele dele, agora ele salva a minha. Esse é o lance.
- Por que você está correndo desse jeito?
- Esqueci o contrato em casa. Preciso apanhar antes de ir ao encontro com o cliente. Ele vai assinar isso. Tenho dez minutos. O amigo sacode a cabeça reprovando a pressa. – Se assinar, Celso, saio da lama hoje. Prometo a você que à noite vamos tomar um chope. Temos de comemorar essa vitória.
- Com você ao volante eu não saio. Nem que você me pague, entendeu?
Logo à frente o trânsito engarrafa outra vez.
- Não é possível. Será que eu vou ter de voar? O que aconteceu hoje Celso?
- Você já não está fazendo isso?
O advogado dá de ombros para a crítica.
Em seguida vai enfiando o bico do carro. Quando não dá, toca a traseira de quem está à frente. Faz pressão com os braços estendidos até que o motorista arranja um jeito de sair da frente. Passa no meio da xingação.
- Por que essa confusão, Celso? Ainda mais perto de casa. Essa gente não tem mesmo o que fazer. Vizinho, meu caro, só serve pra pedir açúcar emprestado. Quando não pra olhar as pernas da mulher da gente.
O carro dos dois finalmente chega ao ponto de onde sai todo o engarrafamento. Sem poder passar, o advogado desce. Puxa o amigo pelo braço até um círculo de pessoas à frente.
Elas estão em torno de um corpo estendido no chão e coberto por um lençol branco.
- O que houve aqui? Eu preciso passar. Vocês têm a vida ganha, eu não, diz o advogado.
- Que bom que o senhor veio, seu Ernani, diz o dono do bar, abraçando-o.
- Bom por quê? O que é isso Nando? O que está dizendo? Andou bebendo?
- É seu filho.
- Meu filho o quê, seu idiota?
- É seu filho que está no chão. Foi atropelado. Ele morreu, seu Ernani. Morreu ainda agorinha. Não se pode fazer mais nada. Foi tudo tão rápido. Ninguém viu a placa, nada. Só escutamos o estouro da batida e o grito.
O dono do bar está em prantos.
O advogado olha para todo mundo como se tivesse caído de um caminhão de mudanças.
Ele fica perplexo.
Não tem o que falar.
Empalidece por alguns segundos.
Finalmente toma coragem de erguer o lençol e vê o filho morto, todo cheio de sangue.
Em seguida, solta um berro com todo o fôlego que pode e se desespera, ajoelhando-se.
Depois chora abraçado ao filho.
A pressa havia acabado.
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