A ala Covid não

8 de junho de 2021

A ala Covid não

Data de Publicação: 8 de junho de 2021 19:13:00 MEDO - Internar-se na área para tratamento das vítimas do coronavírus se tornou uma sentença de morte para muitas pessoas.

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Alves não queria morrer e ser colocado junto com os doentes seria uma forma de condená-lo à morte.

 

 

O coração batia descompassado.

Aquele não era o seu normal. Não o que apresentava na repartição. Sempre fora um fiscal controlado, sério, seco até.

Agora as mãos tremiam, a voz patinava em algo que enroscava na garganta e os olhos estavam projetados como se fosse um sapo.

- O que aconteceu com você Alves?

- Eu não sei. Não estou bem. Nada bem.

- Ora essa, precisa ir ao médico?

- Não quero ir Lincoln.

- Por que não?

- Tenho medo. E se for Covid? E se eles me internarem? E se eu for intubado?

- Se todos esses ses acontecerem, você será tratado e passará por isso amigo.

- Não, eu não vou passar. Eu sei que não vou. Toda vez que tinha duas situações, eu sempre fiquei com a pior. Não vai dar certo Lincoln.

- Pare de ser pessimista. Se não está bem, precisa ir ao médico. Precisa se tratar.

O homem começou a tossir sem parar. Parecia querer tirar um concreto da garganta. Os olhos ficaram vermelhos. Até que cuspiu catarro.

Lincoln fez cara de nojo ao ver a pasta verde grudada no chão, mas o amparou.

- Sabe Lincoln, uma parente minha foi internada porque não falou nada. Ela chegou lá passando mal. Eles a colocaram em uma maca e disseram que ela seria internada. Logo depois disseram que ela seria intubada. Aí não disseram mais nada. Ela não viu mais nada.

- Ela morreu?

- Sem se despedir.

- E alguém precisa se despedir para morrer?

- É claro que precisa. Estamos todos aqui juntos. Eu não posso ir embora sem me despedir. Tenho de falar tchau.

Alves puxava o ar com esforço.

Lágrimas escorriam dos cantos dos olhos.

As mãos trêmulas não se firmavam para se segurar. Teve de se sentar. Encostou a cabeça na parede. Os olhos se reviraram.

Desmaiou.

Quando acordou, estava no hospital.

Pior que isto: em uma maca à espera de vaga para a UTI. Seu quadro se agravara. Ele não sabia há quanto tempo estava ali.

Lincoln desaparecera.

Felizmente, não o haviam intubado.

Tentou olhar em redor buscando informação. Seu quadro não era melhor que os outros, mas se esforçava para se manter neste mundo.

Chamou a enfermeira.

Em vão.

Ela sequer olhou para ele.

Será que falava tão baixo assim?

Gritou desta vez.

Nada.

A enfermeira passou perto dele e não o ouviu chamar. Os outros enfermeiros também não o ouviam. Nem os médicos.

De repente, Alves pensou que estivesse morto. Não era possível que ninguém o ouvisse. Olhou o próprio corpo. Não divisava se estava ali ou não. O lençol o cobria até o pescoço.

Tentou tirá-lo e não conseguiu se mover.

Deus do céu, o que estava havendo?

Então um enfermeiro que não estava ali antes parou do lado da sua maca. Olhou o nome e a pessoa. Sorriu, como se estivesse aliviado.

- Encontrei Jair, gritou para o outro lado.

Alves não conseguiu ver quem era o Jair.

Só espero que não seja o presidente, pensou.

O enfermeiro que segurava na sua maca apanhou a prancheta nos seus pés e começou a ler e resmungar enquanto lia.

- Queriam levar você, meu passarinho, para a ala Covid. Veja se pode. Todo mundo aqui tem Covid para eles. Ninguém escapa.

Alves ficou tenso novamente.

Não queria ir para a ala Covid.

Não, ele não podia ir para lá e depois ser intubado e morrer sem nem se despedir.

A sua intranquilidade não transparecia.

Não conseguia mexer o corpo.

Gritou para o enfermeiro que chegara e consultava a prancheta:

- Não consigo me mexer.

O enfermeiro olhou para ele como se o ouvisse, mas não parecia entendê-lo.

- Que povo esse de hospital. Parecem cegos. Quando não, parecem surdos. E os que não são nem uma coisa nem outra, não têm cérebro.

As suas queixas acabaram quando o enfermeiro chegou bem perto do seu rosto:

- Vou resolver o seu problema agora.

Alves ficou feliz pela primeira vez ali.

A maca finalmente estava sendo empurrada para o lado oposto ao da ala Covid.

As luzes passando sobre a sua cabeça deram a Alves a lembrança dos parques de diversão.

Via as luzes passando assim na roda gigante.

Será que o estavam levando para o quarto?

Não se sentia mais estranho.

Todo o mal-estar passara do nada.

Sorriu e ficou pensando só em sair.

Até que viu passar rapidamente pela porta onde estava escrito “Necrotério”.

 

 

Informação complementar

Toda terça-feira você encontrará uma crônica nova neste espaço.

Imagem da Galeria O isolamento por si só já angustia: em um local voltado à doença então
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